domingo, 28 de novembro de 2010

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FERREIRA GULLAR

Fonte: folha.uol.com.br 28/11


Morte com data certa

Na cama, antes de dormir, lembrava-se dela, daquele sorriso, daqueles cabelos ruivos presos na nuca


ELE A viu, pela primeira vez, numa fotografia. No mezanino da escola, na parede oposta à dos janelões, havia uma série de fotos que documentavam alguns momentos memoráveis daquele estabelecimento formador de quadros políticos que teoricamente iriam mudar a face do mundo.
Não obstante, ali se realizavam reuniões festivas de que participavam diretores, professores, alunos e tradutores. Lina era uma tradutora e, sem sombra de dúvidas, a mais linda de todas.
Ela ocupava, em primeiro plano, o canto esquerdo da foto, os cabelos presos na nuca e um sorriso que lhe iluminava o rosto redondo de menina. Calçava botas de cano alto e uma saia justa que lhe deixava à mostra os joelhos.
Era como uma fada jovem, numa aparição de encanto, naquele universo político-ideológico. Suspirou, certo de que aquela mulher estava fora de seu alcance, fora do alcance mesmo de seus olhos. Seria, talvez, uma visitante, que ali aparecera como convidada em alguma das festas.
Viu a tal foto na primeira semana de sua chegada ao instituto, quando os cursos mal se iniciavam e as turmas ainda estavam incompletas. Poucos dias depois, as aulas começavam e foi aí que a viu em pessoa, lanchando na "stalovaia" da escola. Ela estava numa mesa próxima, tomando café e conversando com um grupo que falava espanhol.
Em determinado momento, seus olhos se cruzaram, mas ela logo se voltou para alguém, disse-lhe alguma coisa ao ouvido e riu discretamente. De noite, na cama, antes de dormir, lembrava-se dela, daquele sorriso, daqueles cabelos ruivos presos na nuca.
Soube depois que era tradutora encarregada dos coletivos de alunos de língua espanhola, todos latino-americanos. Como os brasileiros se enturmavam com estes, também se davam com ela e foi assim que, certa tarde, na mesma lanchonete, ela sentou-se na mesa em que ele estava com um casal carioca.
Foram apresentados e ela não pareceu dar maior importância ao fato, embora ele tivesse a impressão de que o seu olhar de algum modo a perturbava.
Por sorte, algumas semanas depois, houve uma festa promovida pelo coletivo argentino, com tangos e tudo o mais, e nessa noite ele a tirou para dançar. Disse-lhe ao ouvido que a achava linda ("ótin craciva") e ela empalideceu. Quando a festa acabou, ela, nervosa, sussurrou-lhe que a esperasse na estação do metrô. Pouco depois, tomavam o trem, desciam na estação perto da casa dela e, já de mãos dadas, penetravam num parque escuro e deserto àquela hora da noite.
Puxou-o pela mão, sentaram-se num banco e ela, sorrindo, soltou os cabelos ruivos que lhe caíram encantadoramente sobre o rosto. Tentou beijá-la, mas ela se esquivou, ergueu-se do banco e o levou pela mão até à porta do edifício onde morava. Ali, beijou-o na testa e, com um adeusinho, sumiu no portão. Ele, de volta a seu quarto na "abchejite", mal acreditava no que acabara de viver.
Ela era casada, vivia com o marido mas já não eram marido e mulher; é que, no socialismo, se o casal ganhara um apartamento, não tinha direito a outro, pouco importando se o casamento acabara ou não. Na primeira noite em que ela o levou à sua casa, o marido ainda não havia chegado. Serviu-lhe um jantar, na cozinha, e ele, não podendo conter-se, declarou-se apaixonado por ela. Foi então que Lina lhe ofereceu a boca para um beijo que jamais esqueceria.
O marido, Andrei, chegou lá pelas nove horas. Beberam vodca juntos e, como nevasse muito, aproveitou para dormir lá mesmo, no sofá da sala. De manhã, quando o marido se preparava para ir trabalhar, fingiu que ainda dormia e só se levantou depois que ele se foi. Aí entrou no quarto, jogou-se sobre Lina na cama e se amaram loucamente.
Mas aquele amor tinha data certa para acabar: terminaria o curso e ele teria de deixar o país. Na véspera da partida, foi para a casa dela e lá ficaram, os dois, de mãos dadas, beijando-se e chorando. Nem ele podia ficar nem ela podia mudar de país. Sem alternativa e para não perder o metrô, decidiu ir embora, sabendo que nunca mais a veria na vida. Mesmo assim, saiu e atravessou o parque, como um autômato.
Na manhã seguinte, como um autômato, foi para o aeroporto, entrou no avião e partiu. Faz 37 anos e seis meses. Nunca mais se viram.

