domingo, 2 de outubro de 2011

EXPOSIÇÃO » O profeta da educação

Mostra multimídia celebra na UnB a passagem dos 90 anos do pedagogo pernambucano Paulo Freire CorreioBsB 02/10

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O espírito de Paulo Freire, o autor da pedagogia da liberdade, do sonho e da alegria, nunca esteve tão vivo quanto agora, na passagem dos seus 90 anos. Para os desvalidos, se tornou sinônimo de dignidade, de emancipação, de solidariedade e de cidadania. Ele é o tema de uma exposição multimídia, animada pelo desejo de reviver e reinventar o personagem, a ser inaugurada, na quarta-feira, no Memorial Darcy Ribeiro, na Universidade de Brasília. A curadoria é de Bené Fonteles e Tânia Quaresma.

Os visitantes serão recebidos por um boneco de Paulo Freire que só falta falar e convidados a vivenciar a pedagogia do educador pernambucano, por meio de instalações, painéis, vídeos, exposições e outras atividades lúdicas. Com sua barba de profeta do Antigo Testamento, ele parece uma mistura de Antonio Conselheiro com São Francisco de Assis. Mas os 26 painéis de fotos e textos revelam um educador de indignação serena e afetuosa, imbuído da certeza dos visionários e dos santos com a facilidade que têm de descobrir o óbvio.

O grupo Martinha do Coco apresentará Coco dos Angicos, em homenagem a Freire. E os brasilienses do Mambembrincantes abrem a cerimônia sem cerimônia, com uma versão do Hino Nacional. Em um varal, serão penduradas páginas ampliadas de um folheto de cordel sobre a vida de Freire escrito pelo poeta popular Costa Senna. Os artistas plásticos Bené Fontelles e Rômulo Andrade prepararam instalações para a parte externa e interna da exposição.

Documentário

Realizada pela Secretaria de Cultura e pela Fundação Darcy Ribeiro, a mostra é itinerante e integra um projeto maior de celebração e reflexão crítica batizado de Sonhando com Paulo Freire — A educação que queremos. Brasília será o ponto de partida de um documentário em longa-metragem sobre a vida e as ideias do educador. Dirigido por Tânia Quaresma, será rodado no Brasil, na África, na Índia e na Suécia. “Poderia abrir o festival de cinema de Brasília do ano que vem”, sonha Tânia Quaresma. “Durante todo o período da exposição, estaremos convidando as pessoas do Entorno envolvidas com as ideias de Paulo Freire para gravar e depois viajaremos pelo Brasil e pelo exterior. Já fizemos vários documentários sobre ele, mas, agora, o projeto é de um filme em película para exibição no cinema.”

Tânia conheceu o pedagogo ao ler o clássico Pedagogia do oprimido, mas, ao realizar um documentário sobre ele, descobriu que era freireana e não sabia. Na própria etimologia da palavra aluno, a cineasta detecta uma barreira para que se instaure um processo libertador do conhecimento: “Aluno é o que não tem luz, alumem. E, viajando e conhecendo os grupos de educação popular espalhados pelo Brasil, vi o quanto a gente pode aprender com os outros. A pedagogia de Paulo Freire é de descoberta das pessoas”.

Institutos na Índia

Na passagem dos 90 anos do educador pernambucano, Tânia descobriu que existem 90 institutos Paulo Freire na Índia: “Por lá, a referência brasileira não é Pelé ou Ronaldinho. Quando a gente fala em Brasil, eles tocam logo no nome de Paulo Freire. É importante mencionar isso para que as pessoas percebam no Brasil a importância dele como educador em um plano internacional”. Freire realizou inúmeros círculos de cultura em Ceilândia e no Núcleo Bandeirante, em 1953 e 1964. Eram encontros com a comunidade para levantar quais as palavras mais importantes na vida das pessoas: “A partir daí, ele transformava as palavras em fonemas para realizar o processo de alfabetização”, completa a documentarista.

Tânia ressalta que o projeto não pretende apenas realizar o culto do grande homem que foi Paulo Freire, mas também discutir a educação no Brasil. As suas ideias inspiram ações em tribos indígenas e até em escolas de circo ou grupos de catadores e recicladores de lixo. Ele não é apenas um personagem datado nos ideais que convulsionaram a década de 1960: “Ouvi de uma catadora de lixo, em Tocantins, que ela não conhecia ainda a obra de Paulo Freire. Mas, para ela, Freire já era sinônimo de justiça, solidariedade, liberdade, sabedoria e respeito. É o espírito dele que norteia os movimentos populares”.

