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Inéditos de Mário de Andrade
Fonte: valoronline.com.br 26/11
Reportagem de capa: Romance inacabado, críticas de cinema e obra sobre preconceito escritos por Mário de Andrade serão editados em livro pela primeira vez em coleção.
"Preto": este foi o nome com que Mário de Andrade, ele próprio mulato, batizou a pasta na qual reuniu anotações de trabalho e escritos sobre as questões de "cor" no Brasil. Em tese defendida na Universidade de São Paulo (USP) há uma semana, a pesquisadora Angela Teodoro Grillo apresentou o resultado do estudo sobre o conjunto de 371 documentos da pasta, equivalentes a cerca de 20 anos de pesquisas do autor, do fim dos anos 1920 até sua morte, em 1945. A maioria dos textos é inédita e, entre eles, está uma preciosidade: um ensaio de 16 páginas datilografado e sem título, datado de 1938, no qual Mário expôs suas ideias sobre o preconceito racial no país.
A pesquisa confirma que, embora não tenha sido militante do movimento negro, Mário manteve uma preocupação constante e profunda com o tema. A partir dessa nova perspectiva, torna-se possível reinserir o autor de "Macunaíma" no debate sobre o preconceito, polêmico até hoje no Brasil.
As descobertas de Angela serão publicadas no próximo ano pela editora Nova Fronteira como parte do projeto de edição das obras do escritor, iniciado em 2007. No início do mês que vem, será lançada a coletânea "No Cinema", também com textos inéditos de Mário sobre a sétima arte (leia mais na pág. 20). Para 2011 a editora planeja ainda a edição de "Café", romance inacabado, nunca publicado, e tema de outra tese, defendida por Tatiana Longo Figueiredo no ano passado. Pesquisadora da obra de Mário desde 1993, Tatiana ainda descobriu recentemente, no arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da USP, o poema "Fox-Trot", de 1925, que, por fazer alusão ao cinema - "Carlito anda fox-trot./ Todos os homens Carlitos insinceros" - será publicado na nova coletânea sobre o tema, organizada por Paulo José da Silva Cunha.
Agência reminiscências
Mário de Andrade (à esq., em pé e inclinado) com organizadores da Semana de Arte Moderna, entre eles Manuel Bandeira (o segundo da esq. para a dir.) e Oswald de Andrade (no centro, sentado no chão)
Tatiana desvendou como Mário se dedicou ao que seria o romance "Café", projeto de fôlego que começou nos anos 1920 e com o qual esteve envolvido até praticamente o fim da vida. O romance teria cinco partes e o personagem central é inspirado no cantador Chico Antônio (1904-1993), que Mário conheceu na cidade de Natal, em uma viagem etnográfica em 1928. Na primeira parte, conta como era São Paulo quando esse migrante chega de trem pela Estação da Luz. O personagem se depara com o burburinho de uma cidade estranha para ele, com muitas luzes, muitos apelos, inclusive sexuais. "O primeiro capítulo terminaria com a ida de Chico Antônio para a fazenda", conta Tatiana.
O escritor redigiu três versões para essa parte. Da segunda, já na fazenda, há apenas uma versão e as demais não chegaram a ganhar corpo. O trabalho permitiu a Tatiana acompanhar o processo criativo de Mário, "de uma complexidade muito grande". A crise de 1929 e a guerra, nos anos 1940, são fatos que influenciaram a redação. "A princípio, Mário pensava num romance que seria mais psicológico, mas, com a guerra, ficou muito incomodado e resolveu destacar elementos mais sociais, através de Chico Antônio, por exemplo. Em sua opinião, a arte precisava ser mais engajada. Chegou a dar uma entrevista, nessa época, para o jornal 'Diretrizes', dizendo que os intelectuais haviam se vendido aos donos do poder", conta.
A crise de 1929 também fez Mário repensar o impacto que teria uma geada sobre a fazenda, pois os problemas que iriam enfrentar não poderiam decorrer somente do ambiente.
Já o ensaio de Mário sobre preconceito racial chama a atenção porque o escritor conseguiu ampliar a discussão num período em que as teorias sobre democracia racial eram discutidas por intelectuais como Arthur Ramos (1903-1949) e Gilberto Freyre (1900-1987). "Mário não buscava apagar a existência do preconceito. Atestava sua existência no Brasil, antecipando ideias que seriam defendidas anos depois por intelectuais como Roger Bastide [1898-1974] e Florestan Fernandes [1920-1995]", afirma Angela Teodoro Grillo.
