domingo, 24 de julho de 2011

FERREIRA GULLAR

-

Temos ou não temos presidente?

-

Algo insistia em dizer que a intuição tinha fundamento, ou seja, o Brasil não tinha mesmo presidente Fonte: folha.uol.com.br 24/07

-

Como não pretendo enunciar verdades indiscutíveis acerca de questões políticas -nem de quaisquer outras-, dou-me o direito de especular livremente, atendendo apenas a minhas intuições. E intuição -sabe-se como é- nasce não se sabe bem como e chega aonde menos se espera.

Tudo isso é para dizer que, outro dia, não sei por quê, fui surpreendido por este pensamento: "O Brasil não tem presidente".

Espantei-me com a suposta descoberta, que, embora destituída de comprovação objetiva, chegava-me com a certeza de uma verdade.

"Mas como?", indaguei a mim mesmo. "E a Dilma Rousseff, não é a presidente do Brasil?" A resposta objetiva foi que sim, o Brasil tem presidente, que, aliás, é precisamente uma mulher, que se chama Dilma Rousseff.

E donde veio, então, essa ideia estapafúrdia de que o Brasil não tem presidente? Vai ver -pensei- é porque, como não votei nela, estou, inconscientemente, negando a sua presença no governo.

Bem pode ser isso. E por alguns momentos achei que era, mas a intuição de que o país não tinha presidente voltou e descartou a hipótese de que se tratava de mero despeito meu.

Algo, dentro de mim, insistia em dizer que aquela intuição tinha fundamento, ou seja, o Brasil não tinha mesmo presidente.

Passei então a refletir sobre essa hipótese, já que a intuição, se não é verdade consumada, pode ser o começo de uma revelação. Noutras palavras, não é coisa de se jogar fora. Por isso, em vez de descartá-la, decidi examiná-la, descobrir em que, afinal de contas, ela se baseava.

Esse foi o meu propósito, mas, como se sabe, intuição não nos oferece dados objetivos, do contrário não seria intuição, já seria conclusão.

Ainda assim, a alternativa era ou buscar descobrir qual fundamento tinha aquilo ou simplesmente deixá-lo de lado, ignorá-lo.

Só que isso não era tão fácil, pois se tratava de uma intuição surpreendente, que envolvia a questão do poder no país.

Já imaginou quais as consequências de concluir que a Presidência da República, ainda que oficialmente ocupada, de fato está vaga? Essa reflexão, por si só, bastou para me fazer mergulhar de vez na indagação da instigante hipótese.

Decidi fixar-me nos dados objetivos relacionados com o assunto. Ali estava, diante de meus olhos, a figura de Dilma Rousseff com a faixa presidencial cruzando-lhe o busto, logo após receber de Lula o cargo supremo da nação: era de fato presidente do Brasil.

Mas não só isso: os meses se passaram e ela veio exercendo as funções presidenciais, seja assinando decretos, recebendo representantes dos outros poderes, recepcionando chefes de Estado de outras nações e, mais que isso, tomando decisões de caráter internacional, até mesmo contrárias à orientação que imprimira à nossa política externa o presidente anterior.

E, como se não bastasse, escreveu uma carta reconhecendo os méritos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, coisa impensável num líder petista. Como então dizer que não temos presidente?

E aí me detive: pois é, como afirmar tal coisa? Em que se apoia, então, a intuição que me levou a semelhante questionamento? Indaguei e fiquei esperando pela resposta que eu próprio deveria dar.

E foi então que a resposta me veio, por voz outra, que falou pela minha... Antes, porém, me surgiu num espanto esta constatação: "Ninguém tem dúvida de que Obama é presidente dos Estados Unidos, mas e Medvedev, ele é mesmo presidente da Rússia? Restam sérias dúvidas...".

E, logo, a outra minha voz falou: "Sim, administrativamente, temos presidente. Ela assina papéis, toma decisões. Mas, como não foi propriamente por identificar-se com ela que o povo a elegeu -já que não tem uma história construída no corpo a corpo com o eleitor nas ruas-, o seu poder é constitucional, mas meramente formal. O que não quer dizer que fará mau governo. Mas que parece substituir alguém, parece. É como se ocupasse, provisoriamente, o lugar do verdadeiro presidente, que não se sabe quem é. Ou sabe?".