Essas ideias estão rompendo com a mentalidade decoreba do ‘Ivo viu a uva’. Com Paulo Freire, você aprende quem planta a uva, quanto ganha Ivo e quem ganha mais com a uva. “É todo um movimento ligado à consciência dos direitos”, comenta Tânia. “Tudo o que ele falou está pautando as metas do milênio. Ele criticava a educação bancária em que se deposita o conhecimento no aluno para ele decorar. E falava da importância da alegria e da belezura para um bom aprendizado”.

SONHANDO COM PAULO FREIRE — A EDUCAÇÃO QUE QUEREMOS

Exposição multimídia. Abertura para convidados, terça-feira, às 20h, no Memorial Darcy Ribeiro (câmpus da UnB na Asa Norte, ao lado da reitoria). Aberta ao público a partir de quarta-feira, das 8h às 18h.

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Para rimar amor e dor

Vou rifar meu coração, dirigido pela estreante Ana Rieper, encerra hoje a mostra competitiva, com a participação de cantores como Wando, Amado Batista e Agnaldo Timóteo CorreioBsB 02/10

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“Não é um filme sobre a história da canção brega nem um documentário a respeito de dado momento da música popular brasileira. É um filme sobre o amor”, define a estreante Ana Rieper, quando fala de Vou rifar meu coração, atração de hoje no 44º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Formada em geografia, cinema e antropologia, a cineasta tem instrumentos de sobra para desvendar cartografia que explane a paixão de brasileiros que, religiosamente, se convertem aos sucessos defendidos por Waldick Soriano, Nelson Ned, Reginaldo Rossi e Peninha, entre dezenas de outros, ainda que em embalagens distantes da unanimidade. Se não alcança muito da classe média, isso pouco importa para Ana Rieper. “Meu objetivo com o filme não é promover ou resgatar, ou reabilitar essas músicas diante do público A ou B. Quero apresentar o que de mais profundo vejo nelas”, adianta.

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“Gosto de música boa, o que é um conceito discutível”, diverte-se a diretora, enquanto lista a predileção por letras românticas, samba antigo, funk e jazz. “Para atingir o gosto de uma pessoa que vai além do som, a música passa por uma comunicação que é individual, com acesso direto aos sentimentos”, pontua.

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Anônimos que, de fato, vivem histórias de amor presentes em músicas e valores que motivam artistas nas criações são o ponto de partida para o longa-metragem. “O combustível para os intérpretes é a própria história deles. No fim do filme, Agnaldo Timóteo sintetiza: ‘Todas as músicas que fiz falam da minha vida, sobre a minha cama e sobre os meus sofrimentos. Por isso, eu me comunico tão bem com as pessoas’”, destaca Rieper.

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De presença eloquente e com vivacidade, Timóteo se tornou figura “muito especial” para a cineasta. “Ele tem um disco chamado Os brutos também amam, e acho que ele é esse personagem: tem arroubos de violência verbal, com postura de machão, mas as músicas são sentimentais demais e ele sofre muito, pela poesia e pela honestidade”, detecta. Mesmo que não esteja balizado pela tristeza (“O filme tem muito humor, equilibrando profundidade, deboche e descaramento das pessoas”), Vou rifar meu coração aposta, por vezes, em elementos severos.

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Músicas como Mulher de cabaré e Luz negra (ambas de Roberto Muller) e Vou tirar você desse lugar (de Odair José) ilustram, a exemplo do que verbaliza Lindomar Castilho (“A nossa música é música de cabaré”), o trânsito do cancioneiro nas casas de luz vermelha. “O erotismo que registramos está totalmente associado a situações românticas. É um assunto muito presente no que toca o amor carnal, tramas de abandono e transas de uma noite”, conta a diretora.

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Chacotas

Traição, inevitavelmente, é tema-chave para o filme. Não pesa tanto, porém, a galhofa associada aos “cornos”, dos quais Alves Correa, o radialista de Arapiraca (interior de Alagoas), é porta-voz. Nos 5 mil quilômetros percorridos para as filmagens de quatro semanas (por Sergipe, Alagoas e Pernambuco, em especial, além de Rio de Janeiro, São Paulo e Goiânia), a equipe de Ana Rieper desconstruiu as chacotas feitas pelos colegas do frentista Maguila (perto de Aracaju), um dos personagens com dores de amores.

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“Diante da dimensão sentimental do amor dedicado à mulher que o abandonou, adotar o termo cornudo para Maguila seria empobrecedor e preconceituoso. Ele tem um discurso tão bonito que saiu imediatamente da categoria”, afirma a diretora do filme, feito em suporte digital a partir de R$ 700 mil.

