sábado, 4 de fevereiro de 2012
COMO NASCE UMA CIDADE » De como a miragem se tornou realidade
Só
um louco acreditaria que, em menos de quatro anos, a capital do Brasil deixaria
o Rio de Janeiro e seria instalada em Goiás. Contudo, em fins de 1959, os
brasileiros não tinham mais nenhuma dúvida: Brasília estaria pronta para sediar
o poder público federal. CORREIO 04.02
-
Era
como se a capital do país fosse ser transferida do Rio de Janeiro para uma
miragem no deserto. Uma esplanada singrava a vegetação rala e nas bordas da
avenida pontuavam predinhos dispostos como pedras de dominó. Na extremidade
leste, duas torres gêmeas surgiam dentro de formas de madeira e aos pés delas
havia duas bolas de concreto partidas ao meio, uma convexa e outra côncava.
Atrás das torres, dois palácios de mármore branco emergiam do silêncio eterno
do cerrado. Torres e palácios formavam um triângulo cuja área seria definida
com miúdas pedras portuguesas, incrustradas uma a uma no terreno.
Na
outra extremidade da Esplanada, uma plataforma em obras se insinuava no
cruzamento de dois eixos. Ao sul de um desses eixos, o Rodoviário, blocos
retangulares se alinhavam como se um deus do urbanismo tivesse brincando de
inventar uma cidade com pedrinhas de brilhante. Bem no meio do eixo sul, uma
construção em forma de chapéu de freira dominicana se sustentava em alicerces
triangulares e, dentro dele, uma pequena nave já acolhia celebrações
religiosas. O eixo rodoviário também se estendia ao norte — solitário.
Ao
largo desse conjunto arquitetônico alinhado em eixos, havia duas outras
edificações brancas como aqueles dois palácios de mármore. Uma delas se
destacava pela imponente delicadeza — era ao mesmo tempo altiva e diáfana,
delgada e sinuosa, soberana e etérea. Parecia se sustentar com meias asas em
posição de voo. Era um palácio e esperava por um lago. O outro prédio,
razoavelmente próximo ao primeiro, era singelo e discreto, como quem
reverenciava o vizinho.
Faltavam
quatro meses para que esse conjunto esparso de formas inesperadas fosse
inaugurado como sendo a nova capital do Brasil. Havia outras obras pontilhando
o chão cor de ferrugem. As estruturas de um grande hospital apontavam no centro
da cidade. Ao sul, numa via que viria a se chamar Avenida W-3, 500 casinhas cor
de algodão já abrigavam candangos anônimos e ilustres. Um dos mais eminentes
moradores do lugar era o arquiteto Oscar Niemeyer, o autor de todas as obras de
arquitetura que estavam sendo construídas na inaudita cidade, exceto a Plataforma
Rodoviária, que pertencia ao urbanista Lucio Costa, o vencedor do concurso que
escolheu o projeto de Plano Piloto da capital do Brasil.
Era
à noite que a futura cidade parecia verdadeiramente existir. As luzes
penduradas em postes mambembes reduziam a imensidão do cerrado às obras em
andamento. O barulho de martelos, serras, motores se expandia na escuridão
avisando que algo grandioso estava sendo preparado para muito breve. Quando
amanhecia, a cidade voltava a se esvanecer no terreno monumental.
Filósofo
e cineasta
Longe
do futuro Plano Piloto, formigueiros de gente improvisavam pequenos aglomerados
com casas feitas de pedaços de madeira, madeirite, sacos de cimento, papelão,
lona. O maior deles, a Cidade Livre, havia sido criada para servir de suporte à
construção da capital e, de acordo com os planos da Novacap, seria desmontada
logo depois da inauguração de Brasília. Taguatinga tinha surgido às pressas
para abrigar uma multidão de nordestinos vindos da terrível seca de 1958.
Imensa vila, a Amaury, criada pela Novacap, alojava-se no leito do futuro Lago
Paranoá, que começaria a se formar em setembro de 1959.
Sucediam-se
as visitas à impressionante cidade. A 25 de agosto de 1959, chegou o personagem
que deu a Brasília um de seus mais repetidos epítetos, o de “capital de
esperança”. O filósofo e ministro da Cultura da França, à época, André Malraux,
ficou impactado com a obra moderna feita pelos brasileiros. “No processo de
desenvolvimento, muitas vezes as grandes nações encontraram o seu símbolo e,
indubitavelmente, Brasília é um símbolo desse gênero”, disse Malraux. “Se
renascer a velha paixão das inscrições nos monumentos, gravar-se-á sobre os que
aqui vão nascer: ‘Audácia, energia, confiança’. Não se trata de vossa divisa
oficial, mas talvez das que vos dará posteridade.”
O
cineasta Frank Capra tinha passado por Brasília dias antes da vinda de Malraux.
Durante seis horas, filmou a cidade de helicóptero, imagens que se perderam no
tempo. De volta aos Estados Unidos, Capra enviou agradecimentos a Juscelino
Kubitschek pela hospitalidade: “Numa época em que o mundo receia a sua
destruição, o senhor está construindo e edificando, para o futuro, em tão
emocionante escala que isso deve constituir, um tônico restaurador para um
mundo deprimido”.
No
fim de 1959, o Brasil não tinha nenhuma dúvida: o Rio de Janeiro não seria mais
a capital do Brasil. Por mais absurdo que pudesse parecer quatro anos antes,
Brasília seria mesmo inaugurada em 21 de abril de 1960.
[FOTO2]
“A
mais ousada”
André
Malraux (ministro da Cultura da França em discurso proferido durante visita a
Brasília em 25 de agosto de 1959)
“Sabeis
— como sabem todos os artistas, mas como os governos não o sabem tão bem — que
as formas de arte destinadas a perpetuar-se na memória dos homens são formas
'inventadas'. Nesta cidade que tem sua origem na vontade de um homem e na
esperança de uma Nação, com as antigas metrópoles surgiram da vontade imperial
de Roma ou dos herdeiros de Alexandre, o Palácio da Alvorada que edificastes, a
catedral que haveis projetado nos trazem algumas das formas mais arrojadas da
arquitetura, e, ante os esboços da futura Brasília, percebemos que a cidade
inteira será a mais ousada que jamais o Ocidente haja concebido. Em nome de
tantos monumentos ilustres que povoam nossa memória, graças vos sejam dadas por
haverdes depositado confiança em vossos arquitetos para criar a cidade e em
vosso povo para que lhe tenha amor. Tal ousadia, sabemos como alguns a temem,
mesmo dentre amigos desses projetos, é possível que apreendam mal o que lhes
confere decisivo valor histórico. É chegada a hora de compreender que a obra
que começa a erguer-se diante de nós é a primeira das capitais da nova
civilização.”
LEITURAS
»
Arquivo Brasília, Lina Kim e Michael Wesely, Companhia das Letras, 2010
»
Diário de Brasília 1959
»
Revista Brasília, números 31, 32, 33, 34, 35 e 36
LINHA
DO TEMPO
De
julho a dezembro de 1959
Num
dos primeiros dias de agosto, o cineasta Frank Capra sobrevoa Brasília de
helicóptero, durante seis horas, para filmar as obras da nova capital.
AGOSTO
16
de agosto — Morre o marechal José Pessoa, aos 73 anos, três anos depois de
deixar a Comissão de Planejamento e Mudança da Capital Federal. A revista
Brasília dedicou uma página ao marechal.
19
de agosto — De acordo com o censo experimental realizado em 17 de maio de 1959,
Brasília abriga 64.314 moradores, dos quais 42.332 são homens e 21.982,
mulheres.
25
de agosto — O escritor, filósofo e ministro da Cultura da França, André
Malraux, visita Brasília.
SETEMBRO
12
de setembro — Com uma ligação, Juscelino inaugura o circuito rádio-telefônico
entre Rio de Janeiro e Brasília. No mesmo dia, aniversário de JK, fecha-se a
barragem do Paranoá, dando início, assim, à formação do lago. O presidente
inaugura trevos, viadutos e pavimentação asfáltica dos eixos rodoviários. JK
lança a pedra fundamental da Catedral de Brasília, inaugura blocos de
apartamento do IAPB e do IAPC e visita as obras do Hospital de Base.
