sexta-feira, 28 de outubro de 2011

A confusão urbana, acima e abaixo do solo. O Estado de S. Paulo - 28/10/2011

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Quem se dá ao trabalho de acompanhar as notícias é provável que se impressione com a desarticulação entre várias políticas que regem a vida dos cidadãos nas maiores cidades - cada uma atira para um lado e, somadas, provocam complicadas e indesejáveis consequências na vida das pessoas. É o caso, entre muitas, das políticas de transportes, construção de veículos, expansão urbana, combustíveis, controle da poluição do ar, manutenção de infraestruturas urbanas.

Pode-se começar pela área dos transportes. Segundo este jornal (20/10), só na primeira quinzena de outubro foram fabricados no País mais de 150 mil veículos e se espera para o mês todo que as vendas atinjam patamar semelhante ao de setembro (311,6 mil veículos); no ano, com aumento de 7% em relação a igual período de 2010, já são 2,83 milhões, mais 7%, nível recorde. A frota nacional já está além de 35 milhões. Só em São Paulo, mais de 7 milhões. E até 2015 novas fábricas e ampliação das atuais deverão acrescentar mais 2 milhões de veículos à produção anual, que hoje está em torno de 4,3 milhões, incluindo também caminhões, ônibus e comerciais leves. Ótimo para a economia, pensarão muitos. Mas que acontecerá nas cidades?

São Paulo, por exemplo, já tem um dos mais baixos índices de mobilidade urbana no País (Mobilidade Brasil, 14/10), pior que os de todas as cidades maiores, onde as questões já são graves. Uma das razões decorre de a frota de coletivos estar estagnada há anos, enquanto a população aumenta e sobe o número de automóveis. No Recife, onde a frota de veículos se aproxima de 1 milhão, um deslocamento de 22 quilômetros em transporte público leva duas horas. Em Goiânia (O Popular, 15/10), a velocidade média da frota de ônibus caiu 28% em três anos, para menos de 20 quilômetros por hora. Nesse período, a frota de automóveis e motocicletas na cidade cresceu 75%. E ainda há incentivos fiscais para a compra de veículos novos.

Também contribui para o drama dos transportes o fato de a rede ferroviária nacional responder hoje por menos de 30% do transporte de cargas - inclusive por causa do sucateamento a que foi submetida em parte, após as privatizações. Com isso é cada vez maior o transporte por caminhões, ajudando a atravancar o trânsito das cidades: em nove meses deste ano, o licenciamento desse tipo de veículo aumentou 15,9%, segundo a Anfavea (Estado, 16/10), e chegou a quase 130 mil unidades. Mas a frota, na média, ainda é muito antiga (média de 22 anos) e contribui fortemente, por esse motivo, para a poluição do ar urbano.

Quem acha que motos são um complicador no trânsito se assusta ao saber que suas vendas superarão as de automóveis em 2012 e que em dez anos haverá mais motos que carros nas ruas, segundo o Ipea (Estado, 26/5). Lembrando que uma moto pode emitir até 40 vezes mais poluentes que um automóvel e que esses veículos já são responsáveis pelo maior número de mortes em acidentes.

Nem mesmo caminhos legais são aproveitados para enfrentar questões da mobilidade e da poluição. Na cidade de São Paulo, 30% a 35% dos carros e motos estão em situação irregular e poderiam ser retirados das ruas. Mas apenas 100 mil estão apreendidos. O vice-governador Afif Domingos, segundo quem "a mobilidade em São Paulo é zero" (Estado, 21/2), promete que em dois anos serão implantadas "desmontadoras" para enfrentar o problema. Como? E até lá?

Chega-se aos combustíveis, com a redução do etanol na mistura com gasolina de 25% para 20% - o que aumentará a poluição do ar -, mesmo com o Brasil agora importando etanol de milho dos EUA. Nossos produtores de etanol responsabilizam por isso a política de energia, que mantém o preço do seu produto vinculado ao da gasolina, mantido em níveis considerados irreais para não estimular a inflação. Mas continuamos exportando etanol para a Califórnia (Estado, 20/10) e importando de outras áreas norte-americanas. E mantendo o Cerrado excluído das áreas onde não pode haver expansão da cana-de-açúcar. Com isso o bioma já perdeu a vegetação originária em metade de sua área e contribui com parcela relevante das emissões brasileiras que ajudam a intensificar mudanças climáticas.

