sexta-feira, 15 de outubro de 2010

ANTONIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO

Fonte: folha.uol.com.br 15/10

Tive formação que cumpriu o rito das famílias católicas no Brasil; por contingências da vida, com três parceiras, me vi impelido a encarar abortos


"O búzio e a pérola: aperfeiçoa-te na arte de escutar, só quem ouviu o rio pode ouvir o mar"

Neste momento em que a discussão sobre o aborto entra na campanha pelas portas dos fundos, da hipocrisia, da indigência intelectual e da falta de compromisso com a realidade brasileira, penso ser importante que nós, a dita sociedade formadora de opinião -sim, nós existimos-, nos manifestemos.
Sou católico e tive uma formação que cumpriu o rito das famílias católicas no Brasil. Por contingências da vida, em três diferentes oportunidades, com três parceiras distintas, há longo tempo, eu me vi impelido a encarar um aborto.
Em nenhuma das três situações eu queria que o aborto fosse feito, mas respeitei, com dor e resignação, a decisão da mulher.
Na primeira, eu era muito novo e sem nenhuma condição financeira.
Vários amigos não tiveram dificuldade em apontar um "aborteiro".
Além da pressão e do sentimento de perda e medo, tivemos de encarar um quarto fétido, no qual as próprias pessoas na fila demonstravam que a hipótese de dar errado era enorme. Durante o procedimento, eu mesmo tive que largar a mão dela, que segurava em solidariedade, para ajudar a terminar o aborto, pois senão ela teria morrido.
Foi uma recuperação dificílima, traumática, pois ela reteve placenta, inchou muito e sentia dores horríveis. Foi preciso procurar um médico; enfim, um calvário. Nossa relação também foi abortada ali.
No segundo, a companheira tinha boa situação financeira. Optou pelo melhor hospital da cidade, internou-se com seu médico de confiança e saiu no outro dia para trabalhar. Não sei das dores indizíveis do coração dela à época, pois nossa intimidade não chegava a tanto.
Também virou um rosto apagado em minha memória, mas eu ainda carrego comigo essa sombra.
A terceira não podia fazer o aborto em um hospital da cidade, por ser muito conhecida. Nada que uma viagem rápida ao exterior não pudesse resolver.
Agora, vejo que o aborto domina a campanha presidencial.
A pergunta errada, covarde, maldosa e bandida é: "Você é a favor do aborto?". Ora, ninguém, em sã consciência, é a favor do aborto, e não é isso o que está em discussão, salvo para os marqueteiros e os fanáticos religiosos.
O que deve ser motivo de reflexão é a realidade estampada corajosamente pelos grandes veículos de comunicação: cerca de 1,1 milhão de abortos clandestinos são feitos todo ano no Brasil; a cada dois dias, uma mulher é morta ao fazer aborto clandestino; pelos dados do SUS, o que faz presumir que o número seja muito maior, são 200 mortes por ano.
Isso sem contar as que morrem Brasil afora sem nem sequer virarem estatística. Passaram pela rede pública no ano passado, para fazer curetagem, 184 mil mulheres que abortaram clandestinamente e tiveram complicações; em 12 anos, o SUS fez mais de 3 milhões de curetagens no Brasil.
O fato concreto é que uma em cada cinco brasileiras de até 40 anos já abortou e mais de 5 milhões de brasileiras já passaram por esse trauma.
É a realidade batendo nas nossas caras e clamando para ser encarada como o que é: um problema, seríssimo, de saúde pública!
Se os dois candidatos, que honram o Brasil com seus currículos, admitissem em conjunto e ao mesmo tempo essa tese, estariam tirando esta discussão do obscurantismo e projetando um pouco de luz nas trevas que caem e tornam opacas as vidas de tantos brasileiros. Homens e mulheres.


ANTONIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, o Kakay, é advogado criminalista. Foi secretário do Conselho de Direitos da Pessoa Humana (governo Sarney).

&&&&&&

FERNANDO DE BARROS E SILVA

Fonte: folha.uol.com.br 15/10


Deus: uma regressão política

SÃO PAULO - Boris Casoy - Senador, o senhor acredita em Deus?
FHC - Essa pergunta o senhor disse que não me faria.
Casoy - Eu não disse nada.
FHC - Perdão, foi num almoço, sobre esse mesmo debate.
Casoy - Mas eu não disse se faria ou não faria.
FHC - É uma pergunta típica de quem quer levar uma questão que é íntima para o público, uma pergunta típica de quem quer simplesmente usar uma armadilha para saber a convicção pessoal do senador Fernando Henrique, que não está em jogo. Devo dizer ao senhor Boris Casoy que esse nosso povo é religioso. Eu respeito a religião do povo, as várias religiões do povo, automaticamente estou abrindo uma chance para a crença em Deus.
Casoy - A pergunta não foi respondida. Não se trata de armadilha, nem de convicção pessoal.
O diálogo acima é famoso. Foi travado durante um debate feito a pouco dias da eleição para a prefeitura paulistana, em 1985. Jânio Quadros, que não estava presente, acabou eleito, para surpresa geral. A democracia engatinhava no país.
Hoje, 25 anos depois, podemos deduzir várias coisas dessa viagem no tempo. Uma delas: os progressistas eram menos cínicos. Quem entra no jogo eleitoral hoje está muito mais preparado para mentir. Sobre tudo, inclusive sobre Deus.
FHC foi pego de surpresa pela pergunta. Ela podia ser jornalisticamente legítima, mas a ele parecia evidente que a pauta (uma "armadilha") era politicamente regressiva. Isso também mudou muito.
A despeito das conquistas do país, a campanha hoje está sob o impacto de um intenso cerco conservador, sobretudo nos costumes.
Dilma parece disposta a fazer todas as concessões ao lobby religioso, o que é grave. Mas foi Serra quem arrastou esse cortejo do atraso para o centro da disputa política. Ao vestir a fantasia do neocarola, o tucano age mais ou menos como aqueles que acusavam FHC de ser ateu há um quarto de século.