15
de setembro — Lançada a pedra fundamental do Correio Braziliense.
17
de setembro — Instala-se em Brasília o Congresso Internacional de Críticos de
Arte.
NOVEMBRO
7
de novembro — O antropólogo Gilberto Freyre visita Brasília pela segunda vez.
10
de novembro — O Catetinho passa a fazer parte das obras protegidas pelo então
Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
23
de novembro — Inauguração da plataforma no cruzamento dos Eixos Monumental e
Rodoviário. É a primeira parte da obra da Rodoviária.
24
de novembro — Lançada a pedra fundamental do Colégio Dom Bosco no Plano Piloto.
Concluídos
59 mil metros de tubulação, um reservatório definitivo e parte de uma adutora
de um metro de diâmetro. Concluídos também 33 mil metros de rede de esgoto e 79
mil metros de águas pluviais. Está pronta a Barragem do Torto, a estrutura do
Hospital Central (Hospital de Base). Já foram pavimentadas cerca de 300km de
avenidas no Plano Piloto; 500 casas na W3 Sul estão prontas e muitas delas
habitadas. A hidrelétrica de Cachoeira Dourada também já está pronta, com 28
mil kwas.
DEZEMBRO
Já
estão parcialmente prontos os 11 primeiros edifícios destinados aos
ministérios. Começam a ser construídas as tesourinhas de acesso às primeiras
superquadras da Asa Sul. A Igrejinha, o Palácio da Alvorada e o Brasília Palace
Hotel estão concluídos. O Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal já
estão com suas estruturas prontas. As duas cúpulas do Congresso também foram
concluídas. As torres gêmeas já alcançaram o 28º andar.
20
de dezembro — Inaugurado novo conjunto residencial da Fundação da Casa Popular
com 840 apartamentos, em 28 blocos de três andares, construídos em 210 dias.
São os edifícios JK.
LEIA
NA EDIÇÃO DE 18 DE FEVEREIRO DE 2012
Como
foi construída a Praça dos Três Poderes e o que ela representa para a cidade, o
país e a democracia.
>>>>
"Basicamente brasileira"
Gilberto
Freyre
(em
entrevista à Rádio Nacional de Brasília em 7 de novembro de 1959) CORREIO 04.02
“Foi
com a maior satisfação que, depois de um primeiro contato, espécie de
aperitivo, com Brasília, voltei esta semana a ver de perto esta assombrosa
criação brasileira, desta vez a convite do meu eminente amigo, o presidente
Juscelino Kubitschek.
Sejam
quais forem suas deficiências, neste ou naquele particular, Brasília é de certo
um esforço que honra a capacidade de realização dos homens públicos, dos
administradores, dos arquitetos, dos urbanistas, dos sanitaristas, dos
educadores, dos técnicos e dos operários nele empenhados com um fervor que, em
alguns, chega a ser um fervor místico ou religioso. Do ponto de vista artístico
Brasília é qualquer coisa de maravilhoso. Continuo a pensar que lhe faz falta a
presença, entre os orientadores da sua construção, do ecologista e dos
cientistas sociais; e renovo daqui o meu apelo ao presidente da República e ao
diretor Israel Pinheiro, no sentido de procurarem juntar, sem demora, esta
colaboração efetiva ao esforço cada vez mais complexo que a construção de
Brasília representa como um grande triunfo brasileiro no espaço tropical e no
tempo moderno.
É
evidente que Brasília se desenvolverá como uma cidade basicamente brasileira.
Por conseguinte, com problemas comuns a outras cidades brasileiras. Por outro
lado — tal é a sua modernidade, tal é a sua projeção sobre o futuro, como
cidade situada no trópico, que vários dos seus problemas serão especificamente,
vamos dizer, brasilianos e não apenas brasileiros.
Esses
problemas, que acabo de chamar especificamente brasilianos, terão de ser
considerados — e quando possível resolvidos, por administradores de visão na
verdade larga, com a colaboração não só de urbanistas, arquitetos e artistas,
mas — permita que insista neste ponto — de ecologistas e cientistas sociais,
pois não nos esqueçamos de que Brasília não é uma criação do vácuo, mas dentro
de uma ecologia — a tropical e condiconada pela situação do Brasil, pelas suas
inter-relações internas (inter-relações das quais Brasília vai se tornar o
centro) e pelas suas relações com o exterior: relações de uma já quase
potência, não só continental como atlântica.
Não
sei se se deva dizer que Brasília vai-se desenvolver como cidade de formação
cosmopolita. A meu ver, se tal sucedesse, seria não a sua grandeza, mas,
talvez, a sua desgraça. Brasília, a meu ver, deve desenvolver-se combinando o
que nela é brasileiro com o que lhe virá, cada vez mais, de fora, sob a forma
de boas e saudáveis influências de caráter cosmopolita.
Sou
dos que acreditam de modo, posso dizer, absoluto, em que a interiorização da
Capital é uma necessidade brasileira. Será um meio de tornar-se o Brasil um
todo mais dinamicamente inter-regional e, por conseguinte, um todo
verdadeiramente nacional.”
>>>>>
LITERATURA »
Bienal de Brasília toma corpo
O
angolano Ondjaki é um dos destaques da Bienal , que começa em 14 de abril CORREIO 04.02
-
Aos
poucos, a 1ª Bienal Brasil do Livro e Leitura começa a ter contornos definidos.
Prevista para acontecer entre 14 e 23 de abril na Esplanada dos Ministérios, o
evento vai ter como foco a literatura de língua portuguesa de países africanos
e um time de autores latino-americanos. Em janeiro, a Secretaria de Cultura deu
início à divulgação dos convidados e a lista já chega a 19 autores entre
estrangeiros e brasileiros.
A
homenagem aos africanos será realizada em forma de seminário que discutirá
temas como a literatura contemporânea na África portuguesa e seus conteúdos. A
moçambicana Paulina Chiziane, autora de Niketche e outros romances que abordam o conflito
entre a modernidade e as tradições na sociedade africana, é uma das convidadas
ao lado de Conceição Lima, a voz mais importante da poesia contemporânea de São
Tomé, e do angolano Ondjaki.
A
participação dos autores de língua hispânica estará dentro da programação da
Jornada Literária da América Hispânica, organizada pelo jornalista Eric
Nepomuceno. Para falar sobre as temáticas que mobilizam esses autores e
permeiam o imaginário da literatura produzida no continente desembarcam em
Brasília o mexicano Guillermo Arriaga e o nicaraguense Sergio Ramírez. Arriaga
é conhecido como o roteirista dos longas de Alejandro González Iñarritu,
diretor de Biutiful e Babel. Entre os romances do mexicano publicados no Brasil
estão Esquadrão guilhotina e Retorno 201.
Já
Ramirez é autor engajado, participou da Frente Sandinista de Libertação
Nacional, que ajudou a encerrar a ditadura de Anastasio Somoza no final dos
anos 1970, e publicou recentemente Adios muchachos — A história da revolução,
uma biografia do movimento sandinista. “A África e a literatura
latino-americana ficaram meio esquecidas nos encontros literários dos últimos
anos”, acredita Luiz Fernando Emediato, coordenador e curador da 1ª Bienal
Brasil do Livro e da Leitura. “Mas isso não significa que vamos deixar de fora
autores de outros países.” Além da australiana Gill Pittar e do britânico
Richard Bourne, o evento recebe o nigeriano Wole Soyinka, Nobel de Literatura
em 1986. Entre os brasileiros já estão confirmados Fernando Morais, Lira Neto e
Xico Sá.
Novas
tecnologias
Emediato
conta que teve dificuldade para confirmar presenças porque o evento coincidiu
com as feiras literárias na Europa e na Bolívia. Ele queria trazer a chilena
Isabel Allende, mas a autora de A casa dos espíritos participa de apenas dois
eventos por ano e já estava com a agenda comprometida.