Mas se para Florestan preconceito racial e de classe se ligam, para Mário o preconceito existe independentemente da classe social. "Mário adianta e ultrapassa as ideias de Florestan. É um grande nome para participar desse debate."
A tese foi orientada pela professora Telê Ancona Lopez, coordenadora do amplo projeto temático de estudo do processo de criação de Mário de Andrade, a partir de seu arquivo, preservado desde 1968 pelo IEB. O trabalho de Angela, diz Telê, mostra como Mário dialogava com outros intelectuais sobre o tema. Em sua opinião, trata-se de "um escritor brasileiro" - e não afro-brasileiro - "que soube, muito bem, captar o negro em sua arte e buscar a compreensão da cultura negra brasileira, em seus estudos de cunho antropológico".
A professora é autora de "Ramais e Caminhos", de 1972, único estudo que já havia sido publicado até hoje sobre as ideias de Mário sobre o preconceito. O ensaio se baseia em dois artigos publicados na imprensa pelo próprio autor, "Linha de Cor" e "Superstição da Cor Preta". Agora, a pesquisa de Angela indica que esses dois textos têm como matriz o artigo inédito de 1938, o qual, para facilitar a referência, ela intitulou como "Estudo da Superstição da Cor Preta".
A história da escrita do texto, com lances novelescos, revela até que ponto Mário estava envolvido com a causa dos negros. O ensaio data de 7 de maio de 1938 e foi redigido para a comemoração do cinquentenário da Abolição, embora possivelmente não tenha sido apresentado. Para celebrar a efeméride, Mário, então diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo - cargo que ocupava desde 1935 -, organizou um ciclo de conferências para o qual convidou ilustres intelectuais negros. Também planejou festividades que previam atividades em parques infantis e bibliotecas, concertos especializados de música negra e, por fim, uma congada nas ruas de São Paulo, algo bastante ousado para a época, segundo Angela.
O ciclo de conferências chegou a ser realizado entre 27 de abril e 11 de maio, no Palácio do Trocadero, no centro de São Paulo. No dia 2, houve até mesmo uma sessão solene organizada por associações negras, da qual Mário de Andrade participou, no Teatro Municipal. No entanto, antes do fim do ciclo se deu uma reviravolta: no dia 9, o prefeito Fábio Prado foi substituído por Francisco Prestes Maia, nomeado pelo Estado Novo, num dos seus anos mais truculentos. Mário renunciou no dia 11, possivelmente sem conseguir proferir a conferência, marcada para a véspera. As demais festividades acabaram sendo canceladas e o número comemorativo da "Revista do Arquivo Municipal", já sob a direção do substituto de Mário, Francisco Pati, publicou apenas cinco das dez conferências apresentadas, nenhuma dos autores negros que participaram do evento.
Mário acreditava que os intelectuais negros deveriam ter mais brilho em suas intervenções. "Ele instiga os negros a pensarem se eles mesmos não teriam preconceito de cor", afirma Angela. Com o intuito de fundamentar a presença do preconceito na sociedade, o autor colecionou, com seu tino de etnógrafo, uma série de provérbios, ditos e quadrinhas populares que comprometiam a figura do negro. No próprio texto da conferência destacou: "Há toda uma série de provérbios detestáveis para demonstrar pelas variantes de vocabulário a distinção entre o homem branco e o homem negro. São os provérbios em que se nega ao negro o direito de usar para si palavras usadas em relação aos brancos nos seus atos tanto individuais como sociais. Eis alguns: 'Negro não fala; Resmunga'; 'Negro não come, Babuja'; 'Negro não dorme, Cochila'; 'Negro não pare, Estóra' (...)".
As notas de trabalho reunidas na pasta indicam que Mário planejava escrever uma obra de vulto sobre a questão. Um dos aspectos que mais lhe interessam é o que chama de superstição, ou seja, como a cor preta seria carregada de negatividade. "Mário utiliza inclusive referências bíblicas para mostrar que, com a escravidão, essa superstição, de que a cor preta seria ligada a coisas ruins e ao mal, foi transferida para o homem negro", diz Angela, que vai ampliar sua pesquisa em projeto de doutorado. Uma das questões que pretende aprofundar é a maneira como o negro é retratado na obra publicada do autor - por exemplo, em "Macunaíma", lançado em 1928 e do qual não há referência direta na pasta.
