sábado, 18 de setembro de 2010

“Produzo trabalho, não arte”
correioweb.com.br


Com mostra em cartaz no CCBB, o cineasta português critica modelo hollywoodiano e defende a “mistura” entre diretor e ator

A fala pausada, quase sussurrada, pode provocar a impressão de que Pedro Costa escolhe palavras brandas. É uma aparência enganosa. A relação que o diretor de 51 anos mantém com o cinema remete à época em que este lisboeta grisalho atuava como músico, no turbilhão do movimento punk. O discurso logo se revela tão franco e pontiagudo quanto um refrão do Sex Pistols, uma das bandas que ouvia no auge da cinefilia, enquanto atuava como músico e devorava filmes de autores como John Ford, Yasujiro Ozu e Jean-Luc Godard.

Hoje, Costa aplica o inconformismo para registrar o cotidiano de miseráveis, de imigrantes — especialmente dos moradores de Fontainhas, em Lisboa. Desde No quarto de Vanda (2000), premiado em Cannes, filma com uma mesma trupe (de não atores) e confunde radicalmente os limites entre documentário e ficção. Os planos longos e silenciosos podem provocar desconforto — mas assistir a um filme, para Costa, também exige trabalho.

Em cartaz até o dia 26 no CCBB com a mostra O cinema de Pedro Costa, o diretor de Juventude em marcha (de 2006, exibido na competição de Cannes) não esconde a insatisfação com o modelo industrial propagado por Hollywood. Em visita a Brasília, conversou com o Correio sobre um cinema difuso, esculpido pela convivência — obras que apontam para uma forma econômica, direta e mais verdadeira de projetar imagens em grandes telas. Sempre na contracorrente. “O mundo do cinema é muito corrompido. Não recomendo a ninguém”, resume.

Você costuma afirmar que o seu cinema é feito de trabalho e resistência. Como essas duas forças atuam nos filmes?
Quando comecei a filmar com as mesmas pessoas, no mesmo local, ficou mais fácil pensar no aspecto prático do cinema. Parei de quebrar a cabeça com problemas estéticos e questões que talvez não tenham tanta importância. Antes, eu pensava de outra forma: imaginava o filme no meu quarto, escrevia num papel e depois aplicava aquilo que estava escrito. Era sempre eu, eu, eu. Nessa nova fórmula que encontrei, parece-me que estou próximo de um ofício. Cinema — e a arte, em geral — é uma coisa fechada sobre si própria e, por vezes, não dá a impressão de ser um trabalho. Costumo dizer que agora o que produzo é trabalho, não é arte. Isso tem a ver, obviamente, com resistência. A feitura dos meus filmes resiste ao padrão normal, que é sempre inflacionado. No cinema, há muito desperdício, muita coisa supérflua, muito trabalho em vão.

Você se considera autor dos seus filmes?
Uma das críticas que eu fazia a mim próprio é que, no filme, eu via mais de mim do que das pessoas que eu queria filmar. Isso acontece com muitos cineastas e artistas. Agora vou na direção contrária. Não é propriamente um apagamento, em que a coisa resulta anônima. Mas quem sabe? Tenho admiração por um cinema norte-americano clássico dos anos 1940, 1950. Era um cinema B, de segunda linha. Muito concentrado, econômico. Aprecio os cineastas-autores. Mas sinto que, para mim, a direção mais produtiva é tentar chegar a qualquer coisa mais difusa, coletiva. Não saber quem inventou determinado diálogo… É uma mistura. Além disso, é uma forma de segurança. Meus filmes são muito ancorados na realidade. Se filmar de outra forma, posso perder o pé. Posso passar uma espécie de fronteira que não é a realidade, e sim uma invenção.

No trabalho e na convivência com os atores, como descobre que tem um filme pronto?
Essa questão de chegar ao fim é mais complicada. Nos últimos filmes que fizemos, não há roteiro. Há um ponto de partida, uma colagem de várias coisas, uma ideia. Depois é uma espécie de cavalgada com contribuições de várias partes. Normalmente, as coisas se casam bem. Mas, como não há roteiro, as histórias são intermináveis. É vida real, e isso envolve a saúde das pessoas envolvidas no filme. Estamos começando um filme e temos um problema porque Ventura, o ator, está doente de uma maneira que, nos parece, não é passageira. A doença vai se arrastar. Ele tem menos energia, tem que ficar sentado. Isso vai determinar os filmes que vamos fazer. No fundo, são os limites que fazem os filmes. Eu gosto desses limites. Até preciso deles para não delirar demais.