“E
tem outra dificuldade: essa é a primeira bienal de Brasília e ainda não está no
calendário internacional.” Umberto Eco também esteve entre as tentativas
frustradas de Emediato, que pretende fazer uma mesa de debates sobre a situação
do livro frente às novas tecnologias. “Vamos discutir essa polêmica falsa sobre
o fim do livro”, explica.
“O
livro é feito de palavras escritas num suporte que há apenas 500 anos se
materializou.” Alguns convidados devem participar dos debates via telão. Também
faz parte da programação da Bienal o Prêmio Brasília de Literatura, que tem inscrições
abertas até 15 de fevereiro. Dividido nas categorias biografia, contos,
crônicas, literatura infantil e juvenil, poesia, romance e reportagem, o prêmio
contemplará com R$ 30 mil o primeiro colocado e R$ 10 mil o segundo.
>>>>>>
www.marciocotrim.com.br
Nelson,
cem anos (II)
O
hidrante continua a jorrar Nelson. Não dá para interromper a inundação. É
bebê-lo. CORREIO 04.02
-
“O
ser humano está mais para Lucho Gatica que para Paul Valéry”, “Mulher bonita é
risco de vida”, “Sou um homem de muitas dúvidas e raríssimas certezas”, “Tinha
a voz fininha de criança que baixa num centro espírita”, “Sexta-feira é o dia
em que a virtude prevarica”, “A partir dos quarenta, qualquer quarto de hora
faz diferença”.
“Um
sarau de grã-finos é tão ressoante como uma concha marinha”, “Sua fala era de
uma profundeza dessas que uma formiguinha atravessa a pé”, “A belle époque não
foi bem uma época, mas um jardim. Um jardim cheio de faunos e ninfas de
tapete”, “Seu pescoço, na estação cálida, exibia um colar de brotoejas”.
“Uma
fecundidade radiante”, “De uma lucidez desesperadora, sabia tanto que não lia
mais. Não lia nem cartão de visitas”, “A aragem marinha soprava nos decotes”,
“A úlcera tinha contrações de víbora moribunda”, “A fome esvaziou-me e eu me
sentia oco, sem entranhas, como um autopsiado”, “Depois da derrota injusta, a
multidão tinha algo de tristeza fluvial em seu lerdo escoamento”.
“Nossos
jogadores deslizavam na grama, como cisnes”, “Lemos, como Oliveira, é nome de
vizinho. Um sujeito que se chama Lemos só pode ser vizinho”, “Vi uma grã-fina
fazer o que não fazia desde a primeira chupeta: chorar”, “Se, em Dunquerque, a
Inglaterra tivesse capitulado, os nazistas teriam feito provas hípicas montando
brasileiros”, “É impossível não ter funda nostalgia dos quadris anteriores à
Primeira Guerra Mundial. E naquele tempo, ninguém bebia um copo dágua sem
paixão”.
“O
copy desk reduziria os dez mandamentos a cinco”, “A confissão é, para a alma
feminina, como um toque ginecológico sem luva”, “O prazer estético é igual ao
orgasmo de uma cotia no Campo de Santana”, “Ponha o cretino em cima de um
caixote de querosene Jacaré e mande-o falar. Ele dá um berro e imediatamente
milhares de cretinos se arregimentam”.
“Hoje
em dia, uma menina de onze anos é mais corrupta que um Calígula”, “Perfeito,
irretocável como um velho soneto”, “Encontrei-me ontem com o Varanda, dono de
um nome ventilado, paisagístico”, “Nos primeiros anos do futebol carioca,
quando entrava um gol as mulheres desfaleciam, pareciam morrer em estertores.
Os homens achavam sublime”.
Pastores,
senhoras, crianças e babás tinham a mesma inconsciência que um bodinho de
charrete”, “O psicanalista é uma comadre bem paga”, “Todo tímido é candidato a
um crime sexual”, “Também há angústia na certeza”, “Um homem sentado não
alcança jamais sua plenitude”, “Fez um gesto largo que parecia abranger do
Presidente da República ao mata-mosquito”, Um dos achados da sociedade
capitalista é mulher bonita, pobre e voraz”.
“Seu
choro era grosso como um mugido”, “Uma dona de casa laboriosa, carregada de
filhos e varizes”, “Exibia uma paciência de cambaxirra”, “Helena acariciou a
própria nudez como uma lésbica de si mesma”, “No Rio do meu tempo, os mortos
eram velados na sala de visitas ou de jantar e tinham a solidariedade de
cadeiras, quadros, jarras, espelhos e moscas familiares”, “Amar é dar razão a
quem não tem”.
“Era
um ser atravessado de luz como um santo de vitral”, “Educação sexual é matéria
que só devia ser ensinada por veterinários”, “Antes de Juscelino, o brasileiro
tinha tanto complexo de inferioridade, era tão humilde que tinha medo até de
ser laçado pela carrocinha de cachorro”, “Ônibus apinhado é o túmulo do pudor”,
“Se um dia a vida lhe der as costas, passe a mão na bunda dela”.
“Abomino
a velocidade. Ainda conservo o deleite dos bondes que não chegam nunca”, “Tenho
horror a viagens. A partir do Méier, começo a ter saudades do Brasil”, “O
brasileiro é o sujeito que planta bananeira até em velório”, “A moça tinha um
lindo perfil de moeda”, “Um frívolo piparote”, “Aristides sapateava como num
transe mediúnico”, “Olheiras rolha queimada”, “Nunca o seu riso teve, como
naquele momento, uma dilatação de parto”.
“Três
a dois é um escore arquejante”, “A cama é um móvel metafísico”, “Meu amigo vive
feliz e realizado como um peixinho de aquário na sala de visitas”.
Eis
Nelson, de corpo e alma.
”O
brasileiro é um sujeito que gosta de fazer farra. Desses que, em pleno velório,
passa a mão na viúva”
Ah,
Nelson!
>>>
Peças que contam uma vida
Em
entrevista ao Correio, o norte-americano Stephen Greenblatt fala sobre Como
Shakespeare se tornou Shakespeare, biografia que escreveu sobre o maior
dramaturgo do mundo moderno CORREIO 04.02
-
O
maior desafio de um biógrafo diante da figura de William Shakespeare é a
dificuldade em encontrar provas de fatos picantes e documentação capaz de guiar
o investigador por uma vida cheia de intrigas. Não, Will não foi uma figura
excitante do ponto de vista biográfico. Foi apenas — o que já era muito no
século 16, no qual nasceu — um filho de luveiro de Stratford, pequeno povoado
no centro da Inglaterra, com surpreendente capacidade de escrever sobre
conflitos atemporais e universais. É um ponto de vista. Mas é inevitável
enxergar muito mais que a simplicidade na vida de Shakespeare. Stephen Greenblatt,
professor da Universidade de Harvard, um dos maiores pesquisadores da era
elisabetana, resolveu encarar as fontes escassas e as tentações de pescar nas
peças a vida do autor para escrever Como Shakespeare se tornou Shakespeare, um
mergulho nada ficcional no universo que rodeou a vida do dramaturgo.
Inteligente
e perspicaz, Greenblatt contornou o perigoso desejo de inferir fatos a partir
das obsessões que assombram os personagens shakespereanos. Quando não tem
provas, o pesquisador nada afirma. Isso não impede as insinuações. Greenblatt
mune o leitor de todas as informações existentes sobre a trajetória de
Shakespeare e ainda sugere algumas associações, mas acreditar nelas ou
descartá-las como devaneio fica por conta da imaginação.
William
Shakespeare nasceu em 1564 em Stratford-upon-Avon, cidade de comerciantes
católicos que muito sofreu com as reformas protestantes da rainha Elisabeth.