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“Delicada e feminina”, a travesti Marquise, moradora do povoado Pedra Branca (a 100km de Aracaju), também desbancou preconceitos. “Ela tem uma vida intensa, com mergulho na opção amorosa que lhe custou muito. Me chamou a atenção a coragem, como assumiu a urgência da condição homossexual num ambiente extremamente conservador, em que isso não é aceito, oficialmente”, avalia.

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Se nos anos 1970 — quando Wando, Amado Batista e Diana venderam milhões de discos —, a cineasta crê ter existido “um grande movimento da indústria cultural que valorizou a música brega”, a conjuntura atual se distingue. “Ao longo dos últimos 40 anos, a música brega permaneceu no gosto popular, a despeito dos investimentos da indústria cultural”, diz Rieper. Caso gritante está na difusão do “brega novo” que invadiu Recife e se desenha no filme.

Vou rifar meu coração, um projeto acalentado por 10 anos, deriva (em muito) do interesse da carioca de 36 anos por ações sociais (ela atuou em ONG no interior sergipano, por quatro anos) e de seleção “etnográfica” em torno dos temas recorrentes do playlist tachado de brega. Reconhecida pela condução do programa Afinando a língua (Canal Futura) e, no restrito circuito de cinema ambiental, pela direção do longa Na veia do rio, Ana Rieper se anima com a entrada na vitrine “autoral” associada ao Festival de Brasília. Na manga, traz a cartada de exaltar uma produção orientada pela “arte que vai aonde o povo realmente está”.

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Affonso Romano de Sant'Anna.>>>> www.affonsoromano.com.br

O dia em que vi os Beatles CorreioBsB 02/10

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Peguei um táxi no Rio há algum tempo e o chofer, muito animado, me dizia que tinha ido a São Paulo para ver o show do famoso Paul McCartney. A imprensa estava fazendo um auê danado com a presença do famoso beatle. E o chofer me perguntou se eu também tinha ido ver o ídolo. Ele queria cumplicidade.

Fiz uma coisa cruelmente engraçada, mas irrecusável. Disse:

— Olha, quer saber, não fui ver “esse” Beatles, era muito esforço, longe e caro, além do mais, vou te revelar uma coisa: eu já vi os quatro Beatles, em 1966, cantando em Los Angeles. Todos os quatro. Quer dizer, mais de 40 anos depois, sair para ver “um” Beatles, não dá...

Ele me olhou incrédulo e maravilhado. Não sei se com inveja ou me achando metido. Eu me divertindo.

Quando saí do Brasil, em 1965, para lecionar na Califórnia, os Beatles já eram uma mania, tinham acabado de ser condecorados como Membros da Ordem do Império Britânico pela Rainha Elizabeth II, do Reino Unido. Quando o revolucionário disco Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band saiu, eu estava já em Los Angeles me encharcando de contracultura.

Agora está rolando este novo Rock in Rio. Aquele chofer deve ter ido. Ele e milhares, mesmo a pé. Eu não fui. Nem carecia. Mas vi alguma coisa pela televisão e nos jornais. Me impressiona que aquela gente saiba de cor músicas que nunca ouvi, de cantores de que não tenho a menor ideia quem sejam. Cantam com um fervor e uma estridência histérica, quase mística.

Aliás, ir ao Rock in Rio virou algo como ir a Santiago de Compostela ou ir a Roma. Uma romaria. É como se os jovens, movidos pela imprensa, pensassem: se eu não for, o que é que vou contar pros meus netos? As pessoas vão para narrar que foram. Ir a esse concerto virou uma narrativa, um jeito de se inserir na história, uma forma de ser jovem. Por isso, os pais e avós tornam ali com seus descendentes, como se fosse possível reinventar o tempo e a juventude. Ali, a música é um detalhe apenas.

Quando vi aquele espetáculo dos Beatles, era diferente. Embora as adolescentes do meu lado arranhassem os rostos e puxassem seus cabelos histrionicamente, os quatro estavam lá no palco, tranquilos. Aliás, tranquilos demais. Era um antiespetáculo. Não havia esse show de luzes e fumaças. E vou lhes fazer uma confissão, algo que não disse àquele chofer: eles estavam longe, no meio do campo do estádio, desconfio que eles nem cantaram, que estavam ali fingindo, utilizando um esperto playback.

Mas se eu dissesse isso àquele chofer, até ele ia ficar decepcionado.