Por aí entra mais um ângulo das relações com as políticas urbanas. Segundo a Cetesb, 11 de 14 regiões da cidade apresentaram padrões inadequados de poluição, principalmente material particulado. Na Grande São Paulo, a qualidade do ar foi considerada imprópria em 259 dias de um ano. As emissões de dióxido de carbono entre 1990 e 2008 no Estado de São Paulo aumentaram 58% (Estado, 26/4), passaram de 60,7 milhões de toneladas anuais para 95,7 milhões, e os veículos respondem por quase metade do aumento. Em um único ano os veículos emitiram 14,1 milhões de toneladas, mais que a indústria (13,4 milhões de toneladas). Registraram-se índices 392% mais altos que os recomendados pela Organização Mundial da Saúde (Estado, 1.º/8). No ano que vem entra em vigor resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente que pretende baixar o nível tolerável de enxofre para um décimo do atual. Será cumprida?

Nossas grandes cidades, em meio a tudo isso, ainda vivem atormentadas por enchentes, que também nos levam ao andar de baixo e aos problemas que ali estão. Este jornal informou (16/10) que sob as calçadas paulistanas estão 115 mil quilômetros de tubulações (quase três vezes e meia a volta à Terra), incluindo redes de água e esgotos (34 mil km), 4.700 km da rede de gás, 38 mil km da rede telefônica, 2,7 mil da energia elétrica, 1,5 mil das telecomunicações, etc. Dividem o espaço com 9,2 milhões de passageiros que usam o transporte subterrâneo. Cáspite!

Muitos administradores repetem (sem dar consequência) a frase dita há muito tempo por um sociólogo: o Estado tornou-se pequeno para resolver os megaproblemas de hoje; e, grande demais, não consegue chegar perto das questões que afligem o cidadão comum no seu cotidiano. É isso aí.

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ARTES VISUAIS » Naïf brasiliense. Trabalhos de Carla Pompeu, morta em 2008, serão expostos em galerias de Paris e Nova York. Lisbela participará do Salão Nacional de Belas Artes de Paris. Correio Web 28.10

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O caso de Carla Pompeu era com a vida. De preferência, uma vida alegre colorida. A artista sabia muito bem que o mundo não era lá tão colorido como ela gostaria, mas tratou de construí-lo de acordo com suas próprias fantasias. Nascida em Brasília em 1961, Carla só começou a pintar aos 30 anos, depois de formada em geologia e de uma carreira bem-sucedida em empresa de aviação. Aí, descobriu o universo colorido que hoje a irmã Claudia Pompeu quer revelar ao mundo. Em dezembro, uma tela da artista consagrada a Lisbela e o prisioneiro, um clássico de Osman Lins, participa do Salão Nacional de Belas Artes de Paris. Em 2012, o destino é Nova York. A artista Lêda Maria, curadora da Ward-Nasse Gallery, selecionou cinco telas da série Através da janela para uma coletiva de artistas mulheres. São os primeiros passos de uma tentativa de Claudia para divulgar a obra da irmã, morta em 2008.

Carla cresceu e trabalhou em Brasília, mas no início da década de 1990 decidiu mudar de vida. Largou emprego e carreira, viajou pelo mundo e trocou de cidade. Deixou para trás o concreto brasiliense e se instalou em Arraial d’Ajuda, na Bahia. O colorido das casas da cidade litorânea seduziu a geógrafa, que em poucos anos se tornou pintora. Carla pintou primeiro tabuleiros de gamão com a paisagem urbana local. Depois, passou para as telas. Céu, terra e mar se tornaram temas constantes. Carla gostava de cores e, principalmente, de retratar o cotidiano.

Igreja Arraial: imagens da cidade baiana retratadas por Carla Pompeu

Mercado

Muitas telas concentravam várias referências do dia a dia e do local no qual a artista vivia. São composições naïf, mas Carla nem sequer sabia ser uma pintora do gênero até ver seu trabalho circular no mercado de arte. A combinação do pictórico com o naïf é muito atrativo no exterior, por isso Lêda Maria decidiu realizar a exposição em Nova York. “Tenho grandes planos para o trabalho dela”, diz. “É uma obra que me passa seriedade e tem uma pesquisa de cores. As pessoas podem aprender a pintar, mas ser artista é nato e, para mim, Carla Pompeu não era pintora, era uma artista.” E também uma escritora. Carla produziu mais de 30 peças de teatro, entre elas muitas comédias.

