nEGRA BRASÍLIA
Unicef na luta contra o racismo
Fonte: correioweb.com.br 26/11
Na 9ª parte da série, pai e filha, cabo-verdianos, contam o espanto de descobrir que o Brasil é racista
É bem cedo que nascem o racista e a vítima do racismo. É na infância que a criança aprende com os adultos ou com outras crianças a discriminar o ser humano pela cor da pele. Para tentar ajudar a frear o surgimento de novas gerações de brasileiros hostis a brasileiros da raça negra, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) lança, na próxima segunda-feira, em Brasília, a Campanha Nacional sobre o Impacto do Racismo na Infância e na Adolescência. “As estatísticas apontam disparidades raciais que atingem crianças negras e indígenas que estão um pouco à margem do acesso às políticas públicas”, diz Helena Oliveira, responsável pelo programa de proteção à infância do Unicef. “A discriminação racial tem gerado graves efeitos na vida dessas crianças.” Especialmente, informa Helena, em meninos e meninas que vivem na periferia dos grandes centros urbanos, Brasília incluída, na Região Amazônica e no semiárido nordestino.
Os números são retumbantes: são 31 milhões de brasileirinhos negros e 150 mil de brasileirinhos indígenas. Desse total, 26 milhões são pobres e, entre esses, 17 milhões são negros. Há mais números impactantes: das 530 mil crianças de 7 a 14 anos fora da escola, 330 são negras. O Índice de Homicídio na Adolescência, estudo do Unicef, revela que há 2,6 mais chances de um jovem negro ser assassinado do que um branco. Dados que sustentaram a necessidade dessa campanha que pretende “mobilizar toda a sociedade para alertá-la sobre o impacto do racismo na infância”, afirma Helena Oliveira. O Unicef quer sensibilizar formadores de opinião, formuladores de políticas públicas, gestores privados, famílias, comunidades, escolas, universidades. “A responsabilidade dos adultos é muito grande, não podemos permitir que o racismo continue a se reproduzir no país”, alerta Helena. A campanha vai ser reproduzida em várias mídias, em folderes, camisetas e vai sugerir “10 maneiras de contribuir para uma infância sem racismo” (veja quadro nesta página).
O embaixador de Cabo Verde, Daniel Pereira, conta abaixo o espanto que sentiu quando soube da discriminação que sua filha, Débora, sofre na escola. Duplo preconceito, por ser negra e por ser portuguesa. A menina também revela o que passa e o que sente no dia a dia num colégio de elite de Brasília.
“O mundo de hoje é mestiço”
Daniel Pereira
Embaixador de Cabo Verde. Tem 59 anos, é historiador e ensaísta, escreveu diversos livros sobre a história de seu país. Casado, três filhas. Mora no Lago Sul
Eu, como cabo-verdiano, não sei lidar com o racismo, porque em Cabo Verde nós ultrapassamos isso há muito tempo. Quando sou confrontado, no Brasil, com essa situação, me sinto um pouco constrangido. Nunca havia me deparado com essa situação aqui, mas minha filha mais nova já viveu essa realidade na escola. Ela tem 15 anos. Nós já vivemos na Holanda, em Angola, em Cabo Verde, em Portugal e ela nunca se deparou com o problema do racismo. Foi preciso chegar ao Brasil, paradoxalmente um país mestiço, para que isso acontecesse. Ela estuda numa escola de elite e no dia a dia enfrenta situações as mais bizarras: anedotas, brincadeiras de mau gosto, coisas sem pé nem cabeça. Para ela, é constrangedor.
Quando ela me contou o que estava acontecendo, sugeri: ‘Diz aos teus colegas que nem os negros nem os portugueses deixaram descendentes aqui. Eles eram povos estéreis.’ Depois disso, as coisas abrandaram um pouco, mas volta e meia lá vem a questão novamente. Como a maior parte dos brasileiros é descendente de portugueses e africanos, todos têm uma família de portugueses ou uma família de africanos mesmo que não exista uma marca exterior dessa ascendência. É um pouco fora de propósito o racismo no Brasil. E o preconceito é também contra o português. Minha filha é filha de portuguesa, e é cabo-verdiana. Portanto, é africana também. Então ela ouve anedotas sobre portugueses e africanos. As pessoas não percebem que agindo assim estão satirizando a própria cara, estão matando a própria autoestima. Há qualquer coisa que não está funcionando bem. Muito a refletir, a ultrapassar.