P.S.: Acabo de escrever esta crônica e me ocorre mexer em meus arquivos, onde encontro uma crônica de 1966, enviada de Los Angeles, na qual descrevia sucintamente o que foi aquela cena histórica & histérica no Dodger Statium. Os Beatles cantaram a última canção, entraram rápido em dois impalas que estavam atrás do palco e fugiram pelo portão do estádio. Mas os carros voltaram de marcha a ré, porque lá fora havia uma multidão barrando o caminho. O locutor implorava que saíssem todos do estádio porque seriam presos. Adolescentes se unhavam, se rasgavam nas arquibancadas. Acho que os Beatles só saíram de lá escondidos no dia seguinte. Já naquele tempo o negócio não era só assistir ao espetáculo, o negócio era ser o espetáculo.

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Conversa com cineasta - Evaldo Mocarzel

Mocarzel combate a crença de que fazer bom uso de verbas públicas na produção cinematográfica é obter sucesso comercial CorreioBsB 02/10

Ricardo Daehn

Publicação: 02/10/2011 02:00

Soa quase como um casamento a relação entre o cineasta fluminense Evaldo Mocarzel e o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Nessa integração entre um patrimônio cultural zeloso das bases críticas, que favorecem debates e educam público afoito, e um diretor de cinema que, há mais de 10 anos, aposta em registros documentais éticos e precavidos em termos da apropriação das imagens dos personagens enfocados, o Cine Brasília parece servir de templo para celebrar tal matrimônio. Foi lá que, ainda em fase de namoro, pela produção À margem da imagem (2002), Mocarzel foi laureado com o prêmio Margarida de Prata, da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), antes de competir no festival por produções como À margem do concreto (2006), Jardim Ângela (2007), À margem do lixo (2008) e Quebradeiras (2009).

Se participar da seara formada no festival, na opinião de Mocarzel, “é estar na linha de frente do cinema independente e autoral que se faz no Brasil”, aos 51 anos, ele novamente pode se sentir contemplado já que o curta Encontro das águas (codirigido por Bruno Torres) — um estudo sensorial de ambientação na Chapada dos Veadeiros (GO) — está na Mostra Brasília, com exibição programada para hoje, no Museu Nacional Honestino Guimarães.

Pelo que conta, a fita deve ser mais uma contribuição em defesa do contrapeso ao cinema comercial. Aliás, na “eternamente embrionária ‘indústria’ de filmes nacionais”, como ele define, a experimentação visual de obras investigativas deveria buscar harmonia

perante o dito “cinema comercial”.

No cenário atual das produções audiovisuais, Evaldo Mocarzel questiona equívoco adotado até na mídia da “defesa de que fazer bom uso de verbas públicas é atingir recordes de bilheteria e produzir blockbusters a todo custo”.

De volta ao campo da capital cinematográfica que atribui prêmios Candango, um elogio exaltado pelo cineasta — “o Festival de Brasília trata o filme documentário e a ficção propriamente dita com a mesma deferência, sendo tudo cinema” — pode vir a ruir em 2012, e ameaça azedar, em parte, a estável relação do cineasta com a cidade. Uma turbulência que, seguramente, não vai liquidar o eterno apreço de empolgação: “Em Brasília, o longa À margem do concreto (2006), que focalizou a luta dos movimentos de moradia em São Paulo, ganhou o Prêmio do Público em Brasília, com aval da sempre calorosa plateia. Isso recarregou por muitos e muitos anos a minha garra de

fazer cinema no Brasil”.

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A discreta revolução digital

Mostra faz história ao derrubar a exclusividade da película no Cine Brasília. Com boa qualidade de projeção, novidade é elogiada pelos cineastas CorreioBsB 02/10

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De tão discreta, a revolução passou despercebida para muita gente. Mas Leonardo Sette, um dos diretores do documentário As hiper mulheres, não escondia um certo orgulho ao comentar sobre a importância daquela sessão de terça-feira, que abria a mostra competitiva do 44º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. “É a primeira vez que um longa em digital passa no festival, não é?”, observou ao repórter. Não seria exagero, portanto, eleger aquela projeção como um momento histórico na trajetória do evento. A mostra mais antiga do país aceitou, enfim, a convivência entre a película e o digital.

A inovação provocou transformações significativas tanto na disputa principal — que passou a incluir filmes que teriam sido excluídos do festival em edições anteriores — quanto nas seleções paralelas. Na Mostra Brasília, por exemplo, caiu a separação entre curtas em 35mm e as produções de iniciantes, universitários: todos ocuparam a mesma tela, no Museu da República. E a qualidade da projeção, um “quesito” que amedrontava os realizadores à véspera do evento, não decepcionou: ainda que sem as nuances da película, agradou a cineastas e a plateia.