Além de Arraial d’Ajuda, pintou Brasília e os arredores. Passou dois anos em São Jorge, na Chapada dos Veadeiros, para registrar as flores do cerrado, e fez uma série de pinturas dedicadas à capital, com paisagens como o Congresso Nacional. A cultura brasileira era outra fonte de inspiração e a irmã da artista ainda possui uma coleção intitulada MPB.

“Ela queria, na verdade, fazer uma instalação, em que as pessoas ouvissem as músicas retratadas”, conta Claudia, que agora se esforça para conseguir patrocínio para o transporte das telas para Paris e Nova York.

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Nelson Rodrigues vira enredo de Carnaval da Viradouro. Samba que homenageará o centenário do dramaturgo e jornalista foi escolhido no sábado; escola tenta voltar ao Grupo Especial. FOLHA SP 28.10

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No último sábado, dia 22, centenas de pessoas foram à quadra da Unidos da Viradouro, escola de samba de Niterói, para acompanhar a escolha da música que a representará na Sapucaí em 2012.

O evento se repete ano após ano -e seria trivial, não fosse o fato de a letra vencedora conter as palavras "engraçadinha", "sobrenatural", "bonitinha" e "ordinária".

O homenageado é o jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980).

Enredos de samba costumam prestar honras póstumas a baluartes da cultura brasileira. No próximo ano, a Imperatriz Leopoldinense lembrará o escritor Jorge Amado (1912-2001). A Mocidade, o pintor Candido Portinari (1903-1962).

O problema é que Nelson Rodrigues -dono de frases como "o pudor é a mais afrodisíaca das virtudes" e "o biquíni é uma nudez pior que a nudez"- não era exatamente um entusiasta do Carnaval.

Nos anos 60, escreveu: "O Carnaval tornou-se uma festa coletiva em que o casal não tem função nem destino. Os pares que se beijam para milhões de telespectadores são falsos casais."

Ainda assim, essa é a terceira vez que ele figura como tema de um samba-enredo.

Gustavo Clarão, presidente da Viradouro (campeã em 1997, rebaixada em 2009), explica a ideia: "Pensei em fazer um enredo sobre os cem anos do Fla-Flu."

Procurou então Antônio Jorge Pinheiro, diretor de uma produtora que capta recursos para filmes nacionais.

"Quando o Gustavo falou sobre o Fla-Flu, lembrei a ele que estávamos produzindo 'Bonitinha, mas Ordinária', filme baseado na peça do Nelson, que era tricolor fanático", contou Pinheiro.

Foi batata: a Viradouro cita o filme no enredo, a produtora capta os recursos.

A partir disso, o carnavalesco Alexandre Louzada pediu aos compositores da Viradouro "que se despissem de todo pudor" para escrever letras sobre futebol, teatro e, principalmente, "sobre cornos, donas de casa, vagabundas, suicidas enlouquecidas e personagens do universo feminino libidinoso".

Surgiram os versos "A Dama do Lotação mandou avisar que a Cabra Vadia na noite das noivas vai festejar", ou "Sou Nelson Rodrigues, (...) quisera o mundo me ver atual, um pierrô apaixonado pelo Carnaval".

Levado pela Folha à quadra da Viradouro, Ruy Castro, autor da biografia "O Anjo Pornográfico", comentou: "Você não pode exigir dessas letras um entendimento científico. Elas têm melodias anódinas e letras malucas, repletas de referências. Mas o que importa é a capacidade de causar empatia."

É o que se pretende checar em fevereiro, quando a Viradouro atravessar a Sapucaí.

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O servidor público. Correio Braziliense - 28/10/2011

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A organização do Estado, tema que mobilizou a trindade da filosofia grega — Sócrates, Platão e Aristóteles —, é, sem dúvida, um dos principais marcos civilizatórios da história humana. Ali, surge pela primeira vez a figura anônima do servidor público, o servidor da pólis, personagem que, no exercício da função, devotava-se ao interesse coletivo, personificando o Estado, o ente comum, que, sendo de todos, não era privativo de ninguém.

Desde então, o servidor público tornou-se personagem central na organização das cidades e na vida dos cidadãos. Não havia ainda um padrão comum na distribuição das funções nos diversos Estados que, a partir de então, se organizaram.

Somente com o advento da burocracia, a partir do século 18, é que se começou a racionalizar a distribuição de funções, em busca de maior eficácia. Max Weber, fundador da teoria sociológica, elaborou um conceito de burocracia baseado em elementos jurídicos do século 19, concebidos por teóricos do direito.

