sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Judiciário: Eliana Calmon quer tolerância zero para corrupção

Fonte: valoronline.com.br 02/10

Corregedora intensificará fiscalização em tribunais

No começo dos anos 70, a ministra Eliana Calmon, que acaba de deixar o Superior Tribunal de Justiça (STJ) para assumir a Corregedoria Nacional de Justiça, sentou-se ao lado direito de um magistrado em um julgamento em Pernambuco, no local reservado para procuradores da República, cargo que ocupava na ocasião, aos 29 anos. Logo foi abordada por um advogado que perguntou se ela era procuradora. Ao responder que sim, ele replicou: "Pensei que a senhora fosse escrivã e tinha sentado do lado errado". O advogado não sabia que estava diante da primeira mulher a ocupar um cargo de procuradora da República na região Nordeste, e que se tornaria mais tarde também a primeira desembargadora do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região e ministra do STJ, onde está há uma década. O advogado se retratou: "Ah, é que a senhora não é daqui né, é da Bahia?" Ao receber a resposta afirmativa, acrescentou: "Percebi, pois a senhora está muito cheia de balangandãs", referindo-se ao fato de a procuradora estar vestida de modo feminino. O incidente é uma pequena mostra dos diversos desafios que Eliana viria a enfrentar ao longo dos 32 anos de carreira como magistrada. Agora, a ministra se prepara para uma tarefa nada fácil à frente da corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Ela quer tolerância zero para a corrupção no Judiciário e quer investir nas corregedorias estaduais, que hoje funcionariam como "órgãos decorativos" de fiscalização dos tribunais, onde, para ela, começam os casos de corrupção. Conhecida por "não ter papas na língua" e defender suas posições, a ministra fez um pedido para si mesma, antes da entrevista: "Que eu segure minha língua dessa vez".

Valor: Em seu discurso de posse, a senhora disse que à frente da corregedoria tentaria devolver a alta estima à magistratura, maltratada pela ineficiência sistêmica. Como pretende fazer isso?

Eliana Calmon: A primeira instância não é valorizada. Muitas vezes os juízes dão uma liminar e o tribunal cassa sem qualquer pudor. Eu tenho depoimentos de magistrados sobre advogados que os procuram e dizem que não querem liminares, pois podem buscar isso no tribunal, mas apenas que despachem seu processo. O juiz vira um funcionário de protocolo, não se sente prestigiado. É preciso valorizar a primeira instância, é ela que está no "tête-à-tête" com as partes, que soluciona conflitos. É preciso mudar isso por uma formação adequada, da escola da magistratura, o CNJ está com a incumbência de fazer isso.

Valor: O CNJ tornou-se um órgão importante em apenas cinco anos. Mas sofre resistência do próprio Judiciário. A senhora acha que isso atrapalha o conselho?

Eliana: Cada tribunal administrava a Justiça da forma que queria, às vezes do modo mais estranho do mundo. Com formas diferentes de gerir pessoal, sistema de informática, aplicação de verbas, tornando o Judiciário uma colcha de retalhos. O CNJ está fazendo uma política de uniformização. Toda mudança causa reação, especialmente dentro de uma carreira reacionária como a magistratura. Nós trabalhamos com o ontem. Aplicamos uma lei, feita há algum tempo, a um conflito que já aconteceu, e nós temos que nos reportar sempre ao passado. Até nas nossas roupas, nos vestimos de uma maneira formal. É quase impossível fazer uma reunião com magistrados sem que todos apareçam de terno e gravata. São exemplos miúdos para provar que nós somos realmente um pouco atrasados em relação ao amanhã e resistimos a mudanças.

"Toda mudança causa reação, especialmente dentro de uma carreira reacionária como a magistratura"

Valor: Diversos casos de corrupção já foram julgados pelo CNJ. A senhora se surpreende ou imaginava que existissem situações como essa no Judiciário?

Eliana Eu já esperava. Venho denunciando há algum tempo o que está acontecendo. No Judiciário sempre ocorreram casos de corrupção pontuais. Havia um certo controle por parte da corregedoria, mas os tribunais sempre foram soltos e faziam o que bem queriam porque não tinham que prestar satisfação. Mas, de qualquer forma, historicamente não se tinha notícia de corrupção generalizada nos tribunais. Hoje, nós estamos com grandes dificuldades. Primeiro porque quando chegou a informação, nós não acreditamos, e há ainda quem não acredite que isso seja possível dentro do Judiciário. Não se investiu durante esses anos nas corregedorias estaduais, pouco se exigiu delas. Elas ficaram quase como um órgão decorativo, sem muita atividade, e os tribunais ficaram soltos. Além disso, é fácil para o magistrado tornar-se corrupto. Ele lida com o patrimônio das pessoas, com a vida delas. Ele decide, dá a última palavra. É um terreno profícuo para ele agir e não havia controle disso. Daí a necessidade de se interferir.