Filho de um fabricante de luvas e de uma herdeira de boa família, o garoto teve
vida boa, embora tenha passado ao largo de uma educação de elite. Ainda na
adolescência, engravidou a namorada, Anne Hathaway, seis anos mais velha, e
casou-se antes do nascimento de Susanna, a filha querida para a qual deixou
toda a fortuna da família ao morrer, em 1616. Antes de completar 20 anos,
Shakespeare deixou a família em Stratford e rumou para Londres.
Pouco
se sabe sobre o que aconteceu nos intervalos entre a infância e o casamento, a
mudança para a capital e o início das atividades no teatro. Biógrafos já
apontaram um processo criminal, possivelmente por roubo de coelhos, como a
causa da mudança para Londres. Outros chegaram a afirmar que o dramaturgo teria
trabalhado como guardador de cavalos — uma versão antiga de guardador de carros
— antes de revelar a verve dramática. A maioria das especulações não faz muito
sentido. O pai de Shakespeare foi um grande comerciante cuja decadência se fez
notar em Stratford, mas nunca chegou a perder tudo. E é pouco provável que o
filho tenha enfrentado condições de miséria ou pobreza.
Como
Shakespeare se tornou Shakespeare De Stephen Greenblatt. Tradução: Donaldson M.
Garschagen e Renata Guerra. Companhia das Letras, 456 páginas. R$ 59.
Lacunas
Greenblatt
gosta de pensar nas peças como uma espécie de respostas às lacunas. Muito do ocorrido
na vida de Shakespeare pode estar nas obsessões desenvolvidas nos mais de 36
textos publicados ao longo dos 52 anos de vida. O ciúme doentio de Otello, a
vingança de Hamlet, a traição em Rei Lear ou o amor que mata em Romeu e Julieta
são verdadeiras tentações diante de escassa documentação. Greenblatt explora
todas as possibilidades, mas o mais interessante está no que os registros de
época são capazes de provar.
Shakespeare
cultivava obsessão real pela condição de cavalheiro tão explorada em diversas
comédias e tragédias. Vestiu seus personagens com as melhores roupas e tratou
de rechear as peças de cavalheiros. Quando conseguiu se estabelecer e fazer
fortuna, travou verdadeira batalha para convencer os nobres de que merecia um
lugar na história e comprou um brasão para a família. Sobre o casamento com
Anne, pouco se sabe além do fato de que passaram boa parte da vida separados.
Em Stratford, a mulher se ocupava dos três filhos — duas meninas e o garoto
Hamnet, morto aos 11 anos —, enquanto a carreira no Globe Theatre dava frutos.
A distância física entre o casal faz os biógrafos delirarem quanto a traições e
paixões proibidas.
Não
há provas concretas, mas causa estranheza, por exemplo, documentos como o
testamento de Shakespeare. Ele deixou para a filha Susanna toda a fortuna,
quase nada para a mais nova, Judith, e apenas a cama de casal para a mulher,
Anne. O detalhe pode indicar o caráter irascível do dramaturgo ou os problemas
conjugais de um casamento precoce. “Se esse é um exemplo da terna lembrança de
Shakespeare, é de dar arrepios a ideia de como seria um de seus insultos. Mas a
ideia de ternura é com certeza um devaneio absurdo; trata-se de uma pessoa que
passou a vida imaginando nuances extremamente precisas de amor e
dilaceramento”, escreve Greenblatt. De fato, há poucos (para não dizer nenhum)
casais bem-sucedidos nas peças do inglês. As esposas — quando citadas — na
maioria das vezes já morreram. A exceção está em Gertrudes e Cláudio, de
Hamlet, e Macbeth e sua Lady, os casais mais poderosos das tragédias
shakespereanas.
As
últimas palavras do dramaturgo teriam sido as que dizem respeito à própria
morte. Não se sabe ao certo o porquê, mas, em 1610, Shakespeare decidiu voltar
a Stratford definitivamente. Morreu seis anos depois e tomou o cuidado de
deixar um epitáfio no qual amaldiçoa quem tentar remover seus ossos da igreja
da cidade. William Shakespeare, aparentemente, tinha pavor de pensar na mistura
de seus restos com o de outros mortais comuns. Ou talvez não quisesse a
presença de Anne na mesma tumba. O fato é que, como tudo que cerca o
dramaturgo, os historiadores nem sequer têm certeza da autoria do epitáfio.
Abaixo, Stephen Greenblatt fala sobre a
pesquisa para escrever a biografia e as tentações de preencher os silêncios com
indícios colhidos nas peças. Para o biógrafo, só a época em que o dramaturgo
viveu já é fonte poderosa. “Foi um momento em que a vida parece ter sido vivida
com excepcional intensidade.”
>>>
Inclusão digital sustentável
O
Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) começou a sair do papel no fim de agosto
do ano passado, CORREIO 04.02
-
quando
a população do município goiano de Santo Antônio do Descoberto foi a primeira a
ser agraciada com o serviço de internet de alta velocidade a preços mais
acessíveis. O programa fez com que o Governo Federal e a sociedade civil
passassem a discutir questões mais amplas, que extrapolam o preço final cobrado
pelo serviço como, por exemplo, a qualidade e a velocidade de conexão que, com
certeza, vão impactar de diferentes formas a vida da população de baixa renda.
Certamente esses pontos são fatores muito importantes quando falamos em
universalização do serviço, porém não são suficientes para pôr fim à exclusão
digital, pois sua solução não se limita a ter ou não um computador conectado à
internet. É importante saber se realmente as pessoas das classes C, D e E estão
capacitadas para usá-lo de maneira adequada e produtiva. Não saber como se
apropriar da tecnologia também é uma forma de exclusão digital, e o Brasil
ainda possui 110 milhões de pessoas (58% da população) que não costumam ter
contato com a internet, seja em casa, no trabalho ou por meio de uma lan house
– segundo dados recentes do Ibope Nielsen. Isso quer dizer que mais da metade
do país ainda é excluída digitalmente, eles não têm noção do que é possível ser
feito na rede mundial de computadores ou dos riscos que existem nela. Para se
ter uma política de inclusão digital eficaz é preciso envolver os três setores
da economia: ONGs, Governo e empresas privadas. Mais que levar computadores ou
acesso à internet a todos os municípios brasileiros, é necessário construir um
sólido modelo de gestão, elaborar uma política pedagógica de qualidade — que
ensine a população a se apropriar da tecnologia como ferramenta cidadã —, de
acompanhamento, avaliação e capacitação contínuos. E isso só pode ser
desenvolvido por meio de um processo cocriativo e de gestão compartilhada com
essas três esferas da sociedade civil. Além disso, é fundamental associar essa
ação a uma política consistente de descarte apropriado do lixo tecnológico. O
reconhecimento da importância de universalizar o acesso à internet levou, no
início de janeiro, o Ministério das Comunicações a anunciar que o Governo tem
planos de criar uma espécie de um PNBL para celular, focado em consumidores que
não têm renda para contratar um serviço fixo de R$ 35 pelo Plano Nacional de
Banda Larga tradicional. A ideia é que as operadoras vendam pacotes de serviços
que darão direito a fazer uma quantidade "x" de ligações pelo telefone
móvel para qualquer operadora e acessar a internet pelo aparelho. Sabemos que o
caminho da inclusão digital passa, legitimamente, pelo uso da telefonia celular
em um futuro próximo. De acordo levantamento da Associação Brasileira de
Telecomunicações (Telebrasil), o país fechou 2011 com quase 58 milhões de
acessos em banda larga, sendo que — deste total — 41,1 milhões são oriundos de
banda larga móvel (via celular 3G ou modem) e 16,7 milhões são provenientes de
banda larga fixa. Isso mostra que hoje a maior parte dos acessos à internet é
feita por telefonia móvel. Daí a importância de se criar um PNBL voltado
especificamente para esse meio. O fato é que um país incluído digitalmente não
depende apenas do uso da ferramenta, mas da capacidade da população de se apropriar
dela, com objetivo de produzir e publicar conteúdo relevante. E é essa visão
abrangente que o Governo precisa para desenvolver uma política de acesso à web
onde a internet se torne uma importante via de empoderamento e libertação, que
auxilie o país a ser mais competitivo no século XXI.