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Conceição faz o primeiro alerta ao Governo Lula

"Brasil precisa se proteger e cuidar das contas externas"

Fonte: Cartamaior.com.br 26/11

A economista Maria da Conceição Tavares defendeu nesta sexta-feira, durante a Conferência do Desenvolvimento, promovida pelo IPEA, em Brasília, que o Brasil deve proteger sua economia, reverter o processo de sobrevalorização do real e adotar mecanismos de controle de capital para evitar um ataque especulativo. Em sua fala, ela deixou algumas sugestões para o futuro governo Dilma: "Eu diria que a primeira preocupação agora é, sem dúvida nenhuma, com o setor externo. Se ele continuar assim vai haver degradação da indústria, déficit crescente da balança de pagamentos e uma fragilidade externa que na crise de 2008 nós não tivemos". O artigo é de Katarina Peixoto.

O sexto painel da Conferência do Desenvolvimento, promovida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em Brasília, apresentou um tema abrangente e desafiador: Macroeconomia e Desenvolvimento. Um tema à altura da homenagem feita pelo IPEA aos 80 anos da professora Maria da Conceição Tavares, formadora de mais de uma geração de economistas brasileiros. Bem humorada, ela brincou com a relação entre a homenagem e o tema escolhido para a conferência:

“Esta homenagem está gloriosa, porque o clima é Woodstock, não é. Vamos ver se sou capaz de tocar guitarra elétrica. O tema proposto para mim, só tocando guitarra elétrica. Macroeconomia e desenvolvimento não são temas pensados conjuntamente, geralmente”.

O propósito da política macroeconômica, lembrou, é evitar os desequilíbrios. E agora mais do que nunca em função da crise econômica mundial. Maria da Conceição Tavares fez um rápido resumo do quadro atual.

“Neste ano que passou foram os países ditos emergentes que cresceram. O primeiro mundo não cresceu nada. A crise de 2008, agora em 2010, veio repicada com a crise na Europa. A política macroeconômica na Europa deve estar fazendo Keynes se remover na tumba. Um desemprego cavalar e eles vêm com ajuste fiscal. Além de tudo há uma pletora de dólares. O Banco Central europeu está sustentando os países mais pobres da UE, mas o problema não é de liquidez, mas de insolvência”.

Frente a essa situação, alertou, o Brasil precisa ficar atento:

“Nossa taxa de juros é historicamente cavalar. Não é uma maluquice do presidente do Banco Central. Desde a década de 70 que a taxa de juros primária é muito alta. E as taxas ativas dos bancos também são muito altas. Então estamos numa situação braba: que tipo de investimentos essa taxa de juros elevada atrai? O investimento direto não tem nenhum problema, desde que sejam estertores importantes do desenvolvimento. Mas nossas taxas de juros fazem com que sejamos atrativos para o capital especulativo. Resultado: estamos com uma grande sobrevalorização do real”.