Valor: E onde o CNJ deve agir para acabar com a corrupção?

Eliana: Nos Estados maiores, a corrupção é menor porque não existe a proximidade do poder com as partes, e existe também uma tradição, as corregedorias funcionam com um pouco mais de energia. Nos Estados menores, isso é pior. Aliás, a corrupção começa nos tribunais. Na primeira instância, esses casos são pontuais. Quem não dá o exemplo são os tribunais. São eles que começam a contaminar todo o sistema. Se os tribunais voltarem para os trilhos, é mais fácil controlar a primeira instância com a atividade das corregedorias, que serão cobradas devidamente, pois a corregedoria nacional não pode ter olhos de lince. A ideia é fazer correições mais severas nos tribunais.

Valor: Magistrados que tiveram aposentadoria compulsória decretada pelo CNJ conseguiram reverter as decisões no Supremo. Isso põe em risco a competência do conselho?

Eliana: As decisões do Supremo são liminares, não temos uma posição efetiva da Corte sobre a atividade correicional do CNJ. As liminares são concedidas porque o STF é um tribunal de garantia. E lá as provas foram examinadas de forma rápida, apenas no papel. Quando julgamos no CNJ, vemos vídeos de corrupção gravados pela Polícia Federal. São gravações fortes, que nos deixam sensibilizados e indignados. Tenho 20 dias de corregedoria e fiquei chocada. Os fatos são graves e a gente precisa fazer as correções. O STF ainda não teve acesso a essas imagens. Tenho certeza que, debruçando-se sobre as provas, sem dúvida vão concordar com o CNJ. Ninguém é tirado da carreira sem uma prova concreta.

Valor: Aposentadoria compulsória não é uma pena muito leve?

Eliana: No passado, a aposentadoria era toda custeada pelos cofres públicos, era um prêmio. Em determinado momento, passamos a pagar o nosso INSS, e a aposentadoria passou a ser uma contraprestação. Então, a aposentadoria é custeada pelo próprio magistrado. O criminoso mais bárbaro do mundo pode se aposentar pelo INSS e ter seus proventos. Como admitir que isso não aconteça com um magistrado que contribuiu? O que pode ser feito é uma revisão na legislação. Os magistrados mais antigos têm parte da aposentadoria custeada pelos cofres públicos e parte pelo INSS. Deveríamos nesse caso tirar a parte custeada pelos cofres públicos. Mas para isso é preciso uma lei adequada. Há necessidade de se fazer uma revisão geral na Lei Orgânica da Magistratura (Loman). As punições precisam ser revistas. A lei está desatualizada.

"Há necessidade de se fazer uma revisão na Lei Orgânica da Magistratura. As punições precisam ser revistas"

Valor: O que o CNJ pode fazer para dar celeridade aos processos?

Eliana: Estamos muito atrasados porque não sabemos gerir o processo. O meu primeiro projeto é de gestão, é o "Justiça em Dia". Encontramos nos tribunais situações de gabinetes que estão lado a lado, mas um está absolutamente em dia com os processos e o outro tem 30 mil. Se a distribuição é igual, não pode haver um juiz tão diligente e um tão indolente. A forma de gerir que está errada. Se o desembargador disser que não quer o mutirão, eu respeito, mas isso ainda não aconteceu. Se acontecer nós vamos inspecionar aquele gabinete, e na inspeção oficial, que é uma radiografia, aí não pode haver resistência.

Valor: E em relação à execução fiscal, que continua sendo o grande gargalo do Judiciário?

Eliana: Nos mutirões, o CNJ está fazendo a separação das execuções. Mostrando por vezes a necessidade de algumas anistias. Para os débitos irrisórios, isso já está sendo feito no Estado de São Paulo. É preciso tirar o processo de lá e dar vazão. É um grande número de processos que, na realidade, não significam nada. Concordo com todos os quatro projetos de lei que estão tramitando no Congresso Nacional e estabelecem a reforma da execução fiscal. Hoje, a execução fiscal está pífia. Os Estados gastam mais com a cobrança do que com os processos.

Valor: Por ser a primeira desembargadora do TRF, a senhora enfrentou situações de machismo?