O termo foi empregado para indicar funções da administração pública, guiadas por normas, atribuições específicas, esferas de competência bem delimitadas e critérios de seleção de funcionários. Designava o aparato técnico-administrativo, formado por profissionais especializados, selecionados segundo critérios racionais, de modo a cumprir com maior eficácia as diversas tarefas dentro do sistema estatal.

Houve, no curso do tempo, em função de governos mais ou menos centralistas, distorções no uso da estrutura burocrática, chegando ao ponto de a burocracia deixar de ser um meio para constituir um fim em si mesmo. Mas essa é outra história.

Cumpre registrar que o advento da burocracia especializou a mão de obra do funcionalismo, favorecendo a que o Estado melhor cumprisse sua missão. Se, em diversas situações históricas, isso não se materializou, deve-se à ação política de governos, que, na ânsia por mais poder, distorceram seu papel social e moral.

No Brasil, a modernização do serviço público deu-se tardiamente, ao tempo do Estado Novo, de Getúlio Vargas, nos anos 40 do século passado. Antes, prevaleciam critérios subjetivos que, no Império, levaram a elite aristocrática a ocupar postos-chaves na administração e, na República, as oligarquias a nomear pessoas com pouco ou nenhum espírito público.

Mesmo assim, grandes figuras da cultura, no Império e na República — entre outros, Machado de Assis, Olavo Bilac, Lima Barreto, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, para citar só alguns —, fizeram do serviço público seu ganha-pão e contribuíram para elevar seu padrão de serviços.

A modernização varguista tornou o Estado atraente aos meios acadêmicos. Estabeleceu carreiras e propiciou remunerações mais dignas. Não obstante o perfil autoritário daquele regime, o Estado passou a funcionar com maior eficiência.

Na sequência, o Brasil se democratizaria e se industrializaria, com o surgimento de empresas estatais de grande porte, como Petrobras, Companhia Siderúrgica Nacional, Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco, Eletrobras e outras mais. O Estado passa a contar com uma elite funcional, que inaugura nova fase de desenvolvimento, que chegaria ao apogeu no governo JK. O país, é verdade, beneficiou-se de expressivos financiamentos e investimentos externos. Mas nada disso funcionaria sem a qualificação e a dedicação do servidor, peça chave para a implementação de qualquer política pública.

Considerando-se os avanços que o Brasil obteve nas últimas décadas, sob diferentes regimes e governos, e o papel que o Estado neles exerceu, constata-se que o saldo em favor do servidor público é amplamente favorável.

O Brasil é um país que hoje tem peso no cenário mundial. Possui quadros de alta qualidade técnica no Itamaraty, no sistema bancário (Banco do Brasil, Banco Central, Caixa Econômica Federal, Banco de Brasília e outros bancos estaduais), na Fazenda, no Planejamento, na Educação, em vários postos do Executivo, e ainda nas Forças Armadas, no Judiciário e no Legislativo.

Considere-se ainda que, ao longo de todo esse período, houve retrocessos no tratamento dado ao servidor. Sucessivos governos lhe impuseram a conta das crises, congelando salários, deixando de atualizar planos de cargos e carreiras.

Mais que isso, tornou-se uma espécie de patinho feio da vida pública nacional, estereotipado como preguiçoso, quando, ao contrário, em grande medida, dá mais do que recebe. O que muita gente desconhece é que a vocação para servir é uma realidade.

Conheço grandes quadros técnicos no serviço público brasileiro que poderiam ter valiosos benefícios e vantagens na iniciativa privada, mas que optaram por servir ao Estado. Realizam-se empreendendo políticas públicas cujos benefícios chegam a milhões, o que não é possível laborando em uma empresa do setor privado.

Na Embrapa e na Emater-DF, por exemplo, há cientistas de primeira linha, em condições de trabalhar em qualquer empresa de ponta do Primeiro Mundo, mas que preferem dedicar sua vida ao Estado. Em todos os segmentos e escalões do serviço público, do mais modesto aos mais elevados, há gente assim, a quem é preciso fazer justiça.

Por isso, para que esse patrimônio não se perca — e, ao contrário, se fortaleça — , é fundamental registrar a importância do servidor público e do seu amor em fazer do seu trabalho uma verdadeira profissão de fé a serviço de uma coletividade que dele depende.