E fico na mesma: ela não interveio no Ministério dos Transportes? Interveio, sim. Não obstante, continuo a achar, sem explicação lógica, que não temos presidente. Ela administra, mas não preside. É isso. Deve ser... Bom, deixa pra lá.

-

>>>>

-

Fãs dos Clássicos

Leitores da cidade preferem as páginas amareladas dos livros antigos ao cheirinho de novo dos escritores contemporâneos: vontade de buscar no passado as referências do presente Fonte: correioweb.com.br 24/07

-

Algernon: Ouviu o que eu estava tocando?

Lane (criado): Achei que não seria delicado escutar, senhor.

Algernon: Pois lamento que o haja perdido. Não toco com perfeição — toda a gente pode tocar com perfeição — mas eu toco com expressão admirável. Tratando-se de piano, o sentimento é o meu forte. Guardo a ciência para a vida.

“Um tapa na cara”, é como descreve o estudante de filosofia Gabriel Hargreaves, 21 anos, sobre o diálogo que permanece gravado em sua memória e introduz a comédia A importância de ser prudente, de Oscar Wilde. Em se tratando do autor, essa é a obra favorita de Gabriel. “Mesmo vivendo em um mundo extremamente racional, essas frases me tocaram e jamais me esqueço delas”, disse. O estudante de filosofia cresceu incentivado pelo exemplo do pai, que sempre leu muito. “Começou como obrigação e virou um gosto”, conta. O que antes era um obstáculo para as brincadeiras e saídas com amigos, hoje é um grande escape para o estudante. O interesse pela leitura clássica surgiu na escola, aos 13 anos, por meio da leitura de Gregório de Matos e Augusto dos Anjos.

Aos 18, fã da banda norte-americana interessada por poesia, The Doors, o jovem começou a ler William Blake, o herói do vocalista Jim Morrison. Depois veio o trabalho em uma livraria e a sede de absorver todas aquelas obras que repousavam nas prateleiras. Manfredo, de Lord Byron, é uma lembrança daquela época. Mais tarde, a construção dos personagens de Machado de Assis e o estilo poético de Gabriel García Márquez também encantaram o estudante. “A leitura do clássico exige curiosidade e vontade. É importante tentar entender quem é o autor. Quando a gente não o conhece, se perde, não entende o que ele quer dizer”, destaca.

Modelo permanente

Ligia Cademartori, tradutora literária para crianças e jovens, afirma que os clássicos são assim chamados porque estabelecem uma conexão profunda com a existência humana. “Guardam em si questões, aspectos, vivências que são fundamentais aos homens de todas as épocas e em todos os tempos. Os personagens desses livros são tão citados, revisitados e parodiados na produção contemporânea que, de certa forma, se tornam também contemporâneos”, classifica a autora de títulos que discutem a relação entre educação e literatura. Seu trabalho mais recente é O professor e a literatura — Para pequenos, médios e grandes (Autêntica), publicado ano passado.

A categoria, ela continua, ainda preserva aspectos desenvolvidos na Antiguidade Clássica: a queda e o levante do homem inspiram todas as grandes obras. “Elas apresentam, de uma maneira muito própria, a perplexidade, a precariedade humana. Isso está fortemente colocado nos grandes gêneros, desde a tragédia grega: é da falha e da tentativa de superação, questões que nunca serão superadas”, acrescenta.

MITOS DE HOJE

No livro A jornada do escritor (Nova Fronteira), Christopher Vogler enumera todas as etapas de construção de personagens e situações necessários para se escrever uma boa história. Muitas das histórias que contamos hoje têm relação com os antigos mitos, assim, seus personagens arquetípicos constituem a base da narrativa moderna.

-

>>>

-

Affonso Romano de Sant'Anna

-

Pseudoimbecilidade e pseudointeligência

-

“Tem gente que aceita silenciar, se moldar, ser subalterno ou se comporta como os animais que se mimetizam com o ambiente para não serem notados. É um tipo de esperteza, esperteza que consiste em parecer estúpido” Fonte: correioweb.com.br 24/07

-

As crianças criam a “pseudoimbecilidade” como forma de se defenderem. Fazem-se passar por estúpidas quando estão num contexto que não podem nem aceitar nem modificar. Leio isso no livro A ambiguidade, de Simona Argentieri, que sairá brevemente no Brasil.

Serão só as crianças?