“O festival teve várias mudanças, muitas foram questionadas. Mas não vi ninguém criticando a inclusão de filmes em digital. A tecnologia deixou de ser uma questão de opinião”, comentou Sette, que dirige As hiper mulheres com Carlos Fausto e Takumã Kuikuro. O longa, que retrata o maior ritual feminino do Alto Xingu (MT), se beneficia da praticidade das câmeras digitais para se embrenhar no ambiente onde vivem os personagens. “O cinema contemporâneo passa pelo digital. É inevitável. Se o festival ficasse limitado aos filmes em 35mm, seria coisa de museu. Esse foi uma mudança que aconteceu naturalmente, e é por isso que as pessoas estão a encarando com muita naturalidade”, diz.

O curta paulista A casa da vó Neyde, de Caio Cavecchini, é um exemplo de filme que encontrou um espaço na competição graças à alteração no regulamento do festival. “É uma janela que se abre para os realizadores. Nesse momento da nossa produção, em que todos têm uma câmera ou um celular, a discussão (sobre a valorização da película) deixou de fazer sentido”, afirma. “O festival está quatro anos atrasado quando se fala em digital. Também acredito que é desimportante discutir a bitola usada para fazer o filme. O que interessa é o que ele mostra, o que ele tem para comunicar”, reitera o diretor Aly Muritiba, do curta A fábrica.

Apesar da boa aceitação de uma tecnologia antes barrada no Cine Brasília, ainda é indiscutível que existe uma diferença marcante entre os detalhes da película e a projeção “chapada” do digital, transmitido pela empresa paulista Auwê Digital (a antiga Rain). “Não tem a mesma qualidade”, admite Alexandre Dubiela, diretor da animação Bomtempo. “A película vai além, tem uma capacidade bem maior. Só que ela é muito cara. Se você tem uma verba como a que eu tive, por exemplo, não teria como exibir o filme”, aponta. Para converter o curta ao 35mm, Dubiela gastaria praticamente todo o investimento que fez no projeto. “O digital permite que mais pessoas mostrem seus trabalhos”, pondera o cineasta.

Sem defeito

O mineiro Edgard Paiva, da animação 2004, também estava preocupado com o rigor da projeção. Ficou aliviado, no entanto, com um resultado que não degradou o trabalho de cores do projeto desenvolvido por ele. “É muito bom poder criar e depois guardar todos os arquivos do filme no computador. Hoje, todo mundo está apto a produzir”, conclui o diretor. “Fico nervoso antes das exibições, porque nem sempre a exibição é boa. Já aconteceu de o filme travar, mas aqui deu tudo certo”, comentou Rafael Urban, autor do curta Ovos de dinossauro na sala de estar.

O contraste entre digital e película, porém, se fez notar na segunda noite da mostra competitiva. Os curtas foram exibidos em digital. Já o longa Trabalhar cansa brilhou na tela com as ranhuras (e a precisão visual) do 35mm. “Fiz questão de trazer o filme em película. Ele foi produzido assim, não poderia ter sido exibido de outro jeito aqui em Brasília”, afirmou a produtora Sara Silveira, ao fim da sessão. No lançamento comercial do longa, serão distribuídas cópias nos dois formatos: 12 delas em 35mm. “Achei a projeção digital boa também. Na verdade, não importa a bitola. O importante é a coerência da linguagem utilizada. Acho natural que o festival tenha incluído o digital”, elogiou a codiretora do longa, Juliana Rojas.

No caso do curta Ser tão cinzento, o diretor baiano Henrique Dantas não estava tão apreensivo em relação ao grau de detalhismo da projeção digital. O filme agrega várias “camadas” de imagens, entre projeções em paredes e película antiga — a preservação do passado cinematográfico é um dos temas principais de que o filme trata. “Trabalhei pensando que esse filme poderia ter sido exibido em diversos formatos: em DVD, em película, no computador. O próprio filme propõe um pouco essa viagem”, comenta. Uma aventura que, no Festival de Brasília de 2011, não encontrou resistência.

Colaborou Yale Gontijo

FESTIVAL DE IMAGENS

Diversidade, renovação, irreverência, interesses comuns e descontração marcam as noites do Cine Brasília, como confirmam os cliques do fotógrafo Carlos Moura

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Muito prazer - Jorge Dupan

O 44º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro tem a história cravada na cinematografia nacional, como a mais tradicional e importante mostra do país, dona de um público crítico, jovem e engajado. CorreioBsB 02/10

Mas se alguém fosse contar a história da vida privada desse grande evento, certamente teria que reservar um capítulo a Jorge Dupan, performer que durante anos alimentou os bastidores com alegria contagiante, vestido de personagens deslumbrantes e sempre com uma cesta de pão caseiro por perto. Agora, sem a maquiagem e o figurino, ele circula atento na Praça de Alimentação do Cine Brasília e sonha com o dia em que todos chegaram ali fantasiados num encontro lúdico. “Estimulo sempre que as pessoas cheguem assim, como eu cheguei um dia.”