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CARLOS HEITOR CONE. Fotos e fatos. Antigamente, nas velhas Redações, evitava-se a publicação de fotos impactantes FOLHA SP 28.10

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MUITOS, QUASE todos nós, ficamos chocados com as fotos do cadáver de Gaddafi divulgadas pela mídia mundial.

Antigamente, nas velhas Redações, evitava-se a publicação de fotos impactantes.

Em agosto de 1976, era editor de uma revista e tive em mãos a foto de JK após o acidente na estrada, evidente que nem pensei em publicá-la, nem mesmo o Instituto Carlos Éboli, onde a foto foi feita para constituir peça importante do inquérito, distribuiu aquela imagem para o grande o público.

Em outro caso, não idêntico, mas análogo, há tempos, como editor de uma revista ilustrada, recebi de um repórter que trabalhava na minha equipe a foto de uma moça estuprada que foi jogada ao mar no Chapéu dos Pescadores, trecho da avenida que liga o Leblon a São Conrado.

Para todos os efeitos, foi a imagem mais terrível que meus olhos já viram, pois os assassinos da jovem usaram uma garrafa de Coca-Cola para sodomizar a vítima ainda em vida.

Há uma corrente de profissionais da mídia que adota a tese da necessidade de informar tudo o que acontece, o leitor tem o sagrado direito de saber de tudo, nos mínimos detalhes. Mesmo os escabrosos, de péssimo gosto e que em nada contribuem para clarificação de um fato, por mais delituoso que seja.

Mas voltemos ao caso de Gaddafi. Um ditador criminoso que massacrou milhares de adversários e de gente que nem chegava a ser inimiga dele, povo inocente que ele não poupou para se manter no poder por mais de 40 anos.

Merecia o fim que teve, nem por isso a foto de seu cadáver mutilado serviria para confirmar a tese de que o crime, no final das contas, não compensa.

O corpo de Che Guevara também foi fotografado, mas a imagem que resultou de seu cadáver teve efeito contrário, muitos viram em seu semblante sereno, os olhos entreabertos sem revelar agonia ou desespero, a semelhança com o próprio Cristo. E por falar em Cristo, o próprio.

É sem dúvida o corpo mais exposto da história, em toda a sua crueza. Os cristãos fizeram dele o símbolo de uma religião que mudou o mundo. No início, bastava a cruz para lembrar o sacrifício do Calvário.

Mais tarde, sobretudo na Renascença, pintores e escultores colocaram o corpo quase nu coberto de chagas, porejando sangue da cabeça aos pés. Nas catedrais espanholas há crucifixos terríveis, impossível qualquer tipo de prece diante de um homem que muitos consideram um Deus.

Tivemos também a exposição do corpo de outro ditador, Benito Mussolini, que foi pendurado num gancho de açougue, de cabeça para baixo, numa praça de Milão.

E para citarmos um exemplo doméstico da vingança que não respeita a morte, temos o caso de Tiradentes. Não bastou enforcá-lo.

A rainha de Portugal mandou esquartejá-lo, pedaços de seu corpo foram expostos ao longo da estrada que ligava o Rio de Janeiro a Ouro Preto, então capital de Minas e sede da Inconfidência. De um lado, a vingança da Corte contra o rebelde; de outro, a lição para que ninguém mais tentasse se libertar da metrópole europeia.

Por acaso, citei exemplos contraditórios. Dois tiranos (Mussolini e Gaddafi) e dois heróis de causas populares (Che Guevara e Tiradentes).

O caso de Cristo é especial. Um dominicano francês, frei Corigan OP, publicou um artigo nos meados do século 19, propondo que a igreja abolisse o corpo de Jesus dos crucifixos, ficasse apenas com a cruz enxuta e poderosa, bastava como símbolo e mensagem. E para espantar os demônios e os vampiros.

Para compensar a falta de um elemento humano como logotipo de uma religião que prega o amor, ele propunha a imagem do Menino Jesus na manjedoura de Belém, os braços estendidos, não para pedir proteção, mas para proteger aqueles que desejava salvar.

Bem, encerro esta crônica fazendo uma autocrítica. Falei em Gaddafi, Che Guevara, Tiradentes, JK, Mussolini e Jesus Cristo.

De quebra, na jovem estuprada. Contrário a boa norma do jornalismo, falo muito e não concluo nada.

De bom grado, deixo a conclusão para os outros -se por acaso é possível concluir alguma coisa da história da humanidade.

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