Paro a leitura e penso. O que isso teria a ver com o conceito de “servidão voluntária” de que falava, há mil e quinhentos anos, o filósofo Boethius, no decadente Império Romano? Tem gente que aceita silenciar, se moldar, ser subalterno ou se comporta como os animais que se mimetizam com o ambiente para não serem notados. É um tipo de esperteza, esperteza que consiste em parecer estúpido.

Como variante disto, penso também na questão das pessoas que se inserem numa ideologia que está na moda. É uma maneira de se exibir usando uma carapaça charmosa. E isso me leva logo a uma outra categoria que poderíamos criar — a do “pseudointeligente”. Uma pessoa pode, por exemplo, passar por “inteligente” nos meios acadêmicos e nos bares simplesmente recitando o receituário de uma certa filosofia ou de um autor que entrou na moda. Pode passar por alguém que está “por dentro” quando, na verdade, realmente ele está por dentro, ou seja, é um parasita da ideologia dominante,

Se o “pseudoimbecil” se retrai ocultando a sua verdadeira opinião, como casca, para se defender (mecanismo que Winnicott estudou), o segundo avança criando uma máscara de falso ajustamento, e quando sozinho, não sabe o que fazer da angústia e da insatisfação que esse comportamento deixa residualmente.

Os regimes autoritários, as inquisicões, as patrulhas ideológicas obrigam o indivíduo a esconder sua verdadeira opinião. Realmente, é um risco desafinar no “coro dos contentes”. Alguns perdem a cabeça, o emprego, o espaço nos jornais.

A “pseudointeligência”, que é uma maneira sábia de ser covarde, nos leva a consumir o que está na ordem do dia, seja a moda, a roupa, a música, a arte e até a comida. Os argumentos usados, já que são gerados por um “falso ego” — o da máscara — repetem a vulgada, o discurso alheio. Poder-se-ia dizer que, neste caso, são pessoas que não têm “redação própria” ou “autonomia de voo”.

A coisa é tão complexa e sutil e, às vezes, tão paradoxal que a cultura contemporânea tem incentivado a “pseudointeligência” de formas novas. A ascensão das nulidades, o culto ao mercado, a necessidade de seduzir as classes C, D e E estão embaralhando não só sujeitos e objetos, mas sobretudo os conceitos.

-

>>>>

-

O QUE ELES PENSAM - CILDO MEIRELES

Brasília é sonho e realidade Fonte: correioweb.com.br 24/07

-

Cildo Meireles, 62 anos, é atualmente um dos artistas brasileiros de maior prestígio no circuito internacional de arte. Brasília é uma palavra essencial em sua história. Ele morou na cidade de 1958 a 1967, dos 10 aos 19 anos, e viveu intensamente o delírio de invenção e experimentação que marcou aquele período. Em sua arte, utilizou, por exemplo, garrafas de Coca-Cola e notas de dólares para criticar o consumo e subverter o circuito de informações, inventando o zero dólar. Torcedor do Fluminense, campeão do futebol de várzea em Brasília, ex-aluno do colégio Ciem, artista conceitual, se tivesse poderes, Cildo providenciaria medidas para reduzir o número de carros e aumentar o de gente circulando de bicicleta pelas ruas da capital. Nesta conversa, ele mistura futebol, arte, política, bicicletas e memória do sonho dos tempos iniciais de Brasília: "Naquela época, a gente não achava que estava construindo uma cidade, mas sim uma catedral".

-

Por que a experiência de Brasília foi tão importante em sua história?

Antes de tudo, porque foi o lugar onde passei a adolescência. Segundo, porque por um desses acasos, acabei participando de um evento histórico: a criação e construção de Brasília foi um privilégio.

O que era um privilégio nesta experiência?

Havia uma efervescência grande no Brasil desde a década de 1950. Tinha a bossa nova, o Cinema Novo, o neoconcretismo. Foi um período muito rico culturalmente e de muitas esperanças. A sensação que todo mundo tinha era a de que estávamos construindo não uma cidade, mas uma catedral.

O que é uma imagem marcante da época para você?

Me lembro que jogava bola, cheguei a ser campeão no futebol de várzea. Joguei nos juvenis do Planalto e do Nacional, dois times da época. Mas me lembro que era criança de 11 ou 12 anos, minha mãe morava na 713 Sul e os campos ficavam longe, no acampamento da Construtora Planalto. O sistema de transporte público não era eficiente. Mas, por outro lado, se alguma criança fizesse um sinal na rua qualquer pessoa que visse desviava o caminho e a deixava na porta da casa. Hoje em dia, isso seria impossível. Quer dizer, havia um sentimento geral de solidariedade e fraternidade. Todo mundo estava construindo um sonho.