Eliana: Encontrei resistência já quando assumi como procuradora da República em Pernambuco por ser a primeira do Norte e Nordeste. Uma vez estava esperando na sala de audiência, quando o juiz chegou me sentei ao lado direito, lugar que o Ministério Público ocupa. O advogado olhou espantado para mim e perguntou se eu era procuradora. Eu disse que sim. Ele respondeu: "Ah, eu pensei que a senhora fosse escrivã e tinha sentado do lado errado". Afinal, mulher, sentada na mesa do juiz, só podia ser escrivã. Mas eu nunca me importei com essas manifestações. Outra vez, eu estava na procuradoria quando chegaram uns procuradores da Fazenda e eu fui apresentada como a nova procuradora. Um deles falou: "Mas eu não sabia que aqui já tinha uma flor"! A primeira tentativa é sempre tornar uma mulher tão frágil como uma flor. Aí eu brinquei e disse: "Doutor, essa flor não tem perfume". Eu achava aquilo jocoso. Eu levava na brincadeira e sempre me impus muito sem nenhum problema.

Valor: E como foi no TRF?

Eliana: Eu nunca aceitei qualquer discriminação. No tribunal, existiam gabinetes com banheiro e sem banheiro. Os desembargadores quiseram deixar um gabinete com banheiro para mim. Eu não aceitei, disse que também queria participar do sorteio. Um dia chegou uma autoridade estrangeira no TRF e resolveram fazer uma homenagem com um jantar. Os desembargadores acharam melhor não levar as mulheres deles. E ninguém me convidou. Descobri onde era o jantar e na hora apareci lá. "Você veio?", disseram. E eu respondi: "Pelo que sei é o tribunal que está oferecendo o jantar e eu faço parte do tribunal e não da casa da vocês. Vocês podem não trazer a mulher de vocês, mas eu tenho que estar aqui. E aproveitando, queria dizer que vocês são todos mal educados porque não se marca jantar sem convidar a mulher de vocês. Se queriam fazer um clube do bolinha, tinham que fazer um almoço e não um jantar. Aprendam essa regra de etiqueta e passem a me respeitar como profissional".

Valor: A senhora sempre diz que gosta de cozinhar, tem livros de culinária publicados. Como acha tempo?

Eliana: Meu prato favorito é uma comida de origem portuguesa que se chama cozido - todas as verduras que se cozinham com as carnes secas. Quando se gosta de alguma coisa, sempre se acha um tempinho. Esta semana mesmo eu fiz um jantar para os meus colegas conselheiros e fiz todas as comidas. Fiz numa segunda e preparei tudo no domingo. Fiz bobó de camarão servido em pequenas cumbucas e bacalhaus com natas e ao fim do jantar um filé ao molho de champignon e um risoto de funghi, que eu fiz na hora. A sobremesa foi um praliné de amendoim, delicioso, que é amendoim crocante com creme de leite condensado. E também uma mousse de cupuaçu com cobertura de chocolate.

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A hora e a vez de Sua Excelência

Fonte: valoronline.com.br 01/10

Oito em cada dez eleitores que vão às urnas neste domingo nunca foram privados de seu direito de escolher, pelo voto, todos os dirigentes do país. E já votaram para presidente da República mais vezes do que os brasileiros de qualquer outra época da história. A maioria vai acordar no domingo, pegar a cola de candidatos e seus documentos - todos que encontrar pela frente, já que essa gente não se entende -, antes de se dirigir, pela sexta vez consecutiva, ao mesmo local de votação desde que se cadastrou como eleitor.

A rotina parece banal, mas não há feito maior, quando se trata de mediar conflitos pelo voto, do que uma eleição depois da outra. Esse eleitor que começou a votar em 1989 pode não mais se demorar na escolha da cor da roupa, nem fazer o V de vitória para as charangas dos simpatizantes que avistar pelo caminho. Talvez tenha atravessado toda a campanha sem levantar uma única vez a voz em discussão sobre os melhores e maiores de 3 de outubro. Melhor assim. A paixão talvez nem combine mesmo com esse enredo.

De cada dez brasileiros, sete votam. É a maior proporção de eleitores de uma história que, há apenas uma geração, excluía a leva de analfabetos. A maioria deste colégio eleitoral expandiu seus ganhos em ritmo chinês nos últimos anos, mas teve um salto de escolaridade superior ao de renda. Quatro, em cada dez eleitores que vão às urnas neste domingo têm mais de oito anos de bancos escolares.