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DECISÃO DO STF MINA 'ELITISMO DO JUDICIÁRIO', DIZ CORREGEDORA
CORREGEDORA
CRÊ EM FIM DE "CULTURA ELITISTA E CORPORATIVISMO" NO JUDICIÁRIO
O Estado de S. Paulo - 04/02/2012
-
Ministra
comemorou resultado de julgamento no STF que restabeleceu autonomia do CNJ para
investigar magistrados Emocionada e com agradecimentos ao "povo
brasileiro", a corregedora nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon,
considera que o resultado do julgamento do Supremo Tribunal Federal na quinta-feira
- que por 6 votos a 5 manteve os poderes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
de investigar e processar juízes - é um golpe contra a cultura elitista e o
corporativismo do Judiciário. À frente das investigações de condutas suspeitas
de magistrados, Calmon foi criticada por colegas de toga por expor o Judiciário
e acusada de violar os sigilos bancários e fiscais da classe. "Estamos
removendo 400 anos de representação elitista dentro do Judiciário (...) A
modernidade vai tomando conta dos espaços públicos e deixando engessados os
movimentos corporativistas", afirmou a corregedora ao Estado. Calmon
afirmou que, em 32 anos de magistratura, nunca viu discussão "tão ampla e
tão participativa do ponto de vista de todos os segmentos da sociedade, desde
as pessoas mais simples até os juristas mais renomados". "Isso é
histórico. Estamos no caminho para uma democracia plena", acrescentou.
Como a sra. recebeu o resultado do julgamento no Supremo? O resultado, que não
é definitivo, foi muito importante para a cidadania. O julgamento foi
extremamente positivo, pois os ministros discutiram duas teses distintas. A
sociedade participou (do debate). A decisão atende ao anseio popular. Como
cidadã fiquei muito satisfeita. E como magistrada? Como magistrada também, porque
ficou asseverado que a Corregedoria Nacional tem garantida sua competência
correcional. Sabendo disso, as corregedorias locais terão mais cuidado ao
julgar seus pares. E foi isso o que sempre advogamos. Naturalmente o meu
trabalho agora fluirá melhor. Se a tese da subsidiariedade fosse vencedora, eu
teria alguma dificuldade. Mas há alguns aspectos que ainda precisam ser
julgados pelo STF. Isso ainda atrapalha as investigações da Corregedoria? Não e
sim. Alguns aspectos da resolução 135 (contestada pela Associação dos
Magistrados do Trabalho) ainda precisam ser definidos pelo STF, o mandado de
segurança (contra investigação na folha de pagamento dos tribunais e nas
declarações de bens e rendas de magistrados) ainda será julgado. E isso será
feito com critério e serenidade pelo tribunal. Para mim, são aspectos menores.
O que a sra. considera mais importante neste julgamento? Primeiro, a
publicização do julgamento. O julgamento em público é um grande aliado contra a
corrupção. Como disse o ministro Ayres Britto, a Constituição de 1988 não
aceita mais essa cultura do biombo. Em segundo, a garantia do poder correcional
do CNJ. O resultado blinda o Conselho de movimentos corporativistas? Estamos
removendo 400 anos de representação elitista dentro do Judiciário. Não é fácil.
Há um contexto ideológico nessa discussão. Mas a modernidade vai tomando conta
dos espaços públicos e vai deixando engessados os movimentos corporativistas.
Desses avanços eu penso que não há mais retorno. Não estou cantando vitória
antes do final do julgamento. Mas as discussões travadas pelos ministros me
levam a acreditar nisso. Pessoalmente a sra. fica mais aliviada com esse
resultado? Nunca levei isso para o lado pessoal, apesar de ficar triste por
saber que colegas de toga me viam como criminosa. Mas isso passou. Tenho a
impressão que não houve discussão ou direcionamento pessoal nesse caso. Alguns
até dizem que gosto de microfones. Não é isso. Mas nessa discussão, a imprensa
tem papel importante, é grande aliada. Acabei simbolizando um movimento de
abertura do Judiciário. Houve enfrentamento entre magistrados e a Corregedoria.
Como fica a situação agora? Do ponto de vista institucional não pode haver
mágoa. Acabou. O STF dará a última palavra e será a hora de apagar as mágoas e
estabelecer parcerias. Terminado o julgamento, será a hora de cooperação. A
Corregedoria Nacional, as corregedorias locais e as associações devem se dar as
mãos.
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Precisamos falar sobre Shriver
Apesar
de ter nascido no Estados Unidos, Lionel Shriver escolheu morar na Inglaterra, onde vive há
mais de 20 anos. Talvez não seja coincidência, por isso, que os livros da
escritora pareçam ter dupla nacionalidade: observam a América através de um
filtro cruel que só pode ter sido fabricado “in Britain”. CORREIO 04.02
-
O
best seller Precisamos falar sobre o Kevin, de 2003, trata de um trauma
americano — crimes juvenis como o massacre de Columbine, onde 12 alunos foram
mortos por uma dupla de adolescentes, em 1999. Mas se tornou um fenômeno
editorial principalmente no Reino Unido, onde a autora venceu o Orange Prize,
em 2005.
A
adaptação cinematográfica do livro, que está em exibição em Brasília, é
assinada por uma cineasta britânica. Faz sentido. Apesar dos excessos de um
filme que apela para clichês do horror, a escocesa Lynne Ramsay entende uma das
características mais elogiáveis da escritora: a capacidade de mirar assuntos
atuais, como que pescados de revistas semanais, sempre por um viés doméstico,
íntimo e, também por isso, polêmico. O conflito entre os sentimentos do
indivíduo e a vigilância de uma sociedade conservadora tensiona a prosa (nada
sofisticada, diga-se) de Shriver — até porque a própria autora sempre se viu
como uma “outsider”.
Esse
desmonte de uma certa ilusão americana já aparecia no livro Dupla falta — que,
escrito antes de Precisamos falar sobre o Kevin, foi reeditado em 2007 na
Inglaterra e acabou de ganhar tradução brasileira pela editora Intrínseca. Sem
tanto potencial para burburinho em programas de tevê — convenhamos, não há como
competir com romance sobre a relação entre um filho psicopata e uma mãe em
desespero —, ele pertence àquela mesma paisagem: os personagens são concebidos
à semelhança de um país competitivo, atlético e vistoso, ainda que prestes a
ruir.
Superficialmente,
porém, o livro não parece ser nada disso. Ele se apresenta como um drama
matrimonial, e também pode ser lido como uma crônica esportiva. O circuito do
tênis é o palco da trama, onde a boa performance é medida por oscilações num
ranking implacável. Willy Novisnsky, que treina desde criança, ocupa a 437ª
posição. O novato Eric Oberdorf se vira com o status de lanterninha, em 972º.
Eles se encontram, namoram e decidem se casar. Eis que, numa dessas
reviravoltas tão típicas de torneios amadores, Eric dispara ao top 100 enquanto
Willy congela, e cai.
O
amor resiste à disputa por status e reconhecimento? Shriver, que não é de
finais felizes, acredita que talvez não. Ou que, cética, o casamento seria uma
longa partida que arrefece naturalmente, condenando os jogadores a um lento
espetáculo de degradação. Para quem o lê dessa forma, Dupla falta pode descer
como um thriller psicológico tão perturbador quanto Precisamos falar sobre o
Kevin. Muito se fala sobre o talento de Shriver para o gênero. No entanto,
parece-me que a escritora quer algo mais: medir a temperatura de uma nação que
alimenta e aplaude essas pequenas tragédias morais. Seria tudo isso? Vamos
acompanhá-la.
“O
centro de toda a literatura é a grande questão da memória”
W.G.
Sebald
AS
CINCO
Adaptações
literárias ousadas (e ARRISCADAS) que chegam às telas em 2012
1.
Cosmopolis
A
pequena provocação de Don DeLillo promove o bizarro encontro entre o diretor
David Cronenberg e o astro da saga Crepúsculo, Robert Pattinson.