Como era o Ciem?

Estudei o primário e o ginásio no Nossa Senhora do Rosário. Fiquei um ano no Elefante Branco, fiz exames para o Ciem (na Asa Norte), que era uma escola experimental da Universidade de Brasília. Em 1957, o lançamento dos foguetes sputiniks pelos russos impactou os Estados Unidos. Eles entraram em pânico e convocaram as melhores cabeças para reformular o ensino. A ideia era implantar o mesmo sistema no Brasil e isso aconteceu no Ciem.

E no campo das artes, qual foi a influência em sua formação artística?

Em 1963, vi no Instituto de Artes da UnB uma exposição de arte africana. Me impactou muito. Fui às papelarias comprar cartolina e lápis para desenhar. A arte africana tem uma mistura de muita força, elegância e sensibilidade. Já gostava de desenhar desde pequeno. Meu pai me deu dois presentes nos tempos de menino; um era livro de desenhos do Goya e o outro do Goeldi. E, em 1963, por causa dessa exposição, me matriculei em um ateliê livre e conheci uma pessoa fantástica, o Barrenechea. Comecei a frequentar as aulas, ele foi extraordinário, muito generoso, tinha um ateliê na 708 Sul, não me cobrou nada e me dava material. É o único professor a quem dou crédito.

O que o Ciem oferecia no campo das artes?

Era importante porque as artes plásticas se inspiram em vários campos do conhecimento. No último ano, frequentei o chamado Ciem artístico e uma das coisas que o colégio oferecia era a possibilidade de eleger uma matéria e ter duas aulas por semana. Escolhi cinema. Brasília tinha um curso implantado por Paulo Emílio Salles Gomes e um corpo docente extraordinário, com Jean-Claude Bernadet e Nelson Pereira dos Santos, entre outros.

Você considera que a arte conceitual brasileira nasceu em Brasília?

É difícil dizer isso. A minha ideia é que a partir da virada do século 20 começa a tomar força a noção de objeto de arte total. E acho que isso está ligado a um conceito histórico expresso pelo filósofo Teillard Chardin, especialista em links com o primeiro homem. Li um livro dele em 1968 e uma frase me marcou muito: o primeiro homem é sempre multidão. Existem situações que permitem coisas similares pipocarem, simultaneamente, em vários pontos.

Brasília é uma cidade conceitual?

Minha primeira opção era o cinema e escolhi como prática educacional fazer um trabalho de animação. Mas me lembro que já estava aqui desde 1958, imbuído dessas conversas que permeavam Brasília. Achava já naquele momento que Brasília era uma espécie de aliança dos anos 1950 entre elite cultural e elite econômica que caía como uma luva para o regime autoritário. Você tinha um plano e um sonho, mas havia um embate com o real. Você tinha um cara do Triângulo Mineiro que instalava uma farmácia em Brasília e colocava o mesmo balcão que usava na cidade do interior. A cidade é dinâmica, viva, vai se impondo ao projeto. A frente da W3 era para ficar no fundo. Então, há uma passagem do sonho para a realidade.

Como foi esta passagem?

A partir de 1964, Brasília foi ocupada por muito tempo pelo que o Brasil tinha de pior. Um excesso de aspones, uma mentalidade retrógrada e reacionária. Brasília se tornou um alvo de vingança da classe dominante. Claro que se ressentiu disso. Mas ela deu a volta por cima e um dos momentos onde houve a retomada desse espírito inicial de Brasília foi em 1966. Fui a Alcântara, no Maranhão, e na volta vim a Brasília, coincidindo com a morte do Juscelino e pude presenciar aquele momento. Foi ali que senti que a ditadura começava a cair. Tinham planejado uma espécie de blindagem em torno do enterro do Juscelino. Mas não resistiu ao espírito de iniciativa da garotada. Haviam estabelecido um itinerário e colocado o Exército de metro em metro durante todo o roteiro. Os motoqueiros, praticamente, sequestraram o caixão e estabeleceram uma manifestação popular. Passei de carro e vi a Esplanada dos Ministérios lotada. Pensei: agora, será difícil segurar a população.

Como foi a sua percepção da arquitetura moderna?