Nada como uma eleição depois da outra

É um eleitor que consome mais informação e, potencialmente, demanda mais do poder público. Paradoxalmente, o ingresso desses emergentes à informação e ao consumo também aumenta a ansiedade em relação à manutenção dos seus ganhos e os torna suscetíveis à volatilidade eleitoral, como demonstram as planilhas das últimas semanas.

São esses eleitores que carregarão, para uma eleição futura, o que Wanderley Guilherme dos Santos em artigo neste Valor (29/09) definiu como o germe do conservadorismo: dada a percepção de que mobilidade social pode estar se aproximando de seu limite, a preservação das conquistas pode acabar sendo a barganha eleitoral mais atraente.

O eleitor aprendeu a votar por cálculo porque nesse amadurecimento das eleições consecutivas já viu de tudo. Acreditou no voluntarismo de punhos cerrados, na moeda que redimiria o país e naquele que viria de baixo para passar a história a limpo. Deu-se conta de que seu voto construiu aventureiros, prorrogou ilusões e varreu para baixo do tapete verdades inconvenientes. Mas descobriu também que votando ajudou a derrotar a inflação e fomentar políticas públicas pela melhor distribuição de renda.

Nesta campanha, viu o candidato do PSDB elogiar o presidente de dia e malhá-lo à noite; foi testemunha da incapacidade da candidata do PT de dizer como será capaz de atender aos deuses e diabos que infestam seu entorno; e foi incapaz de colher da candidata do PV uma explicação por que, desta vez, o voto num presidente sem partido não redundará em nova tragédia. Foi obrigado até a assistir o candidato do PSOL defender a previdência complementar para o funcionalismo público sem que ninguém lhe lembrasse que foi esta reforma que levou ao êxodo do PT dos seus atuais correligionários.

Mas esta campanha também levou cada um dos principais candidatos a compromissos históricos. Se Dilma Rousseff cumprir o que acenou no programa de combate ao crack exporá o raquitismo dos recursos destinados ao tema pelos oito anos do governo Lula. Se José Serra imprimir à política de reajuste do salário mínimo a velocidade prometida também terá rompido com o viés fiscalista que pautou sua carreira de gestor público e o histórico de seu partido no poder. Se Marina Silva chegar nos 7% do PIB com educação e ainda conseguir restringir o aumento da despesa em relação ao PIB, como promete, nunca na história desse país se terá visto igual façanha.

Mas em matéria de prodígio, não há competidor nesta disputa para a justiça eleitoral. No varejo, é orgulho nacional. Coloca na rua uma das maiores estruturas eleitorais do mundo sem que os resultados sejam passíveis de contestação. No atacado, a toga deixou para definir as vésperas da votação com quantos documentos se faz um eleitor, quais candidatos, se eleitos, poderão tomar posse e por que um candidato pode apelar à censura num Estado (Paraná) e não pode noutro (Tocantins). A partida só caiu no colo do juiz porque assim quiseram os partidos e seus representantes no Congresso. Só o voto deste domingo pode colocar novamente a bola em campo.

Planilhas, quando torturadas, dizem quase tudo. Às vésperas de uma eleição presidencial tão radicalizada, o risco que essa tortura produza desinformação é grande. Em comum, a última leva de pesquisas mostra ascendência de Marina Silva (PV), ainda que nenhuma delas ateste potencial para transformá-la em segunda colocada em curto espaço de tempo. As pesquisas também convergem para a inércia de José Serra. A discrepância se dá em relação ao desempenho de Dilma Rousseff (PT). O Datafolha de ontem convergiu para a tendência de estabilidade apontada por Vox Populi e CNI/Ibope, e em todos os institutos há tendência de estreitamento da folga para uma disputa definida em primeiro turno, mas a margem varia de quatro a 11 pontos.

É esperado que o líder nas pesquisas se desidrate na reta final. Se lidera é porque tem a preferência das camadas de baixa renda, mais numerosa do eleitorado. E é nessa faixa que está o eleitor mais suscetível à abstenção, tanto pela locomoção, agravadas em condições climáticas desfavoráveis, quanto pelas agruras da documentação. É nesse eleitorado também que se concentra o risco de voto nulo pelo desconhecimento do número dos candidatos e pelo manuseio da urna eletrônica. E, finalmente, é esse o eleitor alvo das investidas da indústria de boatos de cunho moral e religioso da saideira da campanha. Depois dos eventos derradeiros - o programa do horário gratuito e o debate da noite de ontem - o barulho ficará por conta da internet e dos exércitos de cabos eleitorais com e sem bíblia. Ainda bem que não dá para prever resultado.

Maria Cristina Fernandes é editora de Política.

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