Devo dizer que me sinto em casa no Brasil. É um paradoxo. Sou estrangeiro, estou fora do meu país e ao mesmo tempo me sinto em casa. A cultura que me rodeia é a minha cultura, a língua que eu falo é a minha língua, com mais ou menos sotaque.
Existe uma empatia de fundo histórico entre Cabo Verde e o Brasil. Muitos não sabem que aquilo que aconteceu no Brasil a partir de 1500 foi antecipado em Cabo Verde 40 anos. Cabo Verde foi descoberto em 1460. As experiências que foram feitas lá foram transplantadas para o Brasil. Do ponto de vista político, com as capitanias hereditárias, por exemplo. A cana de açúcar foi introduzida no Brasil a partir de Cabo Verde, e não veio só a cana, vieram os técnicos e veio a tecnologia. Muitos escravos que vieram de Cabo Verde para o Brasil vieram para trabalhar no canavial. A mestiçagem foi iniciada em Cabo Verde e foi transplantada para aqui. O coco, as vacas, os burros, o inhame foram introduzidos no Brasil a partir de Cabo Verde. É um conjunto de elementos que fizeram a base da matriz brasileira, que veio de Cabo Verde, da Guiné, do Senegal.
A relação histórica entre o Brasil e Cabo Verde é muito antiga. Costumo dizer que antes de ser já era, porque quando Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil passou primeiro por Cabo Verde. Porque Cabo Verde era um ponto de passagem obrigatória da navegação. Todos os grandes navegadores do mundo passaram por Cabo Verde. Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Cristovam Colombo, tamanha a importância que Cabo Verde teve no contexto do Atlântico, pelo menos até o século 17. Enquanto a navegação foi feita com a necessidade de escalas, Cabo Verde pertencia a todos os mapas. Quando a navegação pôde ser feita de costa a costa, Cabo Verde desapareceu do mapa.
A minha função aqui no Brasil, desde que cheguei, foi fundamentalmente dizer aos brasileiros: A África que vocês imaginam não existe. Não são só macacos, não são só leões, não é só safári. Estamos a falar de uma África em desenvolvimento. Na África existem quatro Nobel de Literatura. Não vejam a África como a selva. Esta África está em vias de desaparecer.
O mundo de hoje é mestiço e tende cada vez mais para essa mistura. É uma mistura tão grande que não vale a pena as pessoas ficarem se preocupando com o fato de ser branco ou negro. Existe a raça humana.
Sabe por que os cabo-verdianos não têm problema com a cor da pele? Um amigo que já morreu dizia que o cabo-verdiano era rico sem dinheiro e branco sem cor. Porque nós estávamos numa sociedade escravocrata formada por gente que durante muito tempo teve algum dinheiro. Depois que Cabo Verde empobreceu, o cabo-verdiano ficou com mania de rico. Então, rico sem dinheiro e branco sem cor por quê? Porque ele não aceita que você o defina pela cor da pele. Por uma questão de dignidade humana. As pessoas têm um nome e devem ser julgadas pelo seu nome, pela sua maneira de ser e não pelo aspecto externo de sua coloração cutânea.
Em Cabo Verde, como a mistura é grande, as pessoas são muito pobres e a pobreza horizontaliza — enquanto a riqueza verticaliza — as pessoas estão muito próximas umas das outras. É uma mistura tão grande que na mesma família você pode ter um irmão branco e pode ter outro irmão negro. Não tem como ser racista. Como é que você vai ser racista com seu próprio irmão?
Para ler
O significado do protesto negro, Florestan Fernandes, Cortez. O sociólogo desmistifica a abolição. Considera uma “artimanha, pela qual os escravos sofreram a última espoliação” e desnuda a hipocrisia no país que se considerava uma democracia racial.