Você sente que acompanhará os seus atores por um bom tempo?
Creio que sim. A princípio, não pensei que seria uma relação tão longa, com tantos projetos. Eu achava que só havia um Ventura, uma Vanda, uma pessoa especial. Hoje, não. Todas as pessoas podem fazer um filme. Não há somente uma história para contar.

Para garantir liberdade, usar câmeras digitais foi determinante?
Foi uma sorte. Começou a acontecer no momento em que eu queria mudar algumas coisas. É um material ligeiro. Há um lado muito prático. No bairro em que filmamos, ao longo dos anos, as pessoas começaram a comprar câmeras iguais às minhas. Eles têm o equipamento que eu tenho e que cabe na minha bolsa. Portanto, não é nada de estranho estar filmando algo pelas ruas e passar um outro com uma câmera e dizer: “Venha filmar o casamento da minha filha, você que sabe como fazer”. E eu vou. Eu sirvo para tudo. Casamento, batizado…

Seu cinema seria uma reação do digital para produzir imagens muitas vezes frenéticas?
Tudo isso tem a ver com a minha formação, que é ligada a um cinema muito clássico. O cinema que acho mais forte continua sendo o dos primeiros anos. O cinema mudo, que vai de 1915 a 1930. São filmes de uma invenção extraordinária em todos os níveis. Não falo só da imagem, da plástica, mas dos sentimentos. É muito fácil provar isso. É só exibir um filme de Murnau ou de Fritz Lang para um grupo de jovens de qualquer lugar do mundo. Com certeza, eles ficarão perturbados. Não por achar uma chatice. É que é muito complicado para eles. É o contrário dessa rapidez. Os sentimentos são exacerbados. É como se fosse outro mundo. Além disso, um plano fixo pode ser mais violento e veloz do que uma câmera que não para de se mexer. Luto um pouco e resisto contra a inflação do cinema. O mais, mais, mais. É um reflexo da nossa sociedade. Por que não parar um pouco? Tudo tem um fim. Nós temos um fim. Nosso corpo tem um fim. As coisas têm limites. Eu sou por um cinema que respeita seus limites.

Do cinema comercial, se cobra filmes que agradem ao público. O cinema está muito submisso às vontades do espectador?
Fazer algo para que uma pessoa goste é muito pretensioso. Não sei. Tudo isso tem a ver com resultados, dinheiro. As pessoas têm medo. Há filmes que são uma contradição com a realidade. Não digo que são histórias em cor-de-rosa. Por vezes, pensam ser filmes sobre a realidade. Mas são contraditórios. É tudo medo. Desse mundo do cinema que conheço um pouco, posso dizer que não há muita coisa verdadeira. É um mundo corrompido. Não aconselho a ninguém.

O seu cinema não vê limites entre ficção e documentário. Existe uma resistência no cinema mundial em permitir que os gêneros se misturem?
Está cada vez pior. Acho que isso vem até das escolas de cinemas, mesmo as respeitadas e sérias. São elas que fazem uma espécie de separação. É como dizer: “Atenção, essas coisas não se tocam. Há regras diferentes para cada gênero”. É assustador. Um dia, acompanhei uma filmagem de alunos da Escola de Cinema de Lisboa. À certa altura, um aluno estava enrolando um cabo e outro garoto veio ter com ele: “Não faça isso. O senhor professor disse que o diretor do filme nunca pode arrumar os cabos”. Eu fiquei escandalizado. Nós sentimos o que é um documentário e o que é uma ficção. O que é interessante é que as duas coisas se confundam. Em qualquer realidade há ficção, há delírios. Em qualquer ficção há um fundo de realidade também. Eu nem penso muito nisso. Me limito a avançar com os filmes.

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