Ensino público e leigo
Fonte: folha.uol.com.br 01/03 (EDITORIAL)
O fato de 98 mil escolas públicas e privadas -metade dos estabelecimentos do país- oferecerem ensino religioso, constatado em reportagem desta Folha, vem apenas confirmar o estado de confusão em que se encontra esse aspecto sensível da separação entre igreja e Estado no Brasil.
Colégios particulares podem, é evidente, oferecer até ensino confessional, com vistas a instilar nas crianças e nos jovens uma determinada fé. A escolha é dos pais.
Na rede oficial, contudo, a ambiguidade da legislação tem permitido que religiões se insinuem nas salas de aula, o que é descabido. Trata-se de violação flagrante ao artigo 19 da Constituição Federal, que veda à União, aos Estados e aos municípios manter com cultos religiosos ou igrejas "relações de dependência ou aliança".
A dificuldade reside em que outro dispositivo da Constituição (art. 210) admite o ensino religioso, de matrícula facultativa, como disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. O proselitismo é proibido pela Lei de Diretrizes e Bases da educação, mas praticado em mais de um estabelecimento.
Resulta da ausência de regulamentação mais clara que cada Estados se vê livre para adotar padrões díspares nas redes de ensino fundamental. Quatro deles (AC, BA, CE e RJ) enveredam pelo ensino confessional.
Outros 22 optam por um sistema interconfessional, em que as principais religiões definem um conjunto de valores a transmitir -em prejuízo das denominações minoritárias, presume-se, e do pluralismo religioso. Só o Estado de São Paulo fixou uma interpretação inequívoca e coerente com a noção de Estado leigo, em favor do ensino de história das religiões (o que não exclui, por certo, que uma ou outra escola venha a desrespeitar a diretriz).
Para dirimir a questão, o ideal seria uma emenda constitucional eliminando a exigência do ensino religioso. Diante da improbabilidade de que tal solução prospere, por força da influência de igrejas e cultos, resta aguardar uma manifestação terminante do Supremo Tribunal Federal em favor da laicidade do Estado, quando se pronunciar sobre ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Ministério Público Federal.
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CARLOS HEITOR CONY
Fonte: folha.uol.com.br 01/03
Moacyr Scliar
RIO DE JANEIRO - Ao longo de muitos anos no ofício, raríssimas vezes comentei os livros lançados no mercado editorial. Não faz muito, abri uma exceção para Moacyr Scliar, escrevi sobre seu último romance, "Eu vos abraço, milhões". Partindo de um verso de Schiller na "Ode à alegria", o mesmo poema que Beethoven aproveitou para compor sua "Nona Sinfonia", ele contou a história de uma geração atraída pelas conquistas sociais do comunismo romântico que se espalhou pelo mundo após a revolução soviética de 19l7.
A mesma geração que mais tarde se desencantou e se arrependeu de ter queimado o "Dom Casmurro" -um "romance burguês para burgueses". Uma geração que não chegou a ser perdida, como o próprio Scliar nunca se perdeu em sua honesta e brilhante trajetória humana e intelectual.
A repercussão de sua morte, no último domingo, que continuará por muito tempo ainda, lembrou seus méritos como escritor de primeiríssimo time, dono de uma obra que engrandece o nosso tempo cultural e literário. Para os que conviveram com ele, a perda foi funda e dolorosa.
No meu caso, perdi uma referência afetiva e posso dizer que clínica. Nos últimos anos, ele foi uma espécie de âncora que tomava conta de minha saúde. Ele queria saber tudo, ver os exames que eu fazia, examinar os remédios que me receitavam. Uma amizade mais do que fraterna, quase paternal da parte dele. Embora mais moço, tomava conta de mim -e será difícil, agora, frequentar a ABL sem ele.
Viajamos pelo mundo, Paris, Barcelona, Guadalajara, Buenos Aires, praticamente por todas as capitais brasileiras, era impressionante a maneira modesta, mas eficiente que sabia usar com os diversos auditórios que o buscavam. Valeu, Scliar, valeu muito, valeu tudo.
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Produtos em inglês perdem mercado
Fonte: folha.uol.com.br 01/03
Nomes estrangeiros prejudicam a propaganda boca a boca nas classes populares de itens de beleza e higiene
Natura e Jequiti preferem usar nomes nacionais; algumas marcas ainda ligam outro idioma a luxo
O crescimento do consumo de produtos de higiene e cuidado pessoal pelas classes mais baixas gera desafios para a indústria brasileira.
De acordo com Renato Meirelles, do Data Popular, as embalagens ainda contêm uma série de nomes em inglês -ou outros idiomas-, dificultando o entendimento do consumidor popular.
"Como 69% dos consumidores das classes C, D e E fazem propaganda boca a boca, se eles não sabem pronunciar o nome dos produtos, a força de marketing se perde", afirma Meirelles.
Muitas marcas ainda recorrem ao antigo clichê de que os nomes em outro idioma trazem sofisticação aos produtos, diz Ana Cristina Puttini, gerente de identidade verbal da consultoria de marcas Interbrand.
"Faz parte da estratégia de passar uma ideia sofisticada, mas acho que não é por aí. Não acredito que o consumidor deixaria de comprar um perfume, por exemplo, porque ele tem o nome em português", afirma.
Puttini diz também que muitas marcas comercializadas no país se espelham em empresas estrangeiras.
Para ela, porém, os termos em inglês ou outros idiomas podem deixar de ser problema no curto prazo.
"O público tem acesso a informações em computador -os nomes das redes sociais, por exemplo, são em outras línguas. Tem gente que não sabe pronunciar hoje, mas rapidamente saberá."
NA CONTRAMÃO
A especialista em marcas cita a brasileira Natura como referência em termos de nomes. A fabricante de cosméticos vai na contramão do mercado e baseia sua estratégia em exaltar o Brasil.
A Jequiti, que tem produtos baratos que atraem a classe C, também tem nomes em português na maioria de seus produtos, como o protetor solar Fotosim e a linha de maquiagem Elas.
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VLADIMIR SAFATLE
Fonte: folha.uol.com.br 01/03
O fim da tolerância?
Hoje, faz 261 dias que a Bélgica está sem governo. A incapacidade de gerir os conflitos entre flamengos e valões chegou a um ponto dificilmente imaginável em qualquer outro país. Esse seria, no entanto, um fato sem maior interesse para o resto do mundo se não fosse, na verdade, uma espécie de sintoma ampliado da regressão política que assola toda a Europa.
Sintoma que diz respeito à destruição social gerada atualmente pela noção de "identidade nacional".
No fundo, a crise belga é o resultado da crença de que duas identidades nacionais não podem ocupar o mesmo espaço. Uma colonizará a outra com sua língua, seus costumes, suas crenças.
Essa ideia está por trás, por exemplo, do crescimento espetacular do partido xenófobo francês Front National com seu discurso, digno da época das Cruzadas, de que a identidade francesa será destruída pela invasão árabe.
Há alguns dias, saiu uma pesquisa mostrando que sua candidata a presidente, Marine Le Pen, tinha 20% das intenções de voto para a eleição presidencial do ano que vem.
Tal relação paranoica à identidade nacional é ainda o motor do crescimento dos partidos de extrema-direita na Holanda, na Dinamarca, na Suíça, na Hungria, na Suécia, na Itália, entre tantos outros.
Talvez seria o caso de dizer que não conseguiremos nos livrar da guinada extremista enquanto não tivermos coragem de dizer que a era das identidades nacionais acabou. Não há como conservar a noção de identidade nacional sem recairmos na tendência de associar Estado, nação e povo.
Pois uma das maiores conquistas da modernidade foi compreender o Estado moderno como uma instituição que, por só reconhecer relações igualitárias e universalistas, não se submete às tendências comunitaristas que aparece toda vez que alguém levanta a voz para falar da identidade do povo francês, flamengo, brasileiro, judeu, árabe.
Podemos viver muito bem em países que aceitam a mutação constante de suas culturas e línguas e o caráter múltiplo de seus costumes.
Nos últimos dias, David Cameron, Angela Merkel e Nicolas Sarkozy, todos governantes em baixa de popularidade, procuraram fazer seus cidadãos esquecerem da crise econômica que assola seus países colocando na pauta do debate o "fim do multiculturalismo".
Contudo poderíamos dizer que o multiculturalismo fracassou por não ser suficientemente multicultural. Ele nunca conseguiu realmente integrar imigrantes como sujeitos políticos, partilhar poder e compreender que a verdadeira multiplicidade não é a soma de identidades isoladas onde cada um "tolera" o outro.
A verdadeira multiplicidade é o movimento de dissolução das identidades em direção à construção de universalidades realmente inclusivas.
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