domingo, 6 de março de 2011

Pesquisador Renato Vivacqua fala sobre as marchinhas de carnaval

Fonte: correioweb.com.br 06/03

Apaixonado pela música popular, o pesquisador afirma que o ciclo de ouro das marchinhas foi destruído pela "era do jabá"

O carioca Renato Vivacqua, 75 anos, fisioterapeuta aposentado, radicado em Brasília desde a década de 1960, considera-se um indivíduo totalmente canhestro para a música. Não canta bem, não sabe assobiar, não tem suingue nem samba no pé. No entanto, Vivacqua é louco por música e a maneira que encontrou para cultivar a sua paixão pela musa popular foi tornar-se historiador. Ao terminar a leitura do último livro de Vivacqua, o delicioso Crônica carnavalesca da história, que narra uma história não oficial do Brasil, o pesquisador Ricardo Cravo Albin proferiu uma expressão que só pode ser publicada nos jornais sob a forma de cobras, lagartos e asteriscos e comentou: "Este é o livro que eu deveria ter escrito".

E Sérgio Cabral, outro colega da área de pesquisa, escreve na apresentação do livro: "Sou velho admirador da obra de Renato Vivacqua, cujas pesquisas ajudam a entender melhor a nossa música. (…) O novo trabalho de Renato Vivacqua merece, sem dúvida, os maiores elogios. Mas merece, sobretudo, a nossa gratidão". Vivacqua situa a época de ouro das marchinhas de carnaval o período que vai do fim do século 19 até o fatídico ano de 1970, com Bandeira branca, de Max Nunes e Laércio Alves. Ele atribui a derrocada do gênero tão rico, espirituoso e inventivo a um personagem muito conhecido até nos dias de hoje: o famoso "jabá". Com isso, os compositores mais talentosos se sentiram insultados e se afastaram da cena dominada por picaretas: "Isso funcionou como uma seleção às avessas, que liquidou com a qualidade", comenta. "Antes, as músicas se perenizavam. Depois, as pessoas passaram a não se lembrar mais das canções após algumas semanas. Os cantores da noite sabem a música que será eterna."

Vivacqua considera o carnaval e o futebol duas festas populares que provocam uma comoção quase inexplicável. São situações em que o pobre e o rico se colocam em um mesmo nível, menos no carnaval da Bahia, onde só brinca quem tem dinheiro para comprar um abadá. "Na Bahia, só as pessoas que têm dinheiro ficam feito abestadas atrás do trio elétrico", diz. "É o fim do sentido democrático do carnaval como festa popular. Ainda bem que o carnaval está sendo revitalizado no Rio de Janeiro, com os blocos cantando sambas e marchinhas eternas pelas ruas. O grande compositor pernambucano Capiba quase morreu de infarto quando viu a avenida principal do Recife ser tomada por um trio elétrico de axé music, contratado em Salvador."

Com o livro Crônica carnavalesca da história, Vivacqua pretende ter desmistificado o preconceito de que os compositores de marchinhas eram ignorantes, que pegavam tudo de orelhada. Ao pesquisar, ele mesmo ficou surpreso ao constatar que liam os almanaques do Correio da Manhã, eram atualizados e destilavam a verve sobre fatos da política ( "Ai Filomena, se eu fosse como tu/Tirava a urucubaca da cabeça do Dudu", J. Bulhões comentando a fama de azarento do Marechal Hermes da Fonseca), a ciência ("Todos estão errados/A lua é dos namorados", de Klecius Caldas), a musa francesa Brigitte Bardot ("Que bom que eu vou ser papai/E papai vai ser vovô/Se for homem vai ter o meu nome/Se for mulher, vai ser Brigitte Bardot", de Haroldo Lobo e Milton Oliveira). Questionado se não é saudosista, Vivacqua replica: "Sou, no bom sentido, de chamar a atenção para a qualidade. Antes, até o fato de os discos serem gravados em matrizes de platina, muito caras, funcionava como um filtro de qualidade. Nós temos excelentes músicos em Brasília, mas sem espaço no mercado."

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Escola laica, liberdade e igualdade

ROSELI FISCHMANN

Fonte: folha.uol.com.br 05/03



O lugar do ensino religioso não é na escola pública, mas na família e nas comunidades religiosas, para quem assim o quiser.
Por ser ligado ao direito à liberdade de consciência, de crença e de culto, o ensino religioso depende de ser buscado, não de ser oferecido sob a égide do Estado, por ser matéria íntima, de escolha, segundo a consciência de cada pessoa.
Daí o caráter facultativo para o aluno que a Constituição estabelece para o ensino religioso nas escolas públicas, buscando preservar tanto o direito à liberdade de crença quanto a laicidade inerente à escola pública. Razões de ordem ética, jurídica, histórica e pedagógica amparam essa posição.
Crianças pequenas, de seis anos, iniciando o ensino fundamental, têm suas consciências tenras plasmadas pela escola. Quais as repercussões de conteúdos religiosos conflitantes ao que recebe no lar, em sua compreensão do mundo?
Aprender a não fazer ao outro o que não quer que lhe façam indica formação para autonomia, valorizando a alteridade -cerne da educação. Na escola, o respeito aos outros não pode ser amparado em divindade, mesmo para quem creia.
Porque amparar-se no inefável para garantir a não violência é menosprezar a capacidade humana de respeito mútuo e a própria fé, que não depende de constrangimento e submissão. A escola pública deve explicitar o que é humano (como a ciência) como mutável, porque falível e passível de debate e discussão, sempre sujeito a aperfeiçoamento. Como a Constituição.
A possibilidade de uma PEC que retire o parágrafo primeiro do artigo 210 da Constituição é uma urgência histórica, em prol das próprias religiões. Porque, ao tentar regulamentar o não regulamentável, qual seja, o acordo entre religiões sobre o que ensinar, como conteúdo único, a Lei de Diretrizes e Bases da educação criou mais dificuldades que soluções para o que já era problemático na Constituição.
Mesmo internamente a Constituição parece inconsistente, já que o seu artigo 19 estabelece que é vedado ao Estado "estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança" e "criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si".
Promover um ensino religioso que seja ligado a denominação religiosa específica no âmbito da escola pública (como propôs o acordo da Santa Sé com o Brasil) é promover distinção entre brasileiros.
Mesmo que fosse possível cumprir a promessa de que "todas as religiões serão oferecidas", seriam desrespeitados em seus direitos os agnósticos e ateus.
Supor que seja possível tratar as religiões de forma "neutra", na escola pública, é menosprezar consequências de perseguições e raízes de guerras religiosas que a humanidade travou. Propor ensino religioso como história das religiões pode ser adequado só para jovens e não crianças, e não terá sentido se o professor conduzir o ensino privilegiando sua crença ou descrença.
A escola pública precisa ser entendida como lugar de desconstrução das discriminações que perpassam nossa cultura, de forma silenciosa ou denegada, que desrespeitam religiões e, sobretudo, seus adeptos, todos igualmente brasileiros e brasileiras.
Argumentar que a maioria "democraticamente" tem o direito de impor no espaço público sua crença e que na escola "só fará bem ter (uma certa) religião" reduz a democracia à tirania, pois nega o direito de as minorias serem integralmente respeitadas, a ponto de (como ensina Bobbio e dita a regra do jogo democrático) um dia se tornarem maioria.


ROSELI FISCHMANN é coordenadora do programa de pós-graduação em educação da Universidade Metodista de São Paulo e pesquisadora do CNPq para o tema do ensino religioso. Foi membro da Comissão Especial de Ensino Religioso do Governo do Estado de São Paulo (1995-1996).

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