2.
A
vida de Pi
Infilmável?
Não é a opinião do chinês Ang Lee (O tigre e o dragão), que interpreta o best
seller de Yann Martel. Já está cotado ao Oscar 2013…
3.
O
grande Gatsby
O
australiano Baz Luhrmann, de Moulin Rouge, não é cineasta de gestos sutis. O
clássico de F. Scott Fitzgerald, portanto, será turbinado por efeitos 3D.
4.
Anna
Kariênina
O
inglês Joe Wright já adaptou Jane Austen (Orgulho e preconceito) e Ian McEwan
(Desejo e reparação). O que fazer em seguida? Tolstói, é claro.
5.
O
hobbit
No
megalançamento do ano, Peter Jackson volta à mitologia de O senhor dos anéis
para reler o romance de J.R.R Tolkien que antecede a saga.
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O silêncio de Kenzaburo Oe
Contos
do autor japonês são reunidos em edição brasileira pela primeira vez
Nobel
de Literatura em 1994, Oe brinca com o descompasso entre os mundos subjetivo e
real CORREIO 04.02
-
O
japonês Kenzaburo Oe, Prêmio Nobel de Literatura de 1994, está mais próximo do
leitor brasileiro. Acaba de sair uma coletânea de contos publicados entre 1957
e 1990. Ordenados cronologicamente, os textos dão um belo panorama do escritor,
tido como um dos principais autores de seu país na segunda metade do século
passado.
Portanto,
14 contos de Kenzaburo Oe é isso mesmo que o título anuncia — uma iniciativa da
editora Companhia das Letras e fruto do empenho pessoal de Leiko Gotoda, que
escolheu os textos mais significativos, traduziu-os diretamente do japonês e
organizou o volume. Ela já traduzira outros japoneses contemporâneos, como
Haruki Murakami (Caçando carneiros) e Jun’ichiro Tanizaki (Diário de um velho
louco) para a Estação Liberdade, além de Jovens de um novo tempo, despertai!,
do próprio Oe, para a Companhia das Letras.
O
romance Jovens de um novo tempo, aliás, ganhou em 2011 uma reedição. Ao lado de
Uma questão pessoal, era um dos poucos títulos de Oe em catálogo no país. Daí a
importância deste 14 contos, que amplia a parca bibliografia do autor por aqui
— e o apresenta como contista.
Ao
longo das cinco décadas compiladas por Leiko, o leitor percebe como Kenzaburo
Oe, que completou 77 anos em 31 de janeiro, desenvolveu-se como escritor
aproveitando os vários aspectos que a narrativa curta tem a oferecer a um
ficcionista: o relato em primeira pessoa, o espírito de crônica do cotidiano, o
conto fantástico, o ensaio literário, a estória de fundo moral...
14
contos de Kenzaburo Oe De Kenzaburo Oe. Tradução de Leiko Gotoda. Companhia da
Letras, 456 páginas. Preço: R$ 59.
“O
armazém zoológico” (1957), que abre a coletânea, nem bem chega a ser um conto.
Corteja o teatro do absurdo num formato de texto teatral, um exercício curtinho
de um único ato. Oe tinha apenas 22 anos, ainda estava em formação, e exposto a
uma forte influência de Kafka. O texto mais recente é “A dor de uma estória”
(1990), um conto com jeitão de ensaio sobre Louis-Ferdinand Céline e claro
fundo autobiográfico.
Nesse
intervalo de mais de 40 anos e cerca de 400 páginas entre o primeiro conto,
quase teatro, e o último, quase ensaio, formou-se Kenzaburo Oe — e não apenas
como escritor. Os primeiros textos recendem a um existencialismo do pós-guerra.
“Salte sem olhar” (1958), nesse aspecto, traz aquelas mesmas questões morais
& éticas que habitavam a literatura de Jean-Paul Sartre nos anos 1950 e
1960.
Descompassos
Se
algumas de suas referências intelectuais são ocidentais, Kenzaburo Oe
estabelece em contos como “Salte sem olhar ou Seventeen” (1961) o paradoxo
específico da situação japonesa. Como ser pacifista e antimilitarista num país
pequeno que, historicamente, teve de fazer frente aos gigantescos impérios ali
vizinhos? Como abraçar a cultura ocidental após a Segunda Guerra ter terminado
como terminou? Como ainda se pode pensar em ter filhos depois de o Japão ter
passado pelo que passou? Questões como essas nem são necessariamente
verbalizadas pelos personagens jovens de Oe, apenas aparecem e reaparecem aqui
e ali.
Aliás,
boa parte da literatura de Oe ocorre no que não é dito. Uma atitude
essencialmente japonesa, essa, conforme aponta o escritor e jornalista Arthur
Dapieve no prefácio. Dapieve chama de “silêncio significativo” essa elipse,
essa omissão frequente no centro dos textos de Oe. Assim, “Seventeen” é narrado
por um garoto de 17 anos estourando em hormônios. Oe descreve minuciosamente as
atividades masturbatórias do rapaz, em permanente conflito e em permanente deslumbramento
com o próprio corpo. Até que o silêncio em casa sobre o assunto domina o jovem
narrador, domina até suas palavras, encobrindo a pulsão sexual ali latente —
pulsão que mais adiante encontrará outras maneiras de extravasar — não apenas
neste conto, também em outros tantos.
A
literatura de Kenzaburo Oe funciona no descompasso entre o mundo subjetivo e o
mundo real. Ciente disso, Oe se põe mesmo a brincar nesse vão. Em “Os pássaros”
(1958), um jovem se vê cercado de aves, que ele deixa entrar em seu quarto e
por ali fazer ninho e tal. Oe espicha esse cenário surrealista em vigorosas
descrições — cheiros e pios, plumagens e cores. Reúne elementos do fantástico e
do absurdo para deixar o leitor em permanente dúvida sobre o que é real, o que
é fantasia, o que é ficção dentro da ficção.
Num
outro golpe, anos e anos mais tarde, em “Viver em paz” (1990), ele traz de
supetão para dentro da ficção aspectos que sabemos verdadeiros de sua vida.
Kenzaburo Oe tem um filho com deficiência mental, ele próprio trata disso no
romance Uma questão pessoal, e então o alheamento transborda sua função poética
e ganha um palpável signo autobiográfico.
“Em
outro lugar” é um texto de 1959 que já deixava evidentes o silêncio & a
distância entre os personagens de Oe. Um jovem casal de namorados se hospeda em
um hotel bacana para um fim de semana de sossego e bom namoro. Ele está prestes
a pedi-la em casamento. Mas vacila. Por um instante, pensa que aquela vida não
é a dele, não pode ser... Ele se permite imaginar o quanto gostaria de estar em
outro lugar qualquer. Por um breve instante chega mesmo a estar em um outro
lugar qualquer. Por um breve instante e...
“A
oportunidade de partir se perde para sempre por puro acaso.”
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Literatura
Auster
critica a Turquia por prisão de intelectuais O POPULAR 04.02
-
O
autor americano Paul Auster, 65 anos, declinou o convite para ir à Turquia como
forma de protesto contra a centena de intelectuais presos naquele país. “Não
viajo para lugares onde não há leis democráticas", disse ao jornal turco
Hürriyet. Por sua vez, o primeiro-ministro da Turquia, Tayyip Erdogan, o chamou
de “ignorante", por ter viajado para Israel, “que bombardeia a Faixa de
Gaza". Auster retrucou que, “apesar dos problemas, lá existe liberdade de
expressão". O novo livro de Paul Auster, Winter Journal (Diário de
Inverno) está sendo lançado na Turquia, antes de sair nos Estados Unidos.