-

&&&&

CARLOS HEITOR CONY

Bode expiatório

Fonte: folha.uol.com.br 15/10

A crônica é antiga e serve de advertência e castigo. Nunca se deve dizer: "Desta água não beberei"


NÃO SOU muito de ouvir rádio. Eventualmente curto um clássico em FM, mas prefiro meus CDs de sempre. No varejo, o rádio é apenas um eletrodoméstico como a geladeira e o liquidificador. Uso deles quando preciso -e pronto.
Outro dia, porém, o som do carro pifou, o CD não funcionava e o rádio ficou imóvel, ligado compulsoriamente a uma estação que transmitia um debate, justo na hora em que me deslocava para o trabalho.
São dois jornalistas que entrevistam personalidades sobre diversos assuntos: falta de urbanização nas favelas, diálogo Sul e Norte, poluição dos rios, extinção de espécies animais no polo, democratização do ensino, índice de cálcio no leite, pletora nos serviços postais por ocasião do Natal, programa nuclear, futura transposição do São Francisco, pedágio nas estradas federais, a cárie no povo brasileiro, atendimento hospitalar, democratização dos cemitérios, violência nas grandes cidades, miséria nas pequenas cidades, reestruturação da carreira das bibliotecárias, os novos regulamentos da Fifa, política de habitação, invasão de favelados, rumos do cinema nacional, demarcação de terras indígenas, ética na publicidade, a pirataria no mercado fonográfico, racionalização da alimentação para o brasileiro, a influência das Comunidades Eclesiais de Base, lições da última Copa do Mundo, a mortandade de peixes na lagoa Rodrigo de Freitas, a estética de Ipanema, a crise no mercado de trabalho, a necessidade de um novo acordo ortográfico da língua portuguesa -enfim, a pauta é variada e fornida de palpitantes temas.
Como o programa dura mais do que a minha viagem até o trabalho, fico apenas informado de angustiantes problemas nacionais e internacionais, mas nunca ouço as soluções nem tomo conhecimento das conclusões.
A princípio, a pauta que enunciei, linhas atrás, poderia dar a impressão de ser um programa eclético. Engano letal: é monótono porque os jornalistas que fazem a mediação, ou seja, que conduzem os assuntos e os entrevistados de diversas áreas, já superaram a fase das vãs inquietações de qualquer mortal.
Já detectaram o bode expiatório, a besta negra do nosso tempo e de nossos problemas: é o sistema. Note-se: não é o governo, pois muitas vezes o entrevistado é ministro ou funcionário graúdo do governo, são feitos rapapés às autoridades. Mas o sistema termina sempre como réu.
Os carteiros são obrigados a distribuir 10 mil cartas por dia em 500 logradouros públicos. Ganham pouco, não têm mordomias nem taxa de insalubridade. O culpado é o sistema burguês que tumultua a vida desses funcionários, sobretudo por ocasião do Natal, inflacionando as caixas postais com mensagens natalinas.
Há evasão de renda nos postos que cobram pedágios nas estradas. A culpa é do sistema, porque o funcionário precisa do dinheiro para comprar o leite das crianças. O Brasil votou a favor de um programa que vai salvar os pinguins do polo Sul da progressiva extinção, a culpa é do sistema porque esse dinheiro a ser empregado poderia ser economizado se houvesse uma mentalidade (do sistema) que impedisse, desde a era glacial, que os pinguins entrassem em extinção. Finalmente, ninguém precisa se inquietar com o preço dos livros escolares: a culpa é do sistema que encarece o produto a fim de manter o povo na ignorância.
Como se vê, o sistema é culpado de tudo, inclusive desta crônica sem inspiração e deste desabafo sem razão. Pensando bem, eu que sempre me considerei culpado de alguma coisa, descubro, maravilhado, que afinal sou integralmente inocente.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/images/ep.gif



A crônica acima é antiga, aí pelos anos 80, e para mim serve de advertência e castigo. Nunca se deve dizer: "Desta água não beberei". O tempo passou e, de dez anos para cá, mantenho com o Artur Xexéo um programa diário na CBN, onde faço ou pretendo fazer a mesma coisa que critiquei nos outros. Tenho péssima dicção e nem sempre domino o tema em debate. Do terremoto no Haiti aos mineiros no Chile, sei pouquíssima coisa. Entro então com o chamado "senso comum", repetindo os que me antecederam e aqueles que certamente me sucederão. Culpando o sistema, qualquer sistema, terei sempre razão.

Nenhum comentário: