sábado, 4 de fevereiro de 2012


COMO NASCE UMA CIDADE »   De como a miragem se tornou realidade
Só um louco acreditaria que, em menos de quatro anos, a capital do Brasil deixaria o Rio de Janeiro e seria instalada em Goiás. Contudo, em fins de 1959, os brasileiros não tinham mais nenhuma dúvida: Brasília estaria pronta para sediar o poder público federal.   CORREIO 04.02
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Era como se a capital do país fosse ser transferida do Rio de Janeiro para uma miragem no deserto. Uma esplanada singrava a vegetação rala e nas bordas da avenida pontuavam predinhos dispostos como pedras de dominó. Na extremidade leste, duas torres gêmeas surgiam dentro de formas de madeira e aos pés delas havia duas bolas de concreto partidas ao meio, uma convexa e outra côncava. Atrás das torres, dois palácios de mármore branco emergiam do silêncio eterno do cerrado. Torres e palácios formavam um triângulo cuja área seria definida com miúdas pedras portuguesas, incrustradas uma a uma no terreno.

Na outra extremidade da Esplanada, uma plataforma em obras se insinuava no cruzamento de dois eixos. Ao sul de um desses eixos, o Rodoviário, blocos retangulares se alinhavam como se um deus do urbanismo tivesse brincando de inventar uma cidade com pedrinhas de brilhante. Bem no meio do eixo sul, uma construção em forma de chapéu de freira dominicana se sustentava em alicerces triangulares e, dentro dele, uma pequena nave já acolhia celebrações religiosas. O eixo rodoviário também se estendia ao norte — solitário.

Ao largo desse conjunto arquitetônico alinhado em eixos, havia duas outras edificações brancas como aqueles dois palácios de mármore. Uma delas se destacava pela imponente delicadeza — era ao mesmo tempo altiva e diáfana, delgada e sinuosa, soberana e etérea. Parecia se sustentar com meias asas em posição de voo. Era um palácio e esperava por um lago. O outro prédio, razoavelmente próximo ao primeiro, era singelo e discreto, como quem reverenciava o vizinho.

Faltavam quatro meses para que esse conjunto esparso de formas inesperadas fosse inaugurado como sendo a nova capital do Brasil. Havia outras obras pontilhando o chão cor de ferrugem. As estruturas de um grande hospital apontavam no centro da cidade. Ao sul, numa via que viria a se chamar Avenida W-3, 500 casinhas cor de algodão já abrigavam candangos anônimos e ilustres. Um dos mais eminentes moradores do lugar era o arquiteto Oscar Niemeyer, o autor de todas as obras de arquitetura que estavam sendo construídas na inaudita cidade, exceto a Plataforma Rodoviária, que pertencia ao urbanista Lucio Costa, o vencedor do concurso que escolheu o projeto de Plano Piloto da capital do Brasil.

Era à noite que a futura cidade parecia verdadeiramente existir. As luzes penduradas em postes mambembes reduziam a imensidão do cerrado às obras em andamento. O barulho de martelos, serras, motores se expandia na escuridão avisando que algo grandioso estava sendo preparado para muito breve. Quando amanhecia, a cidade voltava a se esvanecer no terreno monumental.

Filósofo e cineasta
Longe do futuro Plano Piloto, formigueiros de gente improvisavam pequenos aglomerados com casas feitas de pedaços de madeira, madeirite, sacos de cimento, papelão, lona. O maior deles, a Cidade Livre, havia sido criada para servir de suporte à construção da capital e, de acordo com os planos da Novacap, seria desmontada logo depois da inauguração de Brasília. Taguatinga tinha surgido às pressas para abrigar uma multidão de nordestinos vindos da terrível seca de 1958. Imensa vila, a Amaury, criada pela Novacap, alojava-se no leito do futuro Lago Paranoá, que começaria a se formar em setembro de 1959.

Sucediam-se as visitas à impressionante cidade. A 25 de agosto de 1959, chegou o personagem que deu a Brasília um de seus mais repetidos epítetos, o de “capital de esperança”. O filósofo e ministro da Cultura da França, à época, André Malraux, ficou impactado com a obra moderna feita pelos brasileiros. “No processo de desenvolvimento, muitas vezes as grandes nações encontraram o seu símbolo e, indubitavelmente, Brasília é um símbolo desse gênero”, disse Malraux. “Se renascer a velha paixão das inscrições nos monumentos, gravar-se-á sobre os que aqui vão nascer: ‘Audácia, energia, confiança’. Não se trata de vossa divisa oficial, mas talvez das que vos dará posteridade.”

O cineasta Frank Capra tinha passado por Brasília dias antes da vinda de Malraux. Durante seis horas, filmou a cidade de helicóptero, imagens que se perderam no tempo. De volta aos Estados Unidos, Capra enviou agradecimentos a Juscelino Kubitschek pela hospitalidade: “Numa época em que o mundo receia a sua destruição, o senhor está construindo e edificando, para o futuro, em tão emocionante escala que isso deve constituir, um tônico restaurador para um mundo deprimido”.

No fim de 1959, o Brasil não tinha nenhuma dúvida: o Rio de Janeiro não seria mais a capital do Brasil. Por mais absurdo que pudesse parecer quatro anos antes, Brasília seria mesmo inaugurada em 21 de abril de 1960.

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“A mais ousada”

André Malraux (ministro da Cultura da França em discurso proferido durante visita a Brasília em 25 de agosto de 1959)

“Sabeis — como sabem todos os artistas, mas como os governos não o sabem tão bem — que as formas de arte destinadas a perpetuar-se na memória dos homens são formas 'inventadas'. Nesta cidade que tem sua origem na vontade de um homem e na esperança de uma Nação, com as antigas metrópoles surgiram da vontade imperial de Roma ou dos herdeiros de Alexandre, o Palácio da Alvorada que edificastes, a catedral que haveis projetado nos trazem algumas das formas mais arrojadas da arquitetura, e, ante os esboços da futura Brasília, percebemos que a cidade inteira será a mais ousada que jamais o Ocidente haja concebido. Em nome de tantos monumentos ilustres que povoam nossa memória, graças vos sejam dadas por haverdes depositado confiança em vossos arquitetos para criar a cidade e em vosso povo para que lhe tenha amor. Tal ousadia, sabemos como alguns a temem, mesmo dentre amigos desses projetos, é possível que apreendam mal o que lhes confere decisivo valor histórico. É chegada a hora de compreender que a obra que começa a erguer-se diante de nós é a primeira das capitais da nova civilização.”


LEITURAS
» Arquivo Brasília, Lina Kim e Michael Wesely, Companhia das Letras, 2010
» Diário de Brasília 1959
» Revista Brasília, números 31, 32, 33, 34, 35 e 36


LINHA DO TEMPO

De julho a dezembro de 1959

Num dos primeiros dias de agosto, o cineasta Frank Capra sobrevoa Brasília de helicóptero, durante seis horas, para filmar as obras da nova capital.

AGOSTO
16 de agosto — Morre o marechal José Pessoa, aos 73 anos, três anos depois de deixar a Comissão de Planejamento e Mudança da Capital Federal. A revista Brasília dedicou uma página ao marechal.

19 de agosto — De acordo com o censo experimental realizado em 17 de maio de 1959, Brasília abriga 64.314 moradores, dos quais 42.332 são homens e 21.982, mulheres.

25 de agosto — O escritor, filósofo e ministro da Cultura da França, André Malraux, visita Brasília.

SETEMBRO
12 de setembro — Com uma ligação, Juscelino inaugura o circuito rádio-telefônico entre Rio de Janeiro e Brasília. No mesmo dia, aniversário de JK, fecha-se a barragem do Paranoá, dando início, assim, à formação do lago. O presidente inaugura trevos, viadutos e pavimentação asfáltica dos eixos rodoviários. JK lança a pedra fundamental da Catedral de Brasília, inaugura blocos de apartamento do IAPB e do IAPC e visita as obras do Hospital de Base.

15 de setembro — Lançada a pedra fundamental do Correio Braziliense.

17 de setembro — Instala-se em Brasília o Congresso Internacional de Críticos de Arte.

NOVEMBRO
7 de novembro — O antropólogo Gilberto Freyre visita Brasília pela segunda vez.

10 de novembro — O Catetinho passa a fazer parte das obras protegidas pelo então Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

23 de novembro — Inauguração da plataforma no cruzamento dos Eixos Monumental e Rodoviário. É a primeira parte da obra da Rodoviária.

24 de novembro — Lançada a pedra fundamental do Colégio Dom Bosco no Plano Piloto.

Concluídos 59 mil metros de tubulação, um reservatório definitivo e parte de uma adutora de um metro de diâmetro. Concluídos também 33 mil metros de rede de esgoto e 79 mil metros de águas pluviais. Está pronta a Barragem do Torto, a estrutura do Hospital Central (Hospital de Base). Já foram pavimentadas cerca de 300km de avenidas no Plano Piloto; 500 casas na W3 Sul estão prontas e muitas delas habitadas. A hidrelétrica de Cachoeira Dourada também já está pronta, com 28 mil kwas.

DEZEMBRO
Já estão parcialmente prontos os 11 primeiros edifícios destinados aos ministérios. Começam a ser construídas as tesourinhas de acesso às primeiras superquadras da Asa Sul. A Igrejinha, o Palácio da Alvorada e o Brasília Palace Hotel estão concluídos. O Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal já estão com suas estruturas prontas. As duas cúpulas do Congresso também foram concluídas. As torres gêmeas já alcançaram o 28º andar.

20 de dezembro — Inaugurado novo conjunto residencial da Fundação da Casa Popular com 840 apartamentos, em 28 blocos de três andares, construídos em 210 dias. São os edifícios JK.


LEIA NA EDIÇÃO DE 18 DE FEVEREIRO DE 2012
Como foi construída a Praça dos Três Poderes e o que ela representa para a cidade, o país e a democracia.
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"Basicamente brasileira"
Gilberto Freyre
(em entrevista à Rádio Nacional de Brasília em 7 de novembro de 1959) CORREIO 04.02

“Foi com a maior satisfação que, depois de um primeiro contato, espécie de aperitivo, com Brasília, voltei esta semana a ver de perto esta assombrosa criação brasileira, desta vez a convite do meu eminente amigo, o presidente Juscelino Kubitschek.

Sejam quais forem suas deficiências, neste ou naquele particular, Brasília é de certo um esforço que honra a capacidade de realização dos homens públicos, dos administradores, dos arquitetos, dos urbanistas, dos sanitaristas, dos educadores, dos técnicos e dos operários nele empenhados com um fervor que, em alguns, chega a ser um fervor místico ou religioso. Do ponto de vista artístico Brasília é qualquer coisa de maravilhoso. Continuo a pensar que lhe faz falta a presença, entre os orientadores da sua construção, do ecologista e dos cientistas sociais; e renovo daqui o meu apelo ao presidente da República e ao diretor Israel Pinheiro, no sentido de procurarem juntar, sem demora, esta colaboração efetiva ao esforço cada vez mais complexo que a construção de Brasília representa como um grande triunfo brasileiro no espaço tropical e no tempo moderno.

É evidente que Brasília se desenvolverá como uma cidade basicamente brasileira. Por conseguinte, com problemas comuns a outras cidades brasileiras. Por outro lado — tal é a sua modernidade, tal é a sua projeção sobre o futuro, como cidade situada no trópico, que vários dos seus problemas serão especificamente, vamos dizer, brasilianos e não apenas brasileiros.

Esses problemas, que acabo de chamar especificamente brasilianos, terão de ser considerados — e quando possível resolvidos, por administradores de visão na verdade larga, com a colaboração não só de urbanistas, arquitetos e artistas, mas — permita que insista neste ponto — de ecologistas e cientistas sociais, pois não nos esqueçamos de que Brasília não é uma criação do vácuo, mas dentro de uma ecologia — a tropical e condiconada pela situação do Brasil, pelas suas inter-relações internas (inter-relações das quais Brasília vai se tornar o centro) e pelas suas relações com o exterior: relações de uma já quase potência, não só continental como atlântica.

Não sei se se deva dizer que Brasília vai-se desenvolver como cidade de formação cosmopolita. A meu ver, se tal sucedesse, seria não a sua grandeza, mas, talvez, a sua desgraça. Brasília, a meu ver, deve desenvolver-se combinando o que nela é brasileiro com o que lhe virá, cada vez mais, de fora, sob a forma de boas e saudáveis influências de caráter cosmopolita.

Sou dos que acreditam de modo, posso dizer, absoluto, em que a interiorização da Capital é uma necessidade brasileira. Será um meio de tornar-se o Brasil um todo mais dinamicamente inter-regional e, por conseguinte, um todo verdadeiramente nacional.”
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LITERATURA »  Bienal de Brasília toma corpo
O angolano Ondjaki é um dos destaques da Bienal , que começa em 14 de abril CORREIO 04.02
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Aos poucos, a 1ª Bienal Brasil do Livro e Leitura começa a ter contornos definidos. Prevista para acontecer entre 14 e 23 de abril na Esplanada dos Ministérios, o evento vai ter como foco a literatura de língua portuguesa de países africanos e um time de autores latino-americanos. Em janeiro, a Secretaria de Cultura deu início à divulgação dos convidados e a lista já chega a 19 autores entre estrangeiros e brasileiros.

A homenagem aos africanos será realizada em forma de seminário que discutirá temas como a literatura contemporânea na África portuguesa e seus conteúdos. A moçambicana Paulina Chiziane, autora de Niketche  e outros romances que abordam o conflito entre a modernidade e as tradições na sociedade africana, é uma das convidadas ao lado de Conceição Lima, a voz mais importante da poesia contemporânea de São Tomé, e do angolano Ondjaki.

A participação dos autores de língua hispânica estará dentro da programação da Jornada Literária da América Hispânica, organizada pelo jornalista Eric Nepomuceno. Para falar sobre as temáticas que mobilizam esses autores e permeiam o imaginário da literatura produzida no continente desembarcam em Brasília o mexicano Guillermo Arriaga e o nicaraguense Sergio Ramírez. Arriaga é conhecido como o roteirista dos longas de Alejandro González Iñarritu, diretor de Biutiful e Babel. Entre os romances do mexicano publicados no Brasil estão Esquadrão guilhotina e Retorno 201.

Já Ramirez é autor engajado, participou da Frente Sandinista de Libertação Nacional, que ajudou a encerrar a ditadura de Anastasio Somoza no final dos anos 1970, e publicou recentemente Adios muchachos — A história da revolução, uma biografia do movimento sandinista. “A África e a literatura latino-americana ficaram meio esquecidas nos encontros literários dos últimos anos”, acredita Luiz Fernando Emediato, coordenador e curador da 1ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura. “Mas isso não significa que vamos deixar de fora autores de outros países.” Além da australiana Gill Pittar e do britânico Richard Bourne, o evento recebe o nigeriano Wole Soyinka, Nobel de Literatura em 1986. Entre os brasileiros já estão confirmados Fernando Morais, Lira Neto e Xico Sá.

Novas tecnologias
Emediato conta que teve dificuldade para confirmar presenças porque o evento coincidiu com as feiras literárias na Europa e na Bolívia. Ele queria trazer a chilena Isabel Allende, mas a autora de A casa dos espíritos participa de apenas dois eventos por ano e já estava com a agenda comprometida.

“E tem outra dificuldade: essa é a primeira bienal de Brasília e ainda não está no calendário internacional.” Umberto Eco também esteve entre as tentativas frustradas de Emediato, que pretende fazer uma mesa de debates sobre a situação do livro frente às novas tecnologias. “Vamos discutir essa polêmica falsa sobre o fim do livro”, explica.

“O livro é feito de palavras escritas num suporte que há apenas 500 anos se materializou.” Alguns convidados devem participar dos debates via telão. Também faz parte da programação da Bienal o Prêmio Brasília de Literatura, que tem inscrições abertas até 15 de fevereiro. Dividido nas categorias biografia, contos, crônicas, literatura infantil e juvenil, poesia, romance e reportagem, o prêmio contemplará com R$ 30 mil o primeiro colocado e R$ 10 mil o segundo.
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Nelson, cem anos (II)
O hidrante continua a jorrar Nelson. Não dá para interromper a inundação. É bebê-lo. CORREIO 04.02
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“O ser humano está mais para Lucho Gatica que para Paul Valéry”, “Mulher bonita é risco de vida”, “Sou um homem de muitas dúvidas e raríssimas certezas”, “Tinha a voz fininha de criança que baixa num centro espírita”, “Sexta-feira é o dia em que a virtude prevarica”, “A partir dos quarenta, qualquer quarto de hora faz diferença”.

“Um sarau de grã-finos é tão ressoante como uma concha marinha”, “Sua fala era de uma profundeza dessas que uma formiguinha atravessa a pé”, “A belle époque não foi bem uma época, mas um jardim. Um jardim cheio de faunos e ninfas de tapete”, “Seu pescoço, na estação cálida, exibia um colar de brotoejas”.

“Uma fecundidade radiante”, “De uma lucidez desesperadora, sabia tanto que não lia mais. Não lia nem cartão de visitas”, “A aragem marinha soprava nos decotes”, “A úlcera tinha contrações de víbora moribunda”, “A fome esvaziou-me e eu me sentia oco, sem entranhas, como um autopsiado”, “Depois da derrota injusta, a multidão tinha algo de tristeza fluvial em seu lerdo escoamento”.

“Nossos jogadores deslizavam na grama, como cisnes”, “Lemos, como Oliveira, é nome de vizinho. Um sujeito que se chama Lemos só pode ser vizinho”, “Vi uma grã-fina fazer o que não fazia desde a primeira chupeta: chorar”, “Se, em Dunquerque, a Inglaterra tivesse capitulado, os nazistas teriam feito provas hípicas montando brasileiros”, “É impossível não ter funda nostalgia dos quadris anteriores à Primeira Guerra Mundial. E naquele tempo, ninguém bebia um copo dágua sem paixão”.

“O copy desk reduziria os dez mandamentos a cinco”, “A confissão é, para a alma feminina, como um toque ginecológico sem luva”, “O prazer estético é igual ao orgasmo de uma cotia no Campo de Santana”, “Ponha o cretino em cima de um caixote de querosene Jacaré e mande-o falar. Ele dá um berro e imediatamente milhares de cretinos se arregimentam”.
       
           


“Hoje em dia, uma menina de onze anos é mais corrupta que um Calígula”, “Perfeito, irretocável como um velho soneto”, “Encontrei-me ontem com o Varanda, dono de um nome ventilado, paisagístico”, “Nos primeiros anos do futebol carioca, quando entrava um gol as mulheres desfaleciam, pareciam morrer em estertores. Os homens achavam sublime”.

Pastores, senhoras, crianças e babás tinham a mesma inconsciência que um bodinho de charrete”, “O psicanalista é uma comadre bem paga”, “Todo tímido é candidato a um crime sexual”, “Também há angústia na certeza”, “Um homem sentado não alcança jamais sua plenitude”, “Fez um gesto largo que parecia abranger do Presidente da República ao mata-mosquito”, Um dos achados da sociedade capitalista é mulher bonita, pobre e voraz”.

“Seu choro era grosso como um mugido”, “Uma dona de casa laboriosa, carregada de filhos e varizes”, “Exibia uma paciência de cambaxirra”, “Helena acariciou a própria nudez como uma lésbica de si mesma”, “No Rio do meu tempo, os mortos eram velados na sala de visitas ou de jantar e tinham a solidariedade de cadeiras, quadros, jarras, espelhos e moscas familiares”, “Amar é dar razão a quem não tem”.

“Era um ser atravessado de luz como um santo de vitral”, “Educação sexual é matéria que só devia ser ensinada por veterinários”, “Antes de Juscelino, o brasileiro tinha tanto complexo de inferioridade, era tão humilde que tinha medo até de ser laçado pela carrocinha de cachorro”, “Ônibus apinhado é o túmulo do pudor”, “Se um dia a vida lhe der as costas, passe a mão na bunda dela”.

“Abomino a velocidade. Ainda conservo o deleite dos bondes que não chegam nunca”, “Tenho horror a viagens. A partir do Méier, começo a ter saudades do Brasil”, “O brasileiro é o sujeito que planta bananeira até em velório”, “A moça tinha um lindo perfil de moeda”, “Um frívolo piparote”, “Aristides sapateava como num transe mediúnico”, “Olheiras rolha queimada”, “Nunca o seu riso teve, como naquele momento, uma dilatação de parto”.

“Três a dois é um escore arquejante”, “A cama é um móvel metafísico”, “Meu amigo vive feliz e realizado como um peixinho de aquário na sala de visitas”.

Eis Nelson, de corpo e alma.

”O brasileiro é um sujeito que gosta de fazer farra. Desses que, em pleno velório, passa a mão na viúva”

Ah, Nelson!
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Peças que contam uma vida
Em entrevista ao Correio, o norte-americano Stephen Greenblatt fala sobre Como Shakespeare se tornou Shakespeare, biografia que escreveu sobre o maior dramaturgo do mundo moderno CORREIO 04.02
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O maior desafio de um biógrafo diante da figura de William Shakespeare é a dificuldade em encontrar provas de fatos picantes e documentação capaz de guiar o investigador por uma vida cheia de intrigas. Não, Will não foi uma figura excitante do ponto de vista biográfico. Foi apenas — o que já era muito no século 16, no qual nasceu — um filho de luveiro de Stratford, pequeno povoado no centro da Inglaterra, com surpreendente capacidade de escrever sobre conflitos atemporais e universais. É um ponto de vista. Mas é inevitável enxergar muito mais que a simplicidade na vida de Shakespeare. Stephen Greenblatt, professor da Universidade de Harvard, um dos maiores pesquisadores da era elisabetana, resolveu encarar as fontes escassas e as tentações de pescar nas peças a vida do autor para escrever Como Shakespeare se tornou Shakespeare, um mergulho nada ficcional no universo que rodeou a vida do dramaturgo.

Inteligente e perspicaz, Greenblatt contornou o perigoso desejo de inferir fatos a partir das obsessões que assombram os personagens shakespereanos. Quando não tem provas, o pesquisador nada afirma. Isso não impede as insinuações. Greenblatt mune o leitor de todas as informações existentes sobre a trajetória de Shakespeare e ainda sugere algumas associações, mas acreditar nelas ou descartá-las como devaneio fica por conta da imaginação.

William Shakespeare nasceu em 1564 em Stratford-upon-Avon, cidade de comerciantes católicos que muito sofreu com as reformas protestantes da rainha Elisabeth. Filho de um fabricante de luvas e de uma herdeira de boa família, o garoto teve vida boa, embora tenha passado ao largo de uma educação de elite. Ainda na adolescência, engravidou a namorada, Anne Hathaway, seis anos mais velha, e casou-se antes do nascimento de Susanna, a filha querida para a qual deixou toda a fortuna da família ao morrer, em 1616. Antes de completar 20 anos, Shakespeare deixou a família em Stratford e rumou para Londres.

Pouco se sabe sobre o que aconteceu nos intervalos entre a infância e o casamento, a mudança para a capital e o início das atividades no teatro. Biógrafos já apontaram um processo criminal, possivelmente por roubo de coelhos, como a causa da mudança para Londres. Outros chegaram a afirmar que o dramaturgo teria trabalhado como guardador de cavalos — uma versão antiga de guardador de carros — antes de revelar a verve dramática. A maioria das especulações não faz muito sentido. O pai de Shakespeare foi um grande comerciante cuja decadência se fez notar em Stratford, mas nunca chegou a perder tudo. E é pouco provável que o filho tenha enfrentado condições de miséria ou pobreza.

           
Como Shakespeare se tornou Shakespeare De Stephen Greenblatt. Tradução: Donaldson M. Garschagen e Renata Guerra. Companhia das Letras, 456 páginas. R$ 59.


Lacunas
Greenblatt gosta de pensar nas peças como uma espécie de respostas às lacunas. Muito do ocorrido na vida de Shakespeare pode estar nas obsessões desenvolvidas nos mais de 36 textos publicados ao longo dos 52 anos de vida. O ciúme doentio de Otello, a vingança de Hamlet, a traição em Rei Lear ou o amor que mata em Romeu e Julieta são verdadeiras tentações diante de escassa documentação. Greenblatt explora todas as possibilidades, mas o mais interessante está no que os registros de época são capazes de provar.

Shakespeare cultivava obsessão real pela condição de cavalheiro tão explorada em diversas comédias e tragédias. Vestiu seus personagens com as melhores roupas e tratou de rechear as peças de cavalheiros. Quando conseguiu se estabelecer e fazer fortuna, travou verdadeira batalha para convencer os nobres de que merecia um lugar na história e comprou um brasão para a família. Sobre o casamento com Anne, pouco se sabe além do fato de que passaram boa parte da vida separados. Em Stratford, a mulher se ocupava dos três filhos — duas meninas e o garoto Hamnet, morto aos 11 anos —, enquanto a carreira no Globe Theatre dava frutos. A distância física entre o casal faz os biógrafos delirarem quanto a traições e paixões proibidas.

Não há provas concretas, mas causa estranheza, por exemplo, documentos como o testamento de Shakespeare. Ele deixou para a filha Susanna toda a fortuna, quase nada para a mais nova, Judith, e apenas a cama de casal para a mulher, Anne. O detalhe pode indicar o caráter irascível do dramaturgo ou os problemas conjugais de um casamento precoce. “Se esse é um exemplo da terna lembrança de Shakespeare, é de dar arrepios a ideia de como seria um de seus insultos. Mas a ideia de ternura é com certeza um devaneio absurdo; trata-se de uma pessoa que passou a vida imaginando nuances extremamente precisas de amor e dilaceramento”, escreve Greenblatt. De fato, há poucos (para não dizer nenhum) casais bem-sucedidos nas peças do inglês. As esposas — quando citadas — na maioria das vezes já morreram. A exceção está em Gertrudes e Cláudio, de Hamlet, e Macbeth e sua Lady, os casais mais poderosos das tragédias shakespereanas.

As últimas palavras do dramaturgo teriam sido as que dizem respeito à própria morte. Não se sabe ao certo o porquê, mas, em 1610, Shakespeare decidiu voltar a Stratford definitivamente. Morreu seis anos depois e tomou o cuidado de deixar um epitáfio no qual amaldiçoa quem tentar remover seus ossos da igreja da cidade. William Shakespeare, aparentemente, tinha pavor de pensar na mistura de seus restos com o de outros mortais comuns. Ou talvez não quisesse a presença de Anne na mesma tumba. O fato é que, como tudo que cerca o dramaturgo, os historiadores nem sequer têm certeza da autoria do epitáfio.

 Abaixo, Stephen Greenblatt fala sobre a pesquisa para escrever a biografia e as tentações de preencher os silêncios com indícios colhidos nas peças. Para o biógrafo, só a época em que o dramaturgo viveu já é fonte poderosa. “Foi um momento em que a vida parece ter sido vivida com excepcional intensidade.”

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Inclusão digital sustentável
O Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) começou a sair do papel no fim de agosto do ano passado, CORREIO 04.02
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quando a população do município goiano de Santo Antônio do Descoberto foi a primeira a ser agraciada com o serviço de internet de alta velocidade a preços mais acessíveis. O programa fez com que o Governo Federal e a sociedade civil passassem a discutir questões mais amplas, que extrapolam o preço final cobrado pelo serviço como, por exemplo, a qualidade e a velocidade de conexão que, com certeza, vão impactar de diferentes formas a vida da população de baixa renda. Certamente esses pontos são fatores muito importantes quando falamos em universalização do serviço, porém não são suficientes para pôr fim à exclusão digital, pois sua solução não se limita a ter ou não um computador conectado à internet. É importante saber se realmente as pessoas das classes C, D e E estão capacitadas para usá-lo de maneira adequada e produtiva. Não saber como se apropriar da tecnologia também é uma forma de exclusão digital, e o Brasil ainda possui 110 milhões de pessoas (58% da população) que não costumam ter contato com a internet, seja em casa, no trabalho ou por meio de uma lan house – segundo dados recentes do Ibope Nielsen. Isso quer dizer que mais da metade do país ainda é excluída digitalmente, eles não têm noção do que é possível ser feito na rede mundial de computadores ou dos riscos que existem nela. Para se ter uma política de inclusão digital eficaz é preciso envolver os três setores da economia: ONGs, Governo e empresas privadas. Mais que levar computadores ou acesso à internet a todos os municípios brasileiros, é necessário construir um sólido modelo de gestão, elaborar uma política pedagógica de qualidade — que ensine a população a se apropriar da tecnologia como ferramenta cidadã —, de acompanhamento, avaliação e capacitação contínuos. E isso só pode ser desenvolvido por meio de um processo cocriativo e de gestão compartilhada com essas três esferas da sociedade civil. Além disso, é fundamental associar essa ação a uma política consistente de descarte apropriado do lixo tecnológico. O reconhecimento da importância de universalizar o acesso à internet levou, no início de janeiro, o Ministério das Comunicações a anunciar que o Governo tem planos de criar uma espécie de um PNBL para celular, focado em consumidores que não têm renda para contratar um serviço fixo de R$ 35 pelo Plano Nacional de Banda Larga tradicional. A ideia é que as operadoras vendam pacotes de serviços que darão direito a fazer uma quantidade "x" de ligações pelo telefone móvel para qualquer operadora e acessar a internet pelo aparelho. Sabemos que o caminho da inclusão digital passa, legitimamente, pelo uso da telefonia celular em um futuro próximo. De acordo levantamento da Associação Brasileira de Telecomunicações (Telebrasil), o país fechou 2011 com quase 58 milhões de acessos em banda larga, sendo que — deste total — 41,1 milhões são oriundos de banda larga móvel (via celular 3G ou modem) e 16,7 milhões são provenientes de banda larga fixa. Isso mostra que hoje a maior parte dos acessos à internet é feita por telefonia móvel. Daí a importância de se criar um PNBL voltado especificamente para esse meio. O fato é que um país incluído digitalmente não depende apenas do uso da ferramenta, mas da capacidade da população de se apropriar dela, com objetivo de produzir e publicar conteúdo relevante. E é essa visão abrangente que o Governo precisa para desenvolver uma política de acesso à web onde a internet se torne uma importante via de empoderamento e libertação, que auxilie o país a ser mais competitivo no século XXI.
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DECISÃO DO STF MINA 'ELITISMO DO JUDICIÁRIO', DIZ CORREGEDORA
CORREGEDORA CRÊ EM FIM DE "CULTURA ELITISTA E CORPORATIVISMO" NO JUDICIÁRIO
O Estado de S. Paulo - 04/02/2012
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Ministra comemorou resultado de julgamento no STF que restabeleceu autonomia do CNJ para investigar magistrados Emocionada e com agradecimentos ao "povo brasileiro", a corregedora nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon, considera que o resultado do julgamento do Supremo Tribunal Federal na quinta-feira - que por 6 votos a 5 manteve os poderes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de investigar e processar juízes - é um golpe contra a cultura elitista e o corporativismo do Judiciário. À frente das investigações de condutas suspeitas de magistrados, Calmon foi criticada por colegas de toga por expor o Judiciário e acusada de violar os sigilos bancários e fiscais da classe. "Estamos removendo 400 anos de representação elitista dentro do Judiciário (...) A modernidade vai tomando conta dos espaços públicos e deixando engessados os movimentos corporativistas", afirmou a corregedora ao Estado. Calmon afirmou que, em 32 anos de magistratura, nunca viu discussão "tão ampla e tão participativa do ponto de vista de todos os segmentos da sociedade, desde as pessoas mais simples até os juristas mais renomados". "Isso é histórico. Estamos no caminho para uma democracia plena", acrescentou. Como a sra. recebeu o resultado do julgamento no Supremo? O resultado, que não é definitivo, foi muito importante para a cidadania. O julgamento foi extremamente positivo, pois os ministros discutiram duas teses distintas. A sociedade participou (do debate). A decisão atende ao anseio popular. Como cidadã fiquei muito satisfeita. E como magistrada? Como magistrada também, porque ficou asseverado que a Corregedoria Nacional tem garantida sua competência correcional. Sabendo disso, as corregedorias locais terão mais cuidado ao julgar seus pares. E foi isso o que sempre advogamos. Naturalmente o meu trabalho agora fluirá melhor. Se a tese da subsidiariedade fosse vencedora, eu teria alguma dificuldade. Mas há alguns aspectos que ainda precisam ser julgados pelo STF. Isso ainda atrapalha as investigações da Corregedoria? Não e sim. Alguns aspectos da resolução 135 (contestada pela Associação dos Magistrados do Trabalho) ainda precisam ser definidos pelo STF, o mandado de segurança (contra investigação na folha de pagamento dos tribunais e nas declarações de bens e rendas de magistrados) ainda será julgado. E isso será feito com critério e serenidade pelo tribunal. Para mim, são aspectos menores. O que a sra. considera mais importante neste julgamento? Primeiro, a publicização do julgamento. O julgamento em público é um grande aliado contra a corrupção. Como disse o ministro Ayres Britto, a Constituição de 1988 não aceita mais essa cultura do biombo. Em segundo, a garantia do poder correcional do CNJ. O resultado blinda o Conselho de movimentos corporativistas? Estamos removendo 400 anos de representação elitista dentro do Judiciário. Não é fácil. Há um contexto ideológico nessa discussão. Mas a modernidade vai tomando conta dos espaços públicos e vai deixando engessados os movimentos corporativistas. Desses avanços eu penso que não há mais retorno. Não estou cantando vitória antes do final do julgamento. Mas as discussões travadas pelos ministros me levam a acreditar nisso. Pessoalmente a sra. fica mais aliviada com esse resultado? Nunca levei isso para o lado pessoal, apesar de ficar triste por saber que colegas de toga me viam como criminosa. Mas isso passou. Tenho a impressão que não houve discussão ou direcionamento pessoal nesse caso. Alguns até dizem que gosto de microfones. Não é isso. Mas nessa discussão, a imprensa tem papel importante, é grande aliada. Acabei simbolizando um movimento de abertura do Judiciário. Houve enfrentamento entre magistrados e a Corregedoria. Como fica a situação agora? Do ponto de vista institucional não pode haver mágoa. Acabou. O STF dará a última palavra e será a hora de apagar as mágoas e estabelecer parcerias. Terminado o julgamento, será a hora de cooperação. A Corregedoria Nacional, as corregedorias locais e as associações devem se dar as mãos.
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Precisamos falar sobre Shriver
Apesar de ter nascido no Estados Unidos, Lionel Shriver  escolheu morar na Inglaterra, onde vive há mais de 20 anos. Talvez não seja coincidência, por isso, que os livros da escritora pareçam ter dupla nacionalidade: observam a América através de um filtro cruel que só pode ter sido fabricado “in Britain”. CORREIO 04.02

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O best seller Precisamos falar sobre o Kevin, de 2003, trata de um trauma americano — crimes juvenis como o massacre de Columbine, onde 12 alunos foram mortos por uma dupla de adolescentes, em 1999. Mas se tornou um fenômeno editorial principalmente no Reino Unido, onde a autora venceu o Orange Prize, em 2005.

A adaptação cinematográfica do livro, que está em exibição em Brasília, é assinada por uma cineasta britânica. Faz sentido. Apesar dos excessos de um filme que apela para clichês do horror, a escocesa Lynne Ramsay entende uma das características mais elogiáveis da escritora: a capacidade de mirar assuntos atuais, como que pescados de revistas semanais, sempre por um viés doméstico, íntimo e, também por isso, polêmico. O conflito entre os sentimentos do indivíduo e a vigilância de uma sociedade conservadora tensiona a prosa (nada sofisticada, diga-se) de Shriver — até porque a própria autora sempre se viu como uma “outsider”.

           

Esse desmonte de uma certa ilusão americana já aparecia no livro Dupla falta — que, escrito antes de Precisamos falar sobre o Kevin, foi reeditado em 2007 na Inglaterra e acabou de ganhar tradução brasileira pela editora Intrínseca. Sem tanto potencial para burburinho em programas de tevê — convenhamos, não há como competir com romance sobre a relação entre um filho psicopata e uma mãe em desespero —, ele pertence àquela mesma paisagem: os personagens são concebidos à semelhança de um país competitivo, atlético e vistoso, ainda que prestes a ruir.

Superficialmente, porém, o livro não parece ser nada disso. Ele se apresenta como um drama matrimonial, e também pode ser lido como uma crônica esportiva. O circuito do tênis é o palco da trama, onde a boa performance é medida por oscilações num ranking implacável. Willy Novisnsky, que treina desde criança, ocupa a 437ª posição. O novato Eric Oberdorf se vira com o status de lanterninha, em 972º. Eles se encontram, namoram e decidem se casar. Eis que, numa dessas reviravoltas tão típicas de torneios amadores, Eric dispara ao top 100 enquanto Willy congela, e cai.

O amor resiste à disputa por status e reconhecimento? Shriver, que não é de finais felizes, acredita que talvez não. Ou que, cética, o casamento seria uma longa partida que arrefece naturalmente, condenando os jogadores a um lento espetáculo de degradação. Para quem o lê dessa forma, Dupla falta pode descer como um thriller psicológico tão perturbador quanto Precisamos falar sobre o Kevin. Muito se fala sobre o talento de Shriver para o gênero. No entanto, parece-me que a escritora quer algo mais: medir a temperatura de uma nação que alimenta e aplaude essas pequenas tragédias morais. Seria tudo isso? Vamos acompanhá-la.

“O centro de toda a literatura é a grande questão da memória”

W.G. Sebald

AS CINCO
Adaptações literárias ousadas (e ARRISCADAS) que chegam às telas em 2012

1.
Cosmopolis
A pequena provocação de Don DeLillo promove o bizarro encontro entre o diretor David Cronenberg e o astro da saga Crepúsculo, Robert Pattinson.

2.
A vida de Pi
Infilmável? Não é a opinião do chinês Ang Lee (O tigre e o dragão), que interpreta o best seller de Yann Martel. Já está cotado ao Oscar 2013…

3.
O grande Gatsby
O australiano Baz Luhrmann, de Moulin Rouge, não é cineasta de gestos sutis. O clássico de F. Scott Fitzgerald, portanto, será turbinado por efeitos 3D.

4.
Anna Kariênina
O inglês Joe Wright já adaptou Jane Austen (Orgulho e preconceito) e Ian McEwan (Desejo e reparação). O que fazer em seguida? Tolstói, é claro.

5.
O hobbit
No megalançamento do ano, Peter Jackson volta à mitologia de O senhor dos anéis para reler o romance de J.R.R Tolkien que antecede a saga.


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O silêncio de Kenzaburo Oe
Contos do autor japonês são reunidos em edição brasileira pela primeira vez
Nobel de Literatura em 1994, Oe brinca com o descompasso entre os mundos subjetivo e real CORREIO 04.02

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O japonês Kenzaburo Oe, Prêmio Nobel de Literatura de 1994, está mais próximo do leitor brasileiro. Acaba de sair uma coletânea de contos publicados entre 1957 e 1990. Ordenados cronologicamente, os textos dão um belo panorama do escritor, tido como um dos principais autores de seu país na segunda metade do século passado.

Portanto, 14 contos de Kenzaburo Oe é isso mesmo que o título anuncia — uma iniciativa da editora Companhia das Letras e fruto do empenho pessoal de Leiko Gotoda, que escolheu os textos mais significativos, traduziu-os diretamente do japonês e organizou o volume. Ela já traduzira outros japoneses contemporâneos, como Haruki Murakami (Caçando carneiros) e Jun’ichiro Tanizaki (Diário de um velho louco) para a Estação Liberdade, além de Jovens de um novo tempo, despertai!, do próprio Oe, para a Companhia das Letras.

O romance Jovens de um novo tempo, aliás, ganhou em 2011 uma reedição. Ao lado de Uma questão pessoal, era um dos poucos títulos de Oe em catálogo no país. Daí a importância deste 14 contos, que amplia a parca bibliografia do autor por aqui — e o apresenta como contista.

Ao longo das cinco décadas compiladas por Leiko, o leitor percebe como Kenzaburo Oe, que completou 77 anos em 31 de janeiro, desenvolveu-se como escritor aproveitando os vários aspectos que a narrativa curta tem a oferecer a um ficcionista: o relato em primeira pessoa, o espírito de crônica do cotidiano, o conto fantástico, o ensaio literário, a estória de fundo moral...

           
14 contos de Kenzaburo Oe De Kenzaburo Oe. Tradução de Leiko Gotoda. Companhia da Letras, 456 páginas. Preço: R$ 59.

“O armazém zoológico” (1957), que abre a coletânea, nem bem chega a ser um conto. Corteja o teatro do absurdo num formato de texto teatral, um exercício curtinho de um único ato. Oe tinha apenas 22 anos, ainda estava em formação, e exposto a uma forte influência de Kafka. O texto mais recente é “A dor de uma estória” (1990), um conto com jeitão de ensaio sobre Louis-Ferdinand Céline e claro fundo autobiográfico.

Nesse intervalo de mais de 40 anos e cerca de 400 páginas entre o primeiro conto, quase teatro, e o último, quase ensaio, formou-se Kenzaburo Oe — e não apenas como escritor. Os primeiros textos recendem a um existencialismo do pós-guerra. “Salte sem olhar” (1958), nesse aspecto, traz aquelas mesmas questões morais & éticas que habitavam a literatura de Jean-Paul Sartre nos anos 1950 e 1960.

Descompassos
Se algumas de suas referências intelectuais são ocidentais, Kenzaburo Oe estabelece em contos como “Salte sem olhar ou Seventeen” (1961) o paradoxo específico da situação japonesa. Como ser pacifista e antimilitarista num país pequeno que, historicamente, teve de fazer frente aos gigantescos impérios ali vizinhos? Como abraçar a cultura ocidental após a Segunda Guerra ter terminado como terminou? Como ainda se pode pensar em ter filhos depois de o Japão ter passado pelo que passou? Questões como essas nem são necessariamente verbalizadas pelos personagens jovens de Oe, apenas aparecem e reaparecem aqui e ali.

Aliás, boa parte da literatura de Oe ocorre no que não é dito. Uma atitude essencialmente japonesa, essa, conforme aponta o escritor e jornalista Arthur Dapieve no prefácio. Dapieve chama de “silêncio significativo” essa elipse, essa omissão frequente no centro dos textos de Oe. Assim, “Seventeen” é narrado por um garoto de 17 anos estourando em hormônios. Oe descreve minuciosamente as atividades masturbatórias do rapaz, em permanente conflito e em permanente deslumbramento com o próprio corpo. Até que o silêncio em casa sobre o assunto domina o jovem narrador, domina até suas palavras, encobrindo a pulsão sexual ali latente — pulsão que mais adiante encontrará outras maneiras de extravasar — não apenas neste conto, também em outros tantos.

A literatura de Kenzaburo Oe funciona no descompasso entre o mundo subjetivo e o mundo real. Ciente disso, Oe se põe mesmo a brincar nesse vão. Em “Os pássaros” (1958), um jovem se vê cercado de aves, que ele deixa entrar em seu quarto e por ali fazer ninho e tal. Oe espicha esse cenário surrealista em vigorosas descrições — cheiros e pios, plumagens e cores. Reúne elementos do fantástico e do absurdo para deixar o leitor em permanente dúvida sobre o que é real, o que é fantasia, o que é ficção dentro da ficção.

Num outro golpe, anos e anos mais tarde, em “Viver em paz” (1990), ele traz de supetão para dentro da ficção aspectos que sabemos verdadeiros de sua vida. Kenzaburo Oe tem um filho com deficiência mental, ele próprio trata disso no romance Uma questão pessoal, e então o alheamento transborda sua função poética e ganha um palpável signo autobiográfico.

“Em outro lugar” é um texto de 1959 que já deixava evidentes o silêncio & a distância entre os personagens de Oe. Um jovem casal de namorados se hospeda em um hotel bacana para um fim de semana de sossego e bom namoro. Ele está prestes a pedi-la em casamento. Mas vacila. Por um instante, pensa que aquela vida não é a dele, não pode ser... Ele se permite imaginar o quanto gostaria de estar em outro lugar qualquer. Por um breve instante chega mesmo a estar em um outro lugar qualquer. Por um breve instante e...

“A oportunidade de partir se perde para sempre por puro acaso.”

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Literatura
Auster critica a Turquia por prisão de intelectuais O POPULAR 04.02

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O autor americano Paul Auster, 65 anos, declinou o convite para ir à Turquia como forma de protesto contra a centena de intelectuais presos naquele país. “Não viajo para lugares onde não há leis democráticas", disse ao jornal turco Hürriyet. Por sua vez, o primeiro-ministro da Turquia, Tayyip Erdogan, o chamou de “ignorante", por ter viajado para Israel, “que bombardeia a Faixa de Gaza". Auster retrucou que, “apesar dos problemas, lá existe liberdade de expressão". O novo livro de Paul Auster, Winter Journal (Diário de Inverno) está sendo lançado na Turquia, antes de sair nos Estados Unidos.

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O samba em três gerações
No Cruzeiro, a família Silva é sinônimo de carnaval animado. Foi por iniciativa do patriarca, Francisco de Assis Silva, o Chico Bombeiro, que nasceu a Aruc. O fundador já morreu, mas a matriarca do clã continua à frente de filhos, netos e bisnetos para garantir o sucesso da folia correioweb  04.02

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Dona Cecília entre os familiares: "Se eu sarar dos meus pés, ainda vou sair pelo menos mais uma vez"

Os Silvas se formaram, cresceram e envelheceram ao som dos tamborins. Basta um dia de folga, com sol ou chuva, para que a árvore ao lado da casa da família vire uma quadra de samba com direito a bateria, cantores e passistas. Não tem fim de semana em que a área verde da Quadra 8 do Cruzeiro Velho não se encha de parentes dispostos a celebrar as felicidades e tristezas da vida, como se estivessem na avenida.  “Está no sangue. Puxamos essa bagunça do meu pai”, dispara Fernando de Assis, 60 anos, o filho mais velho.

A paixão pelos pandeiros surgiu com o patriarca Francisco de Assis da Silva, o Chico Bombeiro. Ele passou a infância e a adolescência no Rio de Janeiro. Quando se mudou para a nova capital do país, no fim da década de 1950,  amadureceu com os amigos a ideia de criar uma agremiação nos melhores moldes cariocas. E assim surgiu a Associação Recreativa Unidos do Cruzeiro (Aruc).

O amor que Chico tinha pelos acordes do tarol e do pandeiro contagiou três gerações. O patriarca se foi em 1995, mas deixou para todos a lição de que o samba não pode morrer. “A gente faz carnaval todo dia. Quando não estamos brigando, estamos em festa”, descreve Fernando, o primogênito, que herdou o apelido do pai. “É a melhor maneira de encarar a vida”, emenda o irmão Júlio César, 45 anos, o Mestre Boca, do repique.

Atualmente, a matriarca, Cecília Lopes da Silva, os sete filhos, os 14 netos e os cinco bisnetos têm orgulho de carregar nas lembranças e no presente os bons momentos proporcionados pela magia do carnaval. Aos 82 anos, Dona Cecília, que em breve será tataravó, prefere não se arriscar na Ala das Baianas, como fez incontáveis vezes nas passarelas candangas. “Sinto falta de tudo aquilo. Se eu sarar dos meus pés, ainda vou sair pelo menos mais uma vez na avenida”, planeja, sentada em frente à casa onde viu a vida passar como em um bloco de carnaval.

Talento hereditário
Toda vez que se reúnem, os Silvas se dão conta de que têm histórias de muitos outros carnavais. Maria de Fátima, 51 anos, a terceira filha do casal e primeira nascida em Brasília, estreou na avenida aos 3 anos de idade. Não era W3 Sul, Eixão nem Ceilambódromo. O desfile ocorreu nas ruas recém-abertas do Cruzeiro Velho. Na adolescência, aprendeu a desenhar e costurar as fantasias. Virou passista, assim como as irmãs Márcia Regina, 47, e Marta Valéria, 44.

A relação com o samba é vista como algo especial. Júlio César observa que a maioria da família sabe dançar ou tocar algo que remeta ao carnaval. “É um dom. Todo mundo começa com um instrumento pequeno, como um chocalho, até encontrar o que mais gosta”, avalia Mestre Boca.

Se depender da paixão dessa família pelos atabaques e tamborins, o carnaval de Brasília terá muito o que ganhar. “Antes, era puro amor. Hoje, o carnaval evoluiu, virou empresa. Mas a gente tenta manter o que era antes. Vou sempre lutar pelo carnaval de Brasília”, afirma Mestre Boca.

           
Chico Bombeiro, nos tempos em que a escola começava a atuar


Suvaco da Asa
Inspirada na folia pernambucana, a tradicional troça carnavalesca Suvaco da Asa dá início, às 10h, na Quadra 10 do Cruzeiro Velho, em frente ao Quiosque da Codorna, às festividades de Momo. O evento é aberto ao público e reúne foliões de todas as idades. A entrada é franca, e as camisetas do Suvaco da Asa são vendidas a R$ 20 (infantis) e R$ 25 (adultas). A Orquestra Popular Marafreboi acompanhará o percurso, e a programação será encerrada às 17h.

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Jovens apanham ao impedir agressão a morador de rua
Vítimas receberam socos e pontapés ao defender homem que era espancado FOLHA SP 04.02
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Dois jovens, de 20 e 21 anos, foram agredidos na madrugada de anteontem quando tentavam defender um morador de rua, na Ilha do Governador, zona norte do Rio.

Os dois tentaram evitar que a vítima fosse surrada por seis jovens. Ao intervir, receberam socos e chutes. O crime ocorreu na praça Jerusalém, no Jardim Guanabara.

Vítor Suarez Cunha, 21, está internado em um hospital do bairro. Ele sofreu afundamento de crânio, fratura de ossos da face e teve vários dentes quebrados. Deverá ser submetido hoje a uma cirurgia plástica reparadora no rosto.

Kleber Carlos Silva Sousa, 20, que o acompanhava, foi segurado por um dos agressores para impedir que ajudasse Cunha a escapar do ataque.

"Era por volta de 1h30 quando vimos seis caras em cima de um mendigo. Pedi para pararem, mas levei um soco por trás. Vítor tentou me defender e foi todo mundo para cima dele", contou à Folha Sousa, que reconheceu três agressores como Tadeu Assad, William Bonfim e Rafael Zanini. Os dois primeiros foram presos na noite de ontem.

A Folha tentou contato com os três, sem sucesso. Na delegacia, uma advogada disse que representava os presos, mas não quis se identificar nem dar declarações.

Segundo Sousa, um dos jovens disse que estava tentando expulsar o mendigo do local para que seu pai, que caminha sempre na praça, não tivesse que passar por ele.

O jovem disse que o grupo frequenta a praia da Bica, perto do local das agressões.

O técnico de informática Vinícius Suarez Cunha, 28, irmão de Vítor, disse que a mãe deles, Regina Fusco Suarez, é assistente social da prefeitura e trabalha em um abrigo.

"A gente entende a realidade dessas pessoas e ele ficou chocado ao ver o mendigo sendo agredido. Aquilo não foi briga, foi tentativa de homicídio." O morador de rua não foi identificado.


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Fotobiografia ilumina vida e obra do poeta Fernando Pessoa
Volume, elaborado por Richard Zenith e Joaquim Vieira, refaz a trajetória do autor português e reúne mais de 400 imagens sobre ele FOLHA SP 04.02


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Quando morreu, em 1935, aos 47 anos, Fernando Pessoa tinha apenas um livro de versos em português, "Mensagem" (1934), e alguns poemas espalhados pela imprensa. Foi o suficiente para ser saudado como o "grande poeta de Portugal".

Nas décadas seguintes, contudo, descobriu-se que isso era apenas uma ínfima parte da produção de Pessoa. Além de um conjunto de textos inéditos, veio à tona que os heterônimos iam muito além dos já conhecidos Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.

Esse baú secreto ganha agora as páginas da "Fotobiografia de Fernando Pessoa", livro com texto do americano Richard Zenith, especialistas em Pessoa, e organizado pelo português Joaquim Vieira.

O livro reúne mais de 400 imagens, incluindo fotos raras do poeta, sua família e amigos, além de manuscritos, diários, documentos, cartas e recortes de jornais.

Vieira pesquisou em arquivos de Lisboa para encontrar fotos dos lugares nos quais o poeta morou e trabalhou.

Zenith fez o mesmo em Durban (África do Sul), onde Pessoa viveu dos sete aos 17 anos. "Nenhum dos edifícios em Durban onde ele morou ou estudou existe hoje. Não foi nada fácil desencavar as fotografias", conta Zenith.

Pessoa raramente se referia aos anos que passou em Durban, mas, para Zenith, é fundamental a influência dessa fase na obra do autor.