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O samba em três gerações
No
Cruzeiro, a família Silva é sinônimo de carnaval animado. Foi por iniciativa do
patriarca, Francisco de Assis Silva, o Chico Bombeiro, que nasceu a Aruc. O
fundador já morreu, mas a matriarca do clã continua à frente de filhos, netos e
bisnetos para garantir o sucesso da folia correioweb 04.02
-
Dona
Cecília entre os familiares: "Se eu sarar dos meus pés, ainda vou sair
pelo menos mais uma vez"
Os
Silvas se formaram, cresceram e envelheceram ao som dos tamborins. Basta um dia
de folga, com sol ou chuva, para que a árvore ao lado da casa da família vire
uma quadra de samba com direito a bateria, cantores e passistas. Não tem fim de
semana em que a área verde da Quadra 8 do Cruzeiro Velho não se encha de
parentes dispostos a celebrar as felicidades e tristezas da vida, como se
estivessem na avenida. “Está no sangue.
Puxamos essa bagunça do meu pai”, dispara Fernando de Assis, 60 anos, o filho
mais velho.
A
paixão pelos pandeiros surgiu com o patriarca Francisco de Assis da Silva, o
Chico Bombeiro. Ele passou a infância e a adolescência no Rio de Janeiro.
Quando se mudou para a nova capital do país, no fim da década de 1950, amadureceu com os amigos a ideia de criar uma
agremiação nos melhores moldes cariocas. E assim surgiu a Associação Recreativa
Unidos do Cruzeiro (Aruc).
O
amor que Chico tinha pelos acordes do tarol e do pandeiro contagiou três gerações.
O patriarca se foi em 1995, mas deixou para todos a lição de que o samba não
pode morrer. “A gente faz carnaval todo dia. Quando não estamos brigando,
estamos em festa”, descreve Fernando, o primogênito, que herdou o apelido do
pai. “É a melhor maneira de encarar a vida”, emenda o irmão Júlio César, 45
anos, o Mestre Boca, do repique.
Atualmente,
a matriarca, Cecília Lopes da Silva, os sete filhos, os 14 netos e os cinco
bisnetos têm orgulho de carregar nas lembranças e no presente os bons momentos
proporcionados pela magia do carnaval. Aos 82 anos, Dona Cecília, que em breve
será tataravó, prefere não se arriscar na Ala das Baianas, como fez incontáveis
vezes nas passarelas candangas. “Sinto falta de tudo aquilo. Se eu sarar dos
meus pés, ainda vou sair pelo menos mais uma vez na avenida”, planeja, sentada
em frente à casa onde viu a vida passar como em um bloco de carnaval.
Talento
hereditário
Toda
vez que se reúnem, os Silvas se dão conta de que têm histórias de muitos outros
carnavais. Maria de Fátima, 51 anos, a terceira filha do casal e primeira
nascida em Brasília, estreou na avenida aos 3 anos de idade. Não era W3 Sul,
Eixão nem Ceilambódromo. O desfile ocorreu nas ruas recém-abertas do Cruzeiro
Velho. Na adolescência, aprendeu a desenhar e costurar as fantasias. Virou
passista, assim como as irmãs Márcia Regina, 47, e Marta Valéria, 44.
A
relação com o samba é vista como algo especial. Júlio César observa que a
maioria da família sabe dançar ou tocar algo que remeta ao carnaval. “É um dom.
Todo mundo começa com um instrumento pequeno, como um chocalho, até encontrar o
que mais gosta”, avalia Mestre Boca.
Se
depender da paixão dessa família pelos atabaques e tamborins, o carnaval de
Brasília terá muito o que ganhar. “Antes, era puro amor. Hoje, o carnaval
evoluiu, virou empresa. Mas a gente tenta manter o que era antes. Vou sempre
lutar pelo carnaval de Brasília”, afirma Mestre Boca.
Chico
Bombeiro, nos tempos em que a escola começava a atuar
Suvaco
da Asa
Inspirada
na folia pernambucana, a tradicional troça carnavalesca Suvaco da Asa dá
início, às 10h, na Quadra 10 do Cruzeiro Velho, em frente ao Quiosque da
Codorna, às festividades de Momo. O evento é aberto ao público e reúne foliões
de todas as idades. A entrada é franca, e as camisetas do Suvaco da Asa são
vendidas a R$ 20 (infantis) e R$ 25 (adultas). A Orquestra Popular Marafreboi
acompanhará o percurso, e a programação será encerrada às 17h.
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Jovens apanham ao impedir agressão a morador de rua
Vítimas
receberam socos e pontapés ao defender homem que era espancado FOLHA SP 04.02
-
Dois
jovens, de 20 e 21 anos, foram agredidos na madrugada de anteontem quando
tentavam defender um morador de rua, na Ilha do Governador, zona norte do Rio.
Os
dois tentaram evitar que a vítima fosse surrada por seis jovens. Ao intervir,
receberam socos e chutes. O crime ocorreu na praça Jerusalém, no Jardim
Guanabara.
Vítor
Suarez Cunha, 21, está internado em um hospital do bairro. Ele sofreu
afundamento de crânio, fratura de ossos da face e teve vários dentes quebrados.
Deverá ser submetido hoje a uma cirurgia plástica reparadora no rosto.
Kleber
Carlos Silva Sousa, 20, que o acompanhava, foi segurado por um dos agressores
para impedir que ajudasse Cunha a escapar do ataque.
"Era
por volta de 1h30 quando vimos seis caras em cima de um mendigo. Pedi para
pararem, mas levei um soco por trás. Vítor tentou me defender e foi todo mundo
para cima dele", contou à Folha Sousa, que reconheceu três agressores como
Tadeu Assad, William Bonfim e Rafael Zanini. Os dois primeiros foram presos na
noite de ontem.
A
Folha tentou contato com os três, sem sucesso. Na delegacia, uma advogada disse
que representava os presos, mas não quis se identificar nem dar declarações.
Segundo
Sousa, um dos jovens disse que estava tentando expulsar o mendigo do local para
que seu pai, que caminha sempre na praça, não tivesse que passar por ele.
O
jovem disse que o grupo frequenta a praia da Bica, perto do local das
agressões.
O
técnico de informática Vinícius Suarez Cunha, 28, irmão de Vítor, disse que a
mãe deles, Regina Fusco Suarez, é assistente social da prefeitura e trabalha em
um abrigo.
"A
gente entende a realidade dessas pessoas e ele ficou chocado ao ver o mendigo
sendo agredido. Aquilo não foi briga, foi tentativa de homicídio." O
morador de rua não foi identificado.
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Fotobiografia ilumina vida e obra do poeta Fernando
Pessoa
Volume,
elaborado por Richard Zenith e Joaquim Vieira, refaz a trajetória do autor
português e reúne mais de 400 imagens sobre ele FOLHA SP 04.02
-
Quando
morreu, em 1935, aos 47 anos, Fernando Pessoa tinha apenas um livro de versos
em português, "Mensagem" (1934), e alguns poemas espalhados pela
imprensa. Foi o suficiente para ser saudado como o "grande poeta de
Portugal".
Nas
décadas seguintes, contudo, descobriu-se que isso era apenas uma ínfima parte
da produção de Pessoa. Além de um conjunto de textos inéditos, veio à tona que
os heterônimos iam muito além dos já conhecidos Alberto Caeiro, Ricardo Reis e
Álvaro de Campos.
Esse
baú secreto ganha agora as páginas da "Fotobiografia de Fernando
Pessoa", livro com texto do americano Richard Zenith, especialistas em
Pessoa, e organizado pelo português Joaquim Vieira.
O
livro reúne mais de 400 imagens, incluindo fotos raras do poeta, sua família e
amigos, além de manuscritos, diários, documentos, cartas e recortes de jornais.
Vieira
pesquisou em arquivos de Lisboa para encontrar fotos dos lugares nos quais o
poeta morou e trabalhou.
Zenith
fez o mesmo em Durban (África do Sul), onde Pessoa viveu dos sete aos 17 anos.
"Nenhum dos edifícios em Durban onde ele morou ou estudou existe hoje. Não
foi nada fácil desencavar as fotografias", conta Zenith.
Pessoa
raramente se referia aos anos que passou em Durban, mas, para Zenith, é
fundamental a influência dessa fase na obra do autor.