Nos tempos de adolescente, eu vivia no entorno da arquitetura moderna, acompanhando toda aquela discussão, e não entendia a importância que ela tinha. Até que me caiu nas mãos uma revista com a imagem de um prédio de uns quatro andares e de um carro do outro lado da rua. Mostrava a fachada, as pessoas e, na frente do prédio, havia um carro do ano parado, um Ford 1929. Aí você via quão adiante estava o design do prédio moderno em relação ao Ford.

Como vê o trabalho de Athos Bulcão? Há semelhança entre o trabalho dele e o dos artistas conceituais no neoconcretismo e o da sua geração, a dos chamados artistas conceituais?

Athos está mais ligado ao modernismo. A arte teve uma função social, coletiva. E, por volta de 1500, com a revolução burguesa, o que era patrimônio da comunidade foi privatizado. Aí, nasce a tela, que é uma redução do mural e do afresco para uso doméstico e privado. Com o aparecimento da tela, surge o artista e a assinatura, o autor, a tela como embalagem. Para o marchand, tanto faz negociar impressionismo, realismo ou concretismo. Aqui em Brasília, houve um pouco esta volta do trabalho de arte para a dimensão pública, para a rua. E, nesse sentido, claro que foi importante a arte do Athos, seguramente um nome muito respeitável. Mas devo confessar que gosto muito de alguns outros artistas que ficaram anônimos em Brasília.

Quem são eles?

O Barrenechea e o Iolovich. De uma certa maneira a própria comunidade não dispensa o respeito e a visibilidade a eles. São esquecidos na história cultural da cidade.

Como vê o limite da arte conceitual na incorporação de objetos e a crítica de que isso teria provocado a banalização ou a morte da arte?

Houve um momento em que fui classificado como artista conceitual e tentei me livrar deste rótulo. Me criava um desconforto, você entrava em uma exposição e ficava tendo de ler, ler e ler. E, geralmente, texto de artista é muito fraco. Essa verbosidade de má qualidade me deixava irritado. Mas, certa vez, um grande amigo meu foi preso em 1970 e anos depois ele me contou que na cela onde caiu, havia um palito de fósforo. Ele ficava pensando: o que um artista como o Cildo faria com isso? Aí percebi que, de fato, dos movimentos que haviam existido, o da chamada arte conceitual era o mais radical e democrático. Você trabalhava com quase nada. Ampliou de forma extraordinária o campo temático e de materiais. Eu não tinha me dado conta do quanto havia de democrático e generoso na arte conceitual. Ela permite que qualquer pessoa pense em qualquer coisa e transforme qualquer suporte em uma obra de arte.

Como vê a crítica de que a arte conceitual contribui para a morte da pintura?

A pintura não morre. É um setor econômico fortíssimo, não vai acabar assim. Há muitas fábricas que vivem em função da pintura. Já a arte conceitual prescinde disso, ampliou absurdamente o campo de liberdade do artista.

Em função dessa liberdade extrema de poder trabalhar com qualquer objeto, o que é arte para você hoje?

Esta pergunta é quase irrespondível, a gente se pergunta o tempo todo. Carl Andrés, minimalista norte-americano, formulou uma definição com a qual, de certa maneira, concordo. Com certeza, ele extraiu esse conceito de algum mestre zen budista. Andrés disse que um homem sobe uma montanha porque a montanha está lá e um artista faz um trabalho de arte porque não estava lá. Quer dizer, a única coisa que justifica esta grande inutilidade imprescindível que é a arte é o fato de algum maluco ir lá e fazer. Mesmo que seja um erro, é preciso experimentar e abrir o campo de liberdade para fazer outra coisa.

Do que você gosta em Brasília e o que mudaria se tivesse poderes?

Gosto de muitas pessoas daqui e, sobretudo, da ideia de Brasília. Gosto do clima de Brasília. O Rio é uma piscina muito quente. Algumas vezes, a umidade do ar chega a 90 por cento. Gosto também da disponibilidade do tempo em Brasília. O Rio é muito dispersivo. O que não gosto é o fato de a cidade não ter projetado um sistema de transporte. Acho o carro uma praga violenta que destrói a vida urbana. É preciso diminuir a circulação de carros. Nos tempos em que eu morava em Brasília sempre me movia pela cidade de bicicleta. Desde o início, os criadores de Brasília deveriam ter pensado em um sistema de metrô e não em apenas algumas linhas. Se as pessoas usassem mais bicicletas a vida em Brasília seria muito melhor.

Nenhum comentário: