DIREITOS HUMANOS - 14/10/2010
Baltasar Garzón diz que sua condenação atinge vítimas da ditadura
UNB.BR 14/10
Juiz que prendeu Augusto Pinochet em 1998 foi suspenso após tentar apurar crimes cometidos pela ditadura espanhola. Em palestra na UnB, falou da justiça transnacional e do direito à memória e à verdade
"As lágrimas do juiz Garzón são as minhas lágrimas. Há anos, tomei conhecimento de uma notícia que foi uma das maiores alegrias da minha vida: a acusação a Pinochet. Este meio-dia recebi outra notícia, esta das mais tristes e desesperançadas: que quem se atreveu com os ditadores foi afastado da magistratura pelos seus pares. Ou melhor dito, por juízes que nunca processaram Pinochet nem ouviram as vítimas do franquismo. Com o afastamento de Garzón, os sinos, depois do repique à glória que farão os falangistas, os narcotraficantes, os terroristas e os nostálgicos das ditaduras, voltarão a dobrar por finados, porque a Justiça e o Estado de Direito não avançaram, nem terão ganho em transparência. E quem não avança, retrocede." José Saramago, escritor português, morto em junho de 2010
Saramago chorou ao saber que a Suprema Corte espanhola censurara e calara o magistrado espanhol que transformou ditadores em condenados. Na noite de ontem, a Universidade de Brasília entendeu o choro do escritor português. Num lotado anfiteatro 12, o juiz Baltasar Garzón defendeu com ênfase os direitos humanos e citou com discrição seus próprios direitos. Ensinou sobre as diferenças entre vingança e reparação, explicou a necessidade da universalização da Justiça e falou da importância da revelação do passado para a construção do futuro.
Em quase três horas de debate com estudantes e professores, Garzón elogiou disposição da plateia, falou muito sobre as vítimas do autoritarismo político no Brasil, na América Latina, na África, mas disse pouco, muito pouco, sobre a intolerância de quem o silenciou. "É delicado falar da minha situação pessoal, mas, de fato, se prevalecer a decisão da Justiça de meu país de me afastar da magistratura, serei impedido de julgar os crimes cometidos durantes o franquismo, e perderemos, assim, o direito à memória", disse o juiz, principal responsável pela prisão do ex-ditador chileno Augusto Pinochet, em 1998.
Garzón foi suspenso de suas funções em maio deste ano, acusado de denunciar crimes cobertos pela lei de anistia espanhola. O presidente da Suprema Corte espanhola, Luciano Varela, entendeu que Garzón não tinha autoridade para investigar os casos de 150 mil pessoas desaparecidas no governo ditatorial do general Francisco Franco, de 1939 a 1975. O homem que prendeu Pinochet e denunciou Osama Bin Laden foi impedido de continuar sua luta pelos direitos humanos exatamente quando decidiu lutar para revelar o passado de de seu próprio país.
Na noite desta quarta-feira, 13 de outubro, mais de 200 professores e alunos lotaram o Anfiteatro 12 para ouvir o homem que ousou enfrentar o silêncio dos torturadores. Garzón veio falar sobre o direito à memória e à verdade, convidado pela Universidade de Brasília e pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos da presidência da República.
Antes de chegar à UnB, encontrou-se com o presidente Lula no Palácio do Planalto. Falaram principalmente sobre política e a ascensão da direita nos parlamentos europeus.
No Anf 12, sentou-se à mesa acompanhado do reitor José Geraldo de Sousa Junior, do ministro da Justiça, Luiz Barreto, do ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos da presidência, Paulo Vannuchi, e do senador Pedro Simon (PMDB-RS). O reitor apresentou o conferencista como aquele que "criou um espaço globalizado para prevenir violações de direitos humanos". E afirmou que ali se discutia uma realidade que não é exclusiva do Brasil, "mas que tratamos de forma paroquial".
O ministro Paulo Vannuchi lembrou que o Brasil não cumpriu os passos recomendados pelas Nações Unidas para se fazer a transição entre uma ditadura e o regime democrático, como fazer a investigação rigorosa do período. "Temos ainda que criar a comissão nacional de verdade, que depende de aprovação do Congresso Nacional", afirmou.
Na sua palestra, Garzón reconheceu que nunca esteve em uma sala de aula tão cheia. Afirmou que o núcleo dos direitos humanos é o direito das vítimas. "Essas são íntegras em sua dignidade. Quem perde a dignidade são aqueles que dificultam as investigações dos crimes", disse. Ele lembrou que as leis de anistia foram instrumentos utilizados de forma generalizada pelos países que enfrentaram longas ditaduras. E que essas leis não podem proteger aqueles que cometeram crimes contra a humanidade, pois são ofensas à comunidade internacional. "O titular dos direitos humanos não são os Estados, mas a comunidade internacional. São indisponíveis por qualquer estado ou tribunal".
Ele classificou o desaparecimento de cidadãos que lutaram contra governos autoritários como "crimes permanentes", uma vez que eles permanecem sem solução – até hoje não se sabe o que aconteceu com muitos deles. "Os parentes das vítimas precisam dos documentos oficiais para reaver a memória e buscar a justiça, para só então pensarem em uma reconciliação", disse o juiz. "Para se construir o presente e o futuro, precisamos conhecer o único tempo a que temos acesso: o passado".
Depois de quase três horas palestra, Garzón concedeu uma breve entrevista à UnB Agência:
UnB Agência: O senhor considera que seu afastamento da Justiça espanhola é uma violação aos direitos humanos? A decisão não roubou das vítimas o direito à memória?
Baltasar Garzón: Meu afastamento foi uma conseqüência das ações que venho praticando em defesa dos direitos humanos. O objetivo foi produzir uma paralisação da investigação criminal. Se sou absolvido, as investigações continuam. Se sou condenado, extingue-se a possibilidade de se investigar os crimes cometidos durante a ditadura de Franco.
UnB Agência: Desde a prisão do ex-ditador chileno Augusto Pinochet, em 2001, o que mudou na defesa dos direitos humanos?
Garzón: Creio que houve uma revisão da aplicação da justiça universal, da necessidade de se combater essas violações. Outros países iniciaram ações similares. No Chile e na Argentina, por exemplo, abriu-se as portas para que fossem ativados os mecanismos em defesa da memória e da verdade.
UnB Agência: Recentemente, o Supremo Tribunal Federal brasileiro ratificou a lei de anistia de 1979, protegendo os agentes da repressão política. Depois dessa decisão, em que frentes os militantes de direitos humanos podem agir para desvendar os crimes ocorridos na ditadura?
Garzón: Acredito que devemos esperar a reunião da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Creio que ali teremos indícios de princípios aos quais a decisão da Suprema Corte brasileira terá que se ajustar. Qualquer norma do direito deve se adequar à lei internacional. Além disso, como jurista, sinto que posso criticar uma decisão judicial. E quando se trata de interpretação de leis, acho que não devemos fazer uma intrepretação regressista quanto aos direitos humanos, mas sim conseguir resoluções que sejam contundentes e que não comportem qualquer tipo de rechaço. Dizer que não somos capazes de suportar o peso da memória é duvidar dos próprios alicerces da democracia, se avançamos ou não nos princípios democráticos. O importante é a consolidação democrática do sistema para que se abram os arquivos.
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