O que define Jorge Dupan hoje?

O amor que as pessoas têm que ter umas pelas outras. As pessoas precisam ter mais amor pelas outras. O mundo é cruel, por isso chega de falar mal do Brasil. Aprendi com Cássia Eller que se deve sorrir para todos. Dizer “oi!” (durante a entrevista, ele interrompe diversas vezes o bate-papo para cumprimentar quem passa diante dele no sofá). Como não dizer “oi” para uma pessoa desta (refere-se a Dad Squarisi, colunista e editora de Opinião do Correio)? Gracinha! Então, tem que cumprimentar, tem que ter respeito, reciprocidade, camaradagem. É isso aí… Sou um monólogo e vou dizendo “oi” por três horas.

Você performático é um multiartista?

Sou um multipão (risos). Legal saber que sou multiplicador. Ver as pessoas dentro do festival vestindo as suas roupas. Neste ano, tinha umas meninas ótimas de pijamas. Um rapaz bacana sendo performático. Não gosto de ser chamado de “number one”.

De onde veio o Dupan?

Eu já estava dançando com a Lenora Lobo na Alaya Cia. de Dança. Levava pão para comer na aula. Aí, uma guria experimentou e adorou. Fiz um tanto para ele e um monte de gente viu e passou a comprar. Aí, nasceu Jorge Dupan. Faço rosca, faço brioche, mas ficou Jorge Dupan.

Antes era como?

Jorge, só Jorge (risos).

Como e quando surgiu a ideia de ir ao Festival de Brasília defendendo uma personagem?

O primeiro foi em 1989. Tinha os shows do Concerto Cabeças. Fui com um macacão de estrela com capa, criado pelo Wagner Hermuche e dado pela Maura Baiochi. Coloquei um óculos escrito “oPTei”e fui vender pão. Sobraram uns 20 e alguém sugeriu que eu viesse para o Cine Brasília. Já vendia no Jogo de Cena, na Feira de Música, no Cabeças e não é fácil. Você faz o pão, produz o figurino, segura a personagem, tem que ser paciente com a onda do povo te enchendo o saco, vai vender, pegar o troco, atender bem. É punk. Então vim assim mesmo e, quando cheguei, a Luiza Dornas me viu, adorou, colocou-me para dentro e me patrocinou pelo tempo em que ela durou na Secretaria de Cultura.

E hoje a Secretaria de Cultura o ajuda?

Sempre tem uns três ou quatro que fazem de tudo para me ajudar. Mas aí vem a “Cuca” e bloqueia tudo. A “Bruxa do Oeste” também me atrapalha. Ah, tinha o “Coelhinho”, mas este foi embora, graças!

Como era a concorrência com a Praça de Alimentação?

Não tinha nada. Tinha um saguão que as pessoas ficavam ali. Cheguei ali de patins numa época em que a Isabelita ainda estava na Argentina dentro do saco do Papai Noel. O festival era em setembro, como agora.

Quando surgiu a vontade de ser bailarino?

Tinha uma emissora chamada Rede Globo que, em 1975, exibia um jornal-revista chamado Fantástico. Vi um povo se desvelando com as mãos e cantando: “Olhe bem preste atenção/ Nada na mão, nesta também”. Vi ali música e dança e me encantei, como eu sou: fino, franco fresco e filtrado. Mas aprendi a dançar vendo a leveza de Kazuo Ono. Ele me ensinou, aquele cara lento e languido.

Como é dançar aos 45 anos?

É mostrar que se tem qualidade de movimento. É muito fácil passar por aqui fazendo barulho, mas Pelé é Pelé. Tem que ter esse tempero. E tem mais uma coisa: para dizer que samba, tem que sambar muito.

Você ficou com medo de virar um folclore?

Não. Porque isso não vem de mim. Vem da recepção. É legal, quando alguém chega com o filho e diz que comeu o meu pão. A minha memória para o cliente funciona. Lembro exatamente o pão que cada um comia.

Você está gostando desta edição do festival?

Tenho uma crítica para fazer. Todo ano tem essa coisa rococó de colocar Orquestra Sinfônica para tocar por 40 minutos um clássico antes de tocar um rock, como foi neste ano com Eduardo e Mônica, da Legião Urbana. Antes de um rock, têm que vir outros. E depois vai todo mundo para festa para ouvir o quê? As mesmas músicas da trilha do filme Rock Brasília. O que acontece com essas pessoas que organizam isso?