Diante deste quadro, acrescentou, a economia brasileira precisa se proteger, não apenas dos Estados Unidos, mas também da China. Neste ponto, ela fez algumas advertências importantes ao governo Lula e, principalmente, ao futuro governo Dilma:

“Temos aumentado desvairadamente as importações. Está um festival de importação. Nós estamos diminuindo o conteúdo de valor agregado de nossa indústria, até com coeficiente em importação em aço, no qual temos competitividade internacional, temos 15% da importação em aço. Há sobra de aço na Europa, que está fazendo dumping para cima da gente e nós deixamos. Eu diria que a primeira preocupação agora é, sem dúvida nenhuma, com o setor externo. Se ele continuar assim vai haver degradação da indústria, déficit crescente da balança de pagamentos e uma fragilidade externa que na crise de 2008 nós não tivemos. Foi a primeira vez que o Brasil passou por uma crise sem se arrebentar. Ao contrário, somos credores líquidos internacionais. Passar dessa situação, outra vez, para devedor líquido é péssimo. Só não passamos a tanto porque o governo é credor líquido. Mas as grandes empresas, o capital privado já está devendo. O que significa que qualquer repique da crise internacional pode nos trazer problemas”.

O governo tem de estar atento, enfatizou a economista, para não agravar o déficit fiscal. “A inflação é de custos, não de demanda. Então, não é o caso elevar taxa de juros, para não agravar o déficit fiscal, aumentando o serviço da dívida. Isso tira a possibilidade de desenvolvimento. Como se faz desenvolvimento com uma taxa de juros dessas?” - indagou.

A economista garantiu que não discutiu pessoalmente esses temas com ninguém do governo. E reafirmou a defesa da adoção do controle de capitais para proteger o país de um ataque especulativo.

“Já disse publicamente e repito, penso que numa situação como essa tem de ter controle de capitais. Todos os controles quantitativos. Aumenta o compulsório. Controla a taxa de crédito. Mas não com essa taxa de juros. Mesmo que o FMI tenha dito que controle de capitais pode ser recomendado, na atual conjuntura, o “mercado” e “os do mercado” aqui no Brasil não suportam ouvir isso. Mas temos no Banco Central gente discreta, não vedetes. Eu acho que a mudança do presidente do BC se prende a isso”.

O Brasil, recomendou ainda a economista, precisa fazer uma política fina e ir diminuindo lentamente a taxa de juros e a taxa de câmbio. “Devagar com o andor que o santo é de barro. Tem de andar devagar”, enfatizou.

E criticou aqueles que defendem o corte de gastos para promover um duro ajuste fiscal.

“O eixo deste governo é a política econômica com eixo social. Esse é o nosso custeio. Cortar para investir, para agradar a imprensa? Eu acho que não há sentido nenhum. No desenvolvimento econômico, o eixo social está correto. Mas se não cuidarmos da parte cambial, não conseguiremos fazer política industrial e tecnológica e, no longo prazo, não há desenvolvimento econômico regredindo nessas coisas”.

Maria da Conceição Tavares manifestou confiança na capacidade da presidente eleita Dilma Rousseff enfrentar esses problemas:

“Graças a deus a nossa presidente é uma mulher de coragem, de discernimento e economista competente. Este primeiro ano dela é complicado, em todos os sentidos. Enfim, que deus a proteja. Não adianta pedir que deus proteja individualmente nestas questões. Nestas questões é melhor proteger o coletivo”.

“Tenho muita fé na presidente, mas uma coisa é saber, outra é operar – não sei se a proporção de forças dos industriais pesam tanto quanto a dos banqueiros. Para sair dessa encrenca, agora mais do que nunca, não dá para deixar para o mercado ou a divina providência. A solução é humana e de todo o governo. Até o fim dessa década vamos erradicar a miséria, para que isso ocorra não podemos fazer coisas que abortem essas intenções.”


O Brasil tem um caminho duro pela frente, concluiu, e “deve agir com a autonomia de um país independente e soberano”. “Precisamos fazer uma defesa soberana da política industrial, cambial e de balanço de pagamentos. Não quero que me impinjam política macroeconômica que me atrapalhe o desenvolvimento. E que não se espere que o G7, G20, o G 400 resolvam alguma coisa, porque a ordem mundial está uma bagunça e o mundo hoje é multipolar. Acho melhor cumprir o nosso papel”.

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