PALAVRA DE FILHA
Débora Pereira
Nasci na Holanda, mas sou cabo-verdiana e portuguesa. Estudo em escola de gente com bom nível econômico. No Brasil, tem um problema. Tem racismo, pelo menos na minha escola tem bastante. Os alunos falam que os negros são burros. A minha escola é muito boa, aprendo bastante e sei que ela vai me ajudar no meu futuro com certeza. Só que tem esse problema, e eu não sei se elas falam por mal, mas parece que sim. Me sinto ofendida porque meu pai não é branco. É estranho ter racismo no Brasil. Porque aqui é tudo misturado. Ser racista é xingar a si mesmo. Parece que o brasileiro não aceita que tem descendência negra, simplesmente não aceita. Já falei que não gosto que falem de negros, mas eles falam: ‘Ah, eu estou brincando’, mas sei que não estão.Eu sou umas das alunas de pele mais escura na minha sala, mas lá não tem ninguém muito branco, a não ser uma americana. O resto é tudo brasileiro.
E tem também o preconceito contra o português. O povo brasileiro tem algum problema com os portugueses. Eles acham que português é burro.
E ele não falam só de mim, é do negro em geral. E eu sempre digo: ‘Para de falar isso’.Toda a família do meu pai tem ascendência africana. Antes eu ficava bem aborrecida, de berrar com a pessoa, mas agora só falo ‘não diz isso que eu não gosto’.
Adoro os brasileiros. Os portugueses são bem fechados, são mal-humorados e os brasileiros parecem ser sempre joviais, estão sempre sorrindo. Nos Estados Unidos, sou considerada negra. Então sou negra, tanto faz. Não tem problema. Mas eu não gostaria de definir a minha cor, porque minha mãe é branca e meu pai é negro. Então, eu sou o quê? A identidade não precisa de definição de cor. Já foi provado cientificamente que não existe raça. Tanto faz a cor da pele para mim, se a pessoa for azul, tudo bem. Não tenho cor.
Eu adoro as pessoas da minha escola. Tirando esse pequeno problema, o resto tudo bem.
DEZ MODOS DE AGIR
1. Eduque a criança para o respeito à diferença
2. Indigne-se com palavras e piadas racistas
3. Não classifique ninguém pela cor da pele
4. Apoie seu filho, se ele for discriminado
5. Não deixe de denunciar um ato racista
6. Estimule a convivência entre diferentes
7. Valorize a diversidade étnico-racial
8. Estimule sua empresa à diversidade
9. Cobre respeito dos serviços públicos
10. Veja como a escola trata a diversidade
* Adaptado do texto original do Unicef
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CARLOS HEITOR CONY
A trajetória de um sonho
Faltava no mundo e em mim aquela luzinha azul que me desse a lucidez de acreditar em alguma coisa
A CARTA apareceu no meio de outras -das outras que evitam o e-mail, preferindo o meio mais tradicional da comunicação humana. O envelope tinha o timbre: "O Seminário". Vinha do Sul, do mesmo seminário que editava a revista que era o órgão oficial dos seminaristas brasileiros. Hoje, acredito que em muitos outros seminários surgiram revistas parecidas, mas lá estavam o nome e o timbre pioneiros: "O Seminário".
O diretor da revista pedia-me uma colaboração para o número do próximo Natal. Lera um dos meus romances, "Informação ao Crucificado", e dizia que os seminários de hoje já não são como o que eu descrevera em meu livro. Fato que, por si, já deu para me causar apreensão: se o seminário do meu tempo foi tão querido, deixando-me uma melancolia que até hoje me sangra e maltrata, como seriam os seminários de hoje?
Mas a emoção maior não ficou nessa hipótese -de serem os seminários cada vez mais diferentes. A emoção veio no pedido em si: uma crônica para ser lida -como dizia a carta- pelos meus ex-colegas do Brasil.
O seminarista que me encomendou a crônica não sabe de uma coisa: foi nessa mesma revista que, há muitos anos, saiu publicada pela primeira vez uma página minha. Morrera o cardeal dom Sebastião Leme, eu era o cronista do seminário (escrevia num enorme livro os eventos da comunidade) e o padre-ministro, dom Castro Pinto, encarregou-me de escrever um artigo sobre o assunto, a pedido da revista. Mandei uma coisa abominável, cheia de imprecações e frases latinas ("Quomodo cecidisti potens in proelio, tu qui salvum faciebas populum Domini?") e aguardei o resultado.
Foi nela que vi pela primeira vez, o meu nome impresso. Foi ali, naquelas páginas humildes e quase clandestinas, que comecei a tomar gosto pela literatura, pelo jornal, por tudo aquilo que mais tarde se transformaria na minha vocação, no meu ofício, na minha pedreira particular.