"A cultura e o ambiente de Durban, bastante europeu e mesmo anglo-saxônico, marcaram muito o rapaz. O sentido de humor de Pessoa é mais inglês do que português, por exemplo."

Para os fãs do poeta, são muitos os atrativos. O primeiro poema conhecido de Pessoa, escrito aos sete anos, aparece transcrito. A vocação precoce também se manifestava nos jornais que criou, como "O Palrador" (1903).

Da fase adulta é possível ler as cartas trocadas com Ofélia, seu único relacionamento amoroso conhecido, manuscritos de poemas famosos e mapas astrais que fez para ele mesmo, seus heterônimos e seus autores favoritos, como Shakespeare.

Outro fato curioso relatado pelo volume diz respeito à censura sofrida por Pessoa em 1935, durante o Estado Novo português, por conta de um texto em que criticava o projeto de lei que visava suprimir a maçonaria.

Uma circular dos Serviços de Censura à Imprensa, emitida em fevereiro daquele ano e reproduzida no livro, proibia referências ao artigo.

FOTOBIOGRAFIA DE FERNANDO PESSOA
AUTOR Richard Zenith
ORGANIZAÇÃO Joaquim Vieira
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 67 (264 págs.)


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Ícone da resistência, Rodolfo Walsh tem livro lançado no país
"Variações em Vermelho", inédito no Brasil, é a obra de estreia do argentino, morto pela ditadura nos anos 1970
Volume experimenta com gênero policial; seu personagem é uma espécie de alter ego do próprio escritor FOLHA SP 04.02

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A obra de ficção do argentino Rodolfo Walsh (1927-1977) ganha edição brasileira num momento em que o escritor vem se transformando em ícone da resistência à ditadura dos anos 70 em seu país. O conjunto estava inédito no Brasil (exceto por alguns contos que saíram em coletâneas passadas).

Também tradutor e jornalista, Walsh é autor, entre outros, do clássico do jornalismo investigativo latino-americano "Operação Massacre" (1957). Na política, atuou como militante montonero (guerrilha de esquerda).

A editora 34 começou a lançar sua ficção em português em 2010, com "Essa Mulher e Outros Contos". Agora, chega às livrarias do Brasil o segundo volume, "Variações em Vermelho".

Enquanto isso, em 2011, a Justiça argentina, que vem condenando os responsáveis por crimes cometidos pelo Estado argentino durante a ditadura (1976-1983), determinou a prisão perpétua de 12 responsáveis por torturas e desaparições no centro de detenção da ESMA (Escola Mecânica da Armada), relacionados com o caso Walsh.

O escritor terminou seus dias executado numa esquina do centro da cidade por um comando militar, em 25 de março de 1977. Aspectos da morte ainda são investigados.

"Variações em Vermelho" é o livro de estreia do escritor e foi lançado em 1953. Nele, Walsh experimenta com o gênero policial, do qual era admirador desde que trabalhara para a editora Hachette, revisando e traduzindo obras dessa vertente.

Além disso, Walsh tinha como principal referência os trabalhos de Jorge Luis Borges (1899-1986), um fã confesso do gênero.

No texto "Dois Mil e Quinhentos Anos de Literatura Policial", que está no volume, Walsh faz uma análise sobre o histórico do estilo, de certa forma inserindo-se nele.

O escritor é herdeiro de uma longa tradição literária argentina vinculada ao policial. Dela fazem parte, além de Borges, Ricardo Piglia ("Alvo Noturno").

O protagonista dos contos de "Variações em Vermelho" é Daniel Hernández, uma espécie de alter ego do escritor.

O herói é também um revisor de provas, que usa as habilidades requeridas por sua profissão para resolver enigmas criminais.

Por ter sido um militante montonero, Walsh virou um ícone, escolhido pela presidente Cristina Kirchner para representar a resistência à ditadura. A militância kirchnerista o celebra.

Para o editor e tradutor Sergio Molina, o vínculo que se faz de Walsh com sua militância política, hoje, é prejudicial para a apreciação literária de sua obra.

"Ter virado um mártir e prócer oficial da 'era K' [Kichner] provocou a reação de negar sua importância literária", diz. Molina destaca, assim, a relevância de resgatar sua ficção hoje. A editora 34 prevê lançar, ainda, um terceiro volume, "Os Casos do Delegado Laurenzi e Outros Contos Resgatados", com 22 contos que foram publicados em revistas da época.

VARIAÇÕES EM VERMELHO
AUTOR Rodolfo Walsh
TRADUÇÃO Sérgio Molina e Rubia Prates Goldoni
EDITORA 34
QUANTO R$ 39 (240 págs.)

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ANÁLISE
Szymborska fazia poesia leve, mas com direção
Escritora polonesa, ganhadora do Nobel em 1996, morreu nesta semana deixando obra profunda e questionadora FOLHA SP 04.02


Dessa natureza é a poesia de Wislava Szymborska: leve e com direção, determinação, vontade e propósito; nunca aleatória

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De muito poucos escritores pode-se dizer que sejam -como Wislawa Szymborska (1923-2012), morta na última quarta-feira- tão simultaneamente fulgurantes e discretos, densos e simples, profundos e leves.

Leves no sentido atribuído por Italo Calvino, em seu ensaio sobre a leveza, no livro "Seis Propostas para o Próximo Milênio", em que mostra que a boa leveza é aquela do pássaro e não a da pluma.

Dessa natureza é a poesia de Szymborska: leve e com direção, determinação, vontade e propósito; nunca aleatória. E que não se confunda sua simplicidade -e até delicadeza- com inocência; grandes rasteiras podem ser dadas com um golpe certeiro e coreográfico.

São assim as poesias do livro "Poemas", recentemente lançado no Brasil pela Companhia das Letras e traduzidos com excelência por Regina Przybycien, dessa língua -o polonês-, cujos mistérios, ao menos para nós, só podem ser revelados por uma versão muito especializada, mas que já presenteou o mundo com escritores como Bruno Schulz e Witold Gombrowicz, além da própria Wyslawa.

Ganhadora do Prêmio Nobel no ano de 1996, manteve-se reclusa e avessa aos holofotes na Cracóvia, de onde quase nunca saía.

Embora a musa da poesia não tenha recusado a ela a multidão, parece que a própria poeta cumpriu o destino traçado em um de seus poemas, "Recital da Autora": "Musa, não ser um boxeador é literalmente não existir./ Nos recusaste a multidão ululante./ Uma dúzia de pessoas na sala,/ Já é hora de começar a fala./ Metade veio porque está chovendo./ O resto é parente. Ó Musa".

Em um outro poema do mesmo livro, "A mulher de Lot", numa combinação de feminismo, desmistificação e iconoclastia, a própria personagem bíblica, aqui em primeira pessoa, justifica o seu gesto de desobediência a Deus: "Senti em mim a velhice. O afastamento./ A futilidade da errância. Sonolência./ (...) Olhei para trás de solidão/ De vergonha de fugir às escondidas".

GRÃOS DE AREIA

Mas, apesar do efeito questionador, nada nessa poesia é grandioso. O processo de desmanche dos mitos se dá por um gesto de desfilamento, nunca de destruição ou grandiloquência.

Os grandes acontecimentos, afinal, são feitos somente de pessoas e de coisas. E essas, como os grãos de areia, não se chamam "de grão, nem de areia" e dispensam "um nome geral, particular/ passageiro, permanente/ errado ou apropriado".

As coisas são, felizmente, poucas e pequenas. É disso que se constitui a vida e, certamente como queria a poeta, também a morte. Szymborska partiu dormindo. Leve como um pássaro.

Leia amanhã na "Ilustríssima" três poemas da autora polonesa


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