Ali, na Praça de Alimentação, você conheceu muitos artistas. Quem o cativou?

Antes do festival, sempre Cássia Eller, com toda a timidez do mundo, mesmo botando o peito para fora. Mas tenho um enorme carinho pelo Chico Diaz, Maria Zilda e Zezé Motta. Deborah Secco é uma luz, linda e irradiante.

Quais foram as suas grandes personagens no Festival de Brasília?

Morena Morreu (dita com sotaque americano), uma Marilyn Monroe invertida de cabeça para baixo, essa fez muito sucesso. Minhas personagens nunca foram um rascunho. Sempre tinha uma paródia. Sou pop! A Chapeuzinho Vermelho era a Camufladinha. Ela jurava que estava fugindo e vestida de verde. O problema dela é que era daltônica. Eu prefiro a comissária de bordo, Hélice, que chegava oferecendo suco e refrigerante. Dizia: “Sou uma sereia nas alturas”, ali, só no peitão.

Você despertava olhares…

Uma vez estava de Mortiça e de costas, com aquele vestido preto e cabelos longos. Aí, o produtor J. Pingo viu aquela “mulher” e ficou impressionado. Quando virei, disse “oi” com a minha voz grossa, porque a personagem é só a imagem do meu trabalho. Surpresa geral.

Já teve grandes amores no festival?

Não. Vender pão dá muito trabalho. Mas agora tem um amor afermentando nesta edição.

Está rolando um boato na cidade de que você comprou uma máquina automática de fazer pão. Deve ser por isso que parei de vender (risos). Algum momento marcante no festival?

(Pausa e ele começa a chorar). Teve uma edição em que eu fui premiado ao subir ao palco do Cine Brasília e ser aplaudido. Tinha cantado uma versão de Dorothy (Mágico de Oz) para Fernanda Montenegro e Sérgio Mamberti. Estava feliz. Mas, no dia seguinte, minha irmã morreu. Eu dedico o espaço desta entrevista para ela, minha irmã.

Se você fosse o organizador do Festival de Brasília, o que faria?

Obrigaria todos a irem bem- vestidos. Faria também uma festa à fantasia. As pessoas também teriam que dar “bom-dia”, “boa tarde” e “boa noite”. Ah… e manteria o festival sempre nas manhãs, tardes e noites de setembro.

A educação é muito importante para você?

Claro, as pessoas estão mais mal-educadas, no tratamento diário, no trânsito. Falta respeito. Os ataques pessoais. O preconceito: “É preto, é mala”. Acompanho tudo no festival e vejo que tem gente que quer aparecer mais do que trabalhar. Eu não vou mais competir vendendo pão numa praça de alimentação com tantas opções. Então saio, mesmo quando tive um bar ali, para a área externa e como religiosamente meu acarajé na baiana, porque gosto de pimenta, gosto de dendê. E só nós temos o dendê.

Uma saudade?

Teve um festival que o Grande Othelo veio. Em seguida, ele viajou para a França e eu fiz uma viagem com o grupo Alaya. Lá, descobri que ele tinha morrido. As pessoas me perguntam por que não faço Charles Chaplin nem Grande Othelo. Engraçado, um preto e um branco que são tão próximos quanto figuras que expressam a felicidade cênica. Não sei…

Quando você começou a dançar na Alaya Cia. de Dança?

Em 1986, Leonora Lobo voltou de Londres e tinha “um borbulhar do gênio”, frase de Castro Alves que adoro. Ela veio com as técnicas de Klauss Vianna e queria ensinar a cada um, com uma gentileza sem tamanho. Foi lindo. Ano passado, fizemos um trabalho que me deixou no centro. Eu, sempre aquele menino que fazia a aula afobado, cheio de energia, senti uma sustentabilidade, um eixo.

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DE GRAçA » Encanto mambembe

A 10ª edição do Festival Internacional de Bonecos de Brasília prossegue até 28 de outubro em cidades do DF CorreioBsB 02/10

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Desde o último dia 23, o Distrito Federal anda mais colorido, lúdico, repleto de uma arte que não é feita somente por gente, de carne e osso. Na 10ª edição do Festival Internacional de Bonecos de Brasília, a capital e Brazlândia são as cidades que hospedam, no momento, marionetes, fantoches, ventríloquos e mamulengos de todos os gêneros e nomenclaturas. Da abertura até hoje, dia em que se encerra a programação na região central de Brasília, a Funarte deve receber até 30 mil espectadores. Mas o festival, atualmente o mais longo do país, não fecha as cortinas ainda. A diversão prossegue até 28 de outubro.

Na comemoração de uma década do festival, a programação será estendida a 10 cidades. “As asas do avião já se abriram e ninguém mais acha que Taguatinga não é Brasília. Temos o compromisso de descentralizar as ações culturais de forma democrática, com um olhar de responsabilidade social”, afirma Ricardo Moreira, criador e curador do festival, que destaca os pontos altos da festa de bonecos, em sua primeira semana. As noites que se destacaram, até agora, foram a reunião dos mestres mamulengueiros, de regiões e gerações diferentes, e a apresentação de Afonso Miguel, brincante com mais de 30 anos de tradição, que já viveu em diversos países do mundo e está com a saúde debilitada, andando de muletas. “A arte consegue superar as diversidades da vida”, defende Moreira.

Os principais beneficiados por essa roda viva teatral são as crianças matriculadas em escolas da rede pública de ensino. Elas lotam os espetáculos durante a tarde. Esta semana, uma das atrações foi As aventuras de Cassimiro Coco, da piauiense Cia. Calunga. Fanhuca, um boneco genioso e brincalhão, que arrancou gargalhadas das crianças, ao tirar sarro de seu ventríloquo, o manipulador Chagas Vale.

Na segunda parte da apresentação, a companhia contou a história de Cassimiro Coco (denominação dadas aos mamulengos em alguns estados do Brasil), um malandro regional que usa causos divertidos e sabedoria popular para se livrar de enrascadas, em histórias que sempre contam com bois, cobras e almas penadas em seu enredo. “Trago de volta brinquedos que foram importantes na vida das comunidades antes da televisão e da internet”, comenta.

Zoológico

Nos próximos dias, a agenda está recheada de uma profusão de bonecos de todos os tipos e tamanhos. Dois grupos que investem nessa seara vieram especialmente da Espanha (ambos estão pela primeira vez no Brasil) para mostrar seu estilo. O grupo Kamante, que há 15 anos mescla a expressão artística com uma proposta pedagógica, traz a montagem Que viene el lobo (Que venha o lobo). “É a história de um lobo de zoológico que quer ser lobo de conto, até se dar conta de que precisa ser feroz”, afirma a atriz Luisa Aguilar, uma das integrantes da companhia.

No lugar de bonecos, objetos. O próprio lobo é um filtro de café. Os pais da Chapeuzinho são feitos de funil e chaleira. Uma escova de cabelos customizada faz as vezes de porco-espinho. Como a releitura se apropria de outros contos da carochinha, os três porquinhos surgem no enredo. “Não buscamos uma estética infantil. Queremos que a criança se confronte com a arte contemporânea”, avisa Luis Vigil, o outro integrante da companhia. Para adaptar a montagem aos ouvidos brasileiros, eles traduziram e estudaram a pronúncia em português, um processo já utilizado para o italiano.

Os fãs de rock de todas as idades poderão ter acesso a uma proposta surpreendente. A dupla, também espanhola, Cia. Périplo Marionetas, criou pequenas marionetes dos Beatles e levou para o espetáculo um musical. “Começamos a trabalhar com técnicas de fios e gostamos. Vamos sempre aprimorando os bonecos, colocando mais fios, mais movimentos, material mais resistente”, afirma Diana Romero, uma das integrantes, acrescentando que ela e o parceiro, Andrés Maturana, seguem a técnica horizontal, influência alemã, que permite que os bonecos se movimentem mais.

O quarteto de Liverpool faz uma espécie de pocket show, com as canções Day tripper, I feel fine e Twist and shout. Antes disso, um casal de marionetes (Jack e Ella) faz uma dança de brigas e carinhos, ao som de uma miscelânea eclética, composta por Shakira, Billie Holliday e Tom Waits, entre outros. “Queremos que seja aberto, que seja para todos e que desperte nas crianças o interesse e a motivação pela música, pela carpintaria, pela arte”, deseja Maturana.

10º Festival Internacional de Bonecos de Brasília

Até 28 de outubro, em cidades do DF. Plano Piloto: hoje, na Funarte (Eixo Monumental), às 16h, Suma daqui menino, com a Cia. Patética Teatro (SP). Na tenda João Redondo, às 16h, Bonecos de Kalunga, de Gilberto Calungueiro (CE). Na tenda Cassimiro Coco, às 17h, congada (DF). Às 18h30, Mestre Saúba e a Boneca Lindalva (PE). Às 19h, Bibiu e a Boneca Givanilda (PE). Brazlândia: (Rua do Lago, Área Especial 1), hoje, às 16h, Titiribeatles, da Cia. Périplo Marionetas (Espanha); e, às 18h, As caixeiras (DF). Entrada franca. Classificação indicativa livre.

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