Muita coisa aconteceu então. Perdi a fé, saí do seminário, andei aos trancos pela vida, comi o pão que o diabo, os homens e as mulheres amassaram para mim, mas persisti, obstinado e fiel, batendo em minhas teclas, guardando meus espantos, semeando as minhas cóleras. Veio depois o primeiro livro, o segundo, o quinto, o décimo, perdi a mão, publiquei mais do que desejava e precisava.
Com mais de 60 anos no ofício e nas costas, se fosse me medir pelas balizas temporais da profissão, bem poderia acreditar que consegui dar o meu recado, dentro das minhas curtas possibilidades e largas circunstâncias. Se não fiz melhor e mais aproveitável não foi por falta de vontade.
Mas o pedido que me veio do Sul, de repente, abriu em meus olhos um clarão quase extinto, cuja chama foi iluminar os ângulos amortecidos pelo pecado e pelo esquecimento de meus próprios problemas.
E vi novamente o rapaz magro, que a batina tornava mais magro ainda, o pátio colonial do nosso seminário, aquele vulto negro andando de lá para cá, o terço entre os dedos, pedindo desesperadamente que não fracassasse, que a vocação vencesse, que a Graça triunfasse.
Nada deu certo -é certo- mas já estou muito corrompido para me atirar a culpa ou para me redimir com o arrependimento. Um dia, ou melhor, uma noite, acordei de repente e tive a minha estrada de Damasco às avessas. Estranhei estar naquele enorme dormitório, cercado por tantos colegas que dormiam em paz, a luzinha azul no centro do teto, aumentando a escuridão da noite e marcando o caminho entre as muitas camas que rodeavam a minha.
Descobri que estava sem fé, faltava no mundo e em mim mesmo aquela luzinha azul que me desse a lucidez de acreditar em alguma coisa, seria bom se houvesse sempre uma luzinha azul assinalando os caminhos da vida e vencendo a escuridão de tudo.
Vou ao que interessa. Farei a crônica pedida pela revista que me iniciou no duro ofício das letras. Sobre o que é mesmo? Consulto a carta: é sobre o Natal que se aproxima. O assunto está mais do que batido, há até mesmo aquele famoso soneto de Machado: "Mudaria o Natal ou mudei eu?". No meu caso -olhando tudo sem mágoas, acredito que mudamos os dois: o Natal e eu.
Estreia
Ilusões para sobreviver
Fonte: opopular.com.br 26/11
Woody Allen volta às telas com a comédia sarcástica Você Vai Conhecer o Homem de Seus Sonhos
Fazer comédia romântica nada romântica parece ser o fetiche mais marcante da fase atual do diretor Woody Allen, que está de volta às telas com Você Vai Conhecer o Homem de Seus Sonhos. O filme que estreou no Festival de Cannes, em maio, começa com uma frase de Shakespeare, em Macbeth, sobre a falta de significado da vida, tema que o cineasta traz à tela com tons diferentes em quase todos os seus filmes: "A vida é um conto, narrado por um tolo, cheia de som e fúria, e que não significa nada".
A referência shakespeareana dá a senha do que o espectador terá nos próximos 98 minutos: mais um filme típico de Woody Allen. O que se tratando de um dos diretores mais ativos e respeitados das últimas décadas não é pouca coisa. Mais uma vez, Allen focou sua lente nos encontros e desencontros da classe-média urbana, que patina em falso em sonhos frustrados. O filme dá sequência à fase atual do cineasta iniciada em 2005 com Match Point, primeiro de uma série de filmes gravados na Europa, longe do habitat natural do diretor novaiorquino.
Em Você Vai Conhecer o Homem de Seus Sonhos, Allen desembarca em Londres, onde tem sido mais fácil conseguir dinheiro para seus projetos. No elenco, grandes nomes como Anthony Hopkins, Naomi Watts e Antonio Banderas, passando por Josh Brolin, Gemma Jones, e Freida Pinto, revelada em Quem Quer Ser Um Milionário. No longa, exibido no Festival do Rio, dois casais banais desfazem seus casamentos na busca de um sopro de novidade.
O diretor se fixa num casal. Ela (Naomi Watts) trabalha em galeria de arte, ele (Josh Brolin) fez um livro inicial de sucesso, mas depois teve tudo rejeitado, agora luta para conseguir terminar outro que também é desprezado. A sogra dele (Gemma Jones) fica arrasada quando o marido (Anthony Hopkins) a larga em busca da juventude e se refugia com uma vidente (Pauline Collins).