Com o dossiê "Preto", Angela também completa um quebra-cabeça nas "Obras Completas" do autor, cuja organização o próprio Mário havia designado a Oneyda Alvarenga, sua ex-aluna. O dossiê teria de integrar o volume de número 13 (num total de 20) e seria composto de três partes: a primeira se chamaria "O Folclore no Brasil"; a segunda, "Estudos sobre o Negro"; e a última, "Nótulas Folclóricas". Mas Oneyda não achou os textos da segunda parte e só agora, com o dossiê "Preto", a exigência se cumprirá.
A dificuldade de achar o manuscrito se deve, em grande medida, ao tamanho do acervo, composto por cerca de 30 mil documentos, uma biblioteca de 17 mil volumes e uma coleção de obras de arte e peças do folclore. Carlos Camargo, sobrinho de Mário de Andrade, considera fundamental o trabalho que tem sido realizado pelo IEB e pela Nova Fronteira: "Por causa do jeito muito particular que Mário tinha de escrever, usando, por exemplo, o 'i' no lugar do 'e', como 'si' em vez de 'se', há muitos erros na edição de suas obras. A revisão que está sendo realizada é um trabalho bonito de confrontação de originais".
A reedição das obras do autor será intensificada antes que entre em domínio público, em meados da nova década. "É importante que os textos já estejam inteiramente fixados para que se tenha uma matriz confiável", diz Janaína Senna, editora da Nova Fronteira.
Além da coletânea "No Cinema", neste fim de ano a Nova Fronteira reedita "Padre Jesuíno do Monte Carmelo", seu último livro, que concluiu às vésperas da morte, em 25 de fevereiro de 1945. O livro resulta de exaustiva pesquisa de Mário sobre o pintor, entalhador, arquiteto e músico setecentista. Também será reeditado o volume "Modinhas Imperiais", obra que Mário dedicou a Heitor Villa-Lobos (1887-1959). Mas a lista dos livros que virão é extensa. Além dos inéditos e do volume de poesia, está prevista já para 2011 nova edição de "Contos Novos".
Outros livros ampliarão ainda mais o olhar sobre Mário no próximo ano, como "Da Tradução Poética" e "Os Filhos da Candinha II: Crônicas Críticas", preparados, respectivamente, por Sônia Marrach e Gabriela Betella. "Também 'O Pico dos Três Irmãos', com crítica de poesia, e 'Zoofonia', a partir de trabalho de Marcos Moraes e Flávio Penteado, obras pensadas para 2012", afirma Telê Ancona.
Além disso, ao lado de Tatiana Figueiredo a professora pretende lançar uma nova edição de "O Turista Aprendiz", com um primeiro diário, o das imagens e legendas do Mário fotógrafo. "Quanto ao modernista, em 'Crônicas de Malazarte', edição sob minha responsabilidade, vamos mostrar suas importantes cogitações a respeito de vanguarda no Brasil em 1923 e 1924", diz Telê.
O próximo ano será importante ainda por outra razão: o Projeto Temático no IEB planeja publicar, em catálogo analítico e também em seu site, a totalidade dos manuscritos da criação de Mário de Andrade. Tatiana Longo Figueiredo, envolvida nesse trabalho de reconstituição, não tem dúvida de que ainda há muito o que aprender sobre o escritor: "É uma figura que tem sido bastante estudada, mas muito mais coisa precisa ser feita e descoberta. Mário se interessava por muitos assuntos e sempre contou com grande embasamento teórico de leitura, recorrendo ao que havia de mais novo na sua época. Ele procurava ler e estudar. Era um perfeccionista."
Embora realize pesquisas sobre Mário há quase 20 anos, Tatiana sempre se surpreende com as descobertas. O mesmo sentimento é compartilhado por Telê. Na Equipe Mário de Andrade, ligam-se projetos de iniciação científica, mestrados, doutoramentos e pós-doutoramentos. "Todos procuram acompanhar todos os projetos em curso, numa interlocução generosa e rica", afirma Telê. Em poucas palavras, ela busca definir o autor ao qual dedicou a vida profissional: "Mário mestre, consciência sem repouso, criação sem cadeias".