"A
cultura e o ambiente de Durban, bastante europeu e mesmo anglo-saxônico,
marcaram muito o rapaz. O sentido de humor de Pessoa é mais inglês do que
português, por exemplo."
Para
os fãs do poeta, são muitos os atrativos. O primeiro poema conhecido de Pessoa,
escrito aos sete anos, aparece transcrito. A vocação precoce também se
manifestava nos jornais que criou, como "O Palrador" (1903).
Da
fase adulta é possível ler as cartas trocadas com Ofélia, seu único relacionamento
amoroso conhecido, manuscritos de poemas famosos e mapas astrais que fez para
ele mesmo, seus heterônimos e seus autores favoritos, como Shakespeare.
Outro
fato curioso relatado pelo volume diz respeito à censura sofrida por Pessoa em
1935, durante o Estado Novo português, por conta de um texto em que criticava o
projeto de lei que visava suprimir a maçonaria.
Uma
circular dos Serviços de Censura à Imprensa, emitida em fevereiro daquele ano e
reproduzida no livro, proibia referências ao artigo.
FOTOBIOGRAFIA
DE FERNANDO PESSOA
AUTOR
Richard Zenith
ORGANIZAÇÃO
Joaquim Vieira
EDITORA
Companhia das Letras
QUANTO
R$ 67 (264 págs.)
>>
Ícone da resistência, Rodolfo Walsh tem livro
lançado no país
"Variações
em Vermelho", inédito no Brasil, é a obra de estreia do argentino, morto
pela ditadura nos anos 1970
Volume
experimenta com gênero policial; seu personagem é uma espécie de alter ego do
próprio escritor FOLHA SP 04.02
-
A
obra de ficção do argentino Rodolfo Walsh (1927-1977) ganha edição brasileira
num momento em que o escritor vem se transformando em ícone da resistência à
ditadura dos anos 70 em seu país. O conjunto estava inédito no Brasil (exceto
por alguns contos que saíram em coletâneas passadas).
Também
tradutor e jornalista, Walsh é autor, entre outros, do clássico do jornalismo
investigativo latino-americano "Operação Massacre" (1957). Na
política, atuou como militante montonero (guerrilha de esquerda).
A
editora 34 começou a lançar sua ficção em português em 2010, com "Essa
Mulher e Outros Contos". Agora, chega às livrarias do Brasil o segundo
volume, "Variações em Vermelho".
Enquanto
isso, em 2011, a Justiça argentina, que vem condenando os responsáveis por
crimes cometidos pelo Estado argentino durante a ditadura (1976-1983),
determinou a prisão perpétua de 12 responsáveis por torturas e desaparições no
centro de detenção da ESMA (Escola Mecânica da Armada), relacionados com o caso
Walsh.
O
escritor terminou seus dias executado numa esquina do centro da cidade por um
comando militar, em 25 de março de 1977. Aspectos da morte ainda são
investigados.
"Variações
em Vermelho" é o livro de estreia do escritor e foi lançado em 1953. Nele,
Walsh experimenta com o gênero policial, do qual era admirador desde que
trabalhara para a editora Hachette, revisando e traduzindo obras dessa
vertente.
Além
disso, Walsh tinha como principal referência os trabalhos de Jorge Luis Borges
(1899-1986), um fã confesso do gênero.
No
texto "Dois Mil e Quinhentos Anos de Literatura Policial", que está
no volume, Walsh faz uma análise sobre o histórico do estilo, de certa forma
inserindo-se nele.
O
escritor é herdeiro de uma longa tradição literária argentina vinculada ao
policial. Dela fazem parte, além de Borges, Ricardo Piglia ("Alvo
Noturno").
O
protagonista dos contos de "Variações em Vermelho" é Daniel
Hernández, uma espécie de alter ego do escritor.
O
herói é também um revisor de provas, que usa as habilidades requeridas por sua
profissão para resolver enigmas criminais.
Por
ter sido um militante montonero, Walsh virou um ícone, escolhido pela
presidente Cristina Kirchner para representar a resistência à ditadura. A
militância kirchnerista o celebra.
Para
o editor e tradutor Sergio Molina, o vínculo que se faz de Walsh com sua
militância política, hoje, é prejudicial para a apreciação literária de sua
obra.
"Ter
virado um mártir e prócer oficial da 'era K' [Kichner] provocou a reação de
negar sua importância literária", diz. Molina destaca, assim, a relevância
de resgatar sua ficção hoje. A editora 34 prevê lançar, ainda, um terceiro
volume, "Os Casos do Delegado Laurenzi e Outros Contos Resgatados",
com 22 contos que foram publicados em revistas da época.
VARIAÇÕES
EM VERMELHO
AUTOR
Rodolfo Walsh
TRADUÇÃO
Sérgio Molina e Rubia Prates Goldoni
EDITORA
34
QUANTO
R$ 39 (240 págs.)
>>>>
ANÁLISE
Szymborska fazia poesia leve, mas com direção
Escritora
polonesa, ganhadora do Nobel em 1996, morreu nesta semana deixando obra
profunda e questionadora FOLHA SP 04.02
Dessa
natureza é a poesia de Wislava Szymborska: leve e com direção, determinação,
vontade e propósito; nunca aleatória
-
De
muito poucos escritores pode-se dizer que sejam -como Wislawa Szymborska
(1923-2012), morta na última quarta-feira- tão simultaneamente fulgurantes e
discretos, densos e simples, profundos e leves.
Leves
no sentido atribuído por Italo Calvino, em seu ensaio sobre a leveza, no livro
"Seis Propostas para o Próximo Milênio", em que mostra que a boa
leveza é aquela do pássaro e não a da pluma.
Dessa
natureza é a poesia de Szymborska: leve e com direção, determinação, vontade e
propósito; nunca aleatória. E que não se confunda sua simplicidade -e até
delicadeza- com inocência; grandes rasteiras podem ser dadas com um golpe
certeiro e coreográfico.
São
assim as poesias do livro "Poemas", recentemente lançado no Brasil
pela Companhia das Letras e traduzidos com excelência por Regina Przybycien,
dessa língua -o polonês-, cujos mistérios, ao menos para nós, só podem ser
revelados por uma versão muito especializada, mas que já presenteou o mundo com
escritores como Bruno Schulz e Witold Gombrowicz, além da própria Wyslawa.
Ganhadora
do Prêmio Nobel no ano de 1996, manteve-se reclusa e avessa aos holofotes na
Cracóvia, de onde quase nunca saía.
Embora
a musa da poesia não tenha recusado a ela a multidão, parece que a própria
poeta cumpriu o destino traçado em um de seus poemas, "Recital da
Autora": "Musa, não ser um boxeador é literalmente não existir./ Nos
recusaste a multidão ululante./ Uma dúzia de pessoas na sala,/ Já é hora de
começar a fala./ Metade veio porque está chovendo./ O resto é parente. Ó
Musa".
Em
um outro poema do mesmo livro, "A mulher de Lot", numa combinação de
feminismo, desmistificação e iconoclastia, a própria personagem bíblica, aqui
em primeira pessoa, justifica o seu gesto de desobediência a Deus: "Senti
em mim a velhice. O afastamento./ A futilidade da errância. Sonolência./ (...)
Olhei para trás de solidão/ De vergonha de fugir às escondidas".
GRÃOS
DE AREIA
Mas,
apesar do efeito questionador, nada nessa poesia é grandioso. O processo de
desmanche dos mitos se dá por um gesto de desfilamento, nunca de destruição ou
grandiloquência.
Os
grandes acontecimentos, afinal, são feitos somente de pessoas e de coisas. E
essas, como os grãos de areia, não se chamam "de grão, nem de areia"
e dispensam "um nome geral, particular/ passageiro, permanente/ errado ou
apropriado".
As
coisas são, felizmente, poucas e pequenas. É disso que se constitui a vida e,
certamente como queria a poeta, também a morte. Szymborska partiu dormindo.
Leve como um pássaro.
Leia
amanhã na "Ilustríssima" três poemas da autora polonesa
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