Woody Allen sempre teve o cuidado em tratar a natureza humana com seus vícios e virtudes de maneira peculiar. No novo filme, não é diferente. O cinismo do narrador é um dos destaques e o motivo das não tão constantes risadas. Ele não perdoa nada. A sátira é especialmente ferina com o espiritismo, a reencarnação e a astrologia, reunidos numa sopa esotérica entre o charlatanismo e o consolo. E é dura com os personagens intelectualizados.
O filme mostra, com certa desesperança, como o ser humano precisa de ilusões ou fantasias para seguir adiante com sua existência. Assim como em Match Point, Londres é tratada com carinho pelo cineasta amparado pela fotografia de Vilmos Zsigmond, que colaborou com Allen em O Sonho de Cassandra e Melinda e Melinda, além de ter assinado a direção de fotografia de Contatos Imediatos de 3º Grau.
Prestes a completar 75 anos no dia 1º de dezembro, Allen tem uma legião de fãs. Para eles, um Woody Allen medíocre ainda vale mais do que os filmes em cartaz no circuito juntos. O diretor conseguiu como ninguém levar para as telas a figura do homem contemporâneo que vive dividido entre o terror, o medo da morte, a hipocondria, a neurose e o excesso de informação. O cineasta conta quase sempre a mesma história - e ainda assim surpreende.
Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos(You Will Meet a Tall Dark Stranger) - EUA, Espanha/2009
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No Rio, as contradições sociais são infinitas
Fonte: folha.uol.com.br 26/11
Cabe à polícia lidar com elas; o jogo do bicho, mesmo proibido, é uma tradição centenária
BELTRAME SE REFERE À OCUPAÇÃO DO ALEMÃO COMO A TOMADA DA NORMANDIA. O RIO TEVE O SEU DIA D
O embaixador do México quis aprender a tocar cavaquinho antes de deixar o Brasil, mas acabou desistindo quando descobriu que não há partitura fiel ao dedilhado dos virtuosos. Cavaquinho se aprende no convívio das rodas de choro.
Na despedida, o embaixador confessou que o Rio de Janeiro, para ele, era como o cavaquinho, maravilhosamente belo na prática e caótico na teoria.
O Rio é a capital universal da informalidade.
Pois um gaúcho da pacata e civilizada Santa Maria, José Mariano Beltrame, aceitou o desafio de chefiar a secretaria de Segurança da ex-Guanabara há dois anos.
Não houve um amigo que não o parabenizasse e, a seguir, comentasse a dor de cabeça que, bar-ba-ri-da-de!, o conterrâneo formado em direito, administração e inteligência estratégica estava prestes a enfrentar.
Cabe à polícia lidar com as contradições da sociedade. No Rio, elas são infinitas.
O jogo do bicho, por exemplo, é uma tradição centenária. Não há ninguém que já não tenha feito sua fezinha. Os anotadores de aposta estão em cada esquina, inclusive na da Secretaria de Segurança, no centro, apesar de ser uma atividade ilegal.
Ninguém acha justo prender o tiozinho da banca, mas, quando se amplia o olhar e se chega aos grandes bicheiros, o jogo já não parece tão inofensivo assim.
Os empresários do jogo do bicho se organizam em feudos fortemente armados que movimentam somas polpudas sem pagar um centavo de imposto, ajudam a corromper a polícia e incluíram os caça-níqueis, ligados às milícias, no cardápio de seus interesses.
Por outro lado, as escolas de samba, patrimônio cultural e turístico do carioca, são financiadas por eles, o que os torna figuras adoradas e folclóricas.
Como deve agir a polícia diante do vespeiro amoroso de pecadores leves e grandes contraventores?
Por que a Mega Sena pode e o bicho não? Se a sociedade deseja sonhar com o coelho e apostar na cobra, por que o bicho é proibido? Talvez porque molhar a mão de um policial saia mais barato do que encarar o fisco. A informalidade gera violência, desordem e dividendos.
Os 20 anos de populismo e assistencialismo eleitoreiro no Rio criaram centenas de zonas abandonadas pelo Estados e ocupadas por poderes paralelos. São décadas ao largo da lei.
Quando José Mariano assumiu o cargo, focou seu plano de ação na questão territorial, a reintegração de posse de áreas esquecidas pelo poder público, tomadas pelas três principais facções criminosas ligadas ao tráfico.
Sua estratégia é das mais antigas: após dominada uma área, duplas de policiais, os Cosme e Damião, ocupam o local em caráter permanente. Conquista-se rua a rua, bairro a bairro, favela a favela.
Na Cidade de Deus, Beltrame se chocou com o lixo e os porcos convivendo com as crianças. Nos postes de luz apagados, fotos e fotos de deputados e vereadores com seus números no TRE.
O secretário é um caso raro de político mais interessado nos problemas concretos da sociedade do que nos lucros eleitorais de suas ações.
Ele se refere à ocupação do Complexo do Alemão como a tomada da Normandia e tem vontade de anunciar o dia e a hora de sua chegada para que os bandidos recuem sem tiros. Ouvindo-o falar, parece até possível.
As recentes ações terroristas precipitaram o avanço sobre a região do entorno da Penha. Centenas de homens de short e sem camisa carregando escopetas foram flagrados fugindo para uma favela aliada. Pode-se batizar o 25 de novembro de 2010 como o dia D do Rio de Janeiro.
A União reserva fatias de sua arrecadação para investir diretamente em educação e saúde, mas a segurança pública não recebe nada do governo federal. Cada Estado depende dos próprios cofres para remunerar seus contingentes. Beltrame defende, entre outras prioridades, que uma fatia do Orçamento da União seja garantida para a segurança dos Estados.
Apesar do sucesso das UPPs, Beltrame sabe que a polícia não resolve as causas da tragédia social nem tem poder de preencher o vazio deixado pelo tráfico.
Cabe, agora, aos outros setores do Estado preencher a lacuna sócio-econômica deixada pelo desmantelamento do poder paralelo.
É preciso entrar com educação, saúde, transporte, cultura, lazer e esporte, é preciso criar perspectiva de futuro para uma população descriminada e mal preparada.
Se as chances de emprego para um rapaz branco, de classe média e que teve acesso à escola já são duvidosas, imagine as de um menino negro e semi-alfabetizado em um sistema de aprovação automática.
Estudos populacionais garantem que cidades compostas de jovens rapazes desocupados enfrentam um nível de testosterona ocioso que facilmente se transforma em agressão, briga, roubo e baderna. Junte-se a isso a corrupção política, a pobreza e a miséria, está pronto o coquetel molotov que atormenta a Guanabara.
A polícia não vai dar jeito na doença histórica da injustiça e da desigualdade, mas talvez possa fazer alguma diferença com relação à impunidade.
O secretário caminha na fina linha que separa a eficiência do abuso. A lei, muitas vezes, age contra; mas sem a lei, ele reconhece, seria muito pior.
Os advogados são os pombos-correios das vontades dos traficantes nas prisões de segurança máxima. O direito à privacidade não permite a gravação de conversas entre um advogado e seu cliente, mas esse direito propicia o comando de ações terroristas mesmo com o mandante atrás das grades.
No dia em que me encontrei com Beltrame, o Rio estava sofrendo uma onda de arrastões, primeiro grande revide dos chefes do tráfico contra as UPPs. A ordem partiu dos presídios.
Além dessa guerra anunciada, Beltrame lida com crimes de colarinho branco e sonegação de impostos que esbarram, muitas vezes, em deputados de índole duvidosa no Congresso.
E o cobertor curto do gaúcho ainda encara a morosidade, a indulgência da Justiça e a falta de um código de ética.
Após investigar e prender um miliciano vereador, Beltrame assistiu incrédulo à Assembleia livrar da cassação o ilustre político porque ele justificou sua ausência dizendo que estava preso.
Nenhuma cidade do Brasil reúne contravenção e cultura, informalidade e política, armas e drogas, turismo e lazer, violência e natureza, céu e inferno como o Rio.
A racionalidade e a firmeza com que Beltrame tem agido em um setor onde a sociedade já havia entregado os pontos lembra as pequenas forças construtivas da Teoria do Caos. São milagres aleatórios que nadam na direção oposta ao aniquilador ralo cósmico da entropia e criam calor, organização, planetas, estrelas, quasares e a própria vida.
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