quinta-feira, 6 de maio de 2010

O triplo Supremo (correioweb.com.br 06/05 )

Joaquim Falcão
Professor de direito da Fundação Getulio Vargas (Rio)


Desde a Constituição de 1988, o Supremo julgou mais de 1,2 milhão de processos disponíveis em seu site. Desses, analisamos 920 mil na base de dados, que, sob o comando de Pablo Cerdeira, a Direito Rio da Fundação Getulio Vagas está constituindo. Verifica-se então que pouco mais da metade (cerca de 465 mil) se referem a recursos extraordinários, e a outra metade às demais 88 classes processuais.

O dado surpreendente é que, diante da amostragem de 372.916 processos, ou seja, mais de 80% de todos os recursos extraordinários julgados pelo Supremo desde a Constituição de 1988 — amostra excelentemente representativa — cerca de 25% dos recursos oriundos do STJ são julgados procedentes. Ou seja, o STF corrige 25% das decisões do STJ e demais tribunais. Há, pois, expressiva dissintonia entre o que é legal para o STJ e o que é justo para o STF e os tribunais inferiores. Quais as consequências para a administração judicial dessa dissintonia?

Desde a origem, o Supremo foi um tribunal de múltiplas naturezas. De um lado, é corte constitucional e julga, como a americana, ações de controle concentrado, que valem para todos, independentemente de terem entrado com ações judiciais ou não. É corte constitucional, política, no sentido clássico do conceito. De outro, por meio desses recursos extraordinários, é como corte que julga os recursos das decisões dos tribunais inferiores, STJ sobretudo. Julga se mantém ou modifica a decisão, analisando caso a caso, sua decisão valendo somente para as partes envolvidas.

Na Constituinte de 1988, a proposta era termos o Supremo apenas como Corte Constitucional, que julgaria somente ações de controle concentrado, e o STJ, que julgaria as ações, inclusive quanto à constitucionalidade. A proposta não passou. O STF acumulou duas competências. Duplo Supremo. E o STJ ficou com a competência de apenas julgar a legalidade.

A Emenda 45 aumentou o poder do Supremo, agora é corte suprema administrativa também, pelo poder de revisão das decisões do CNJ. Tem o que nunca dantes teve: ao apreciar os mandados de segurança contra o CNJ, define a política administrativa do sistema de administração judicial. O CNJ viabiliza uma espécie de fast track, via expressa entre o cidadão, usuário do Judiciário, e o STF. Se antes o Supremo era duplo, agora é triplo.

Uma das críticas que os opositores do CNJ fizeram por um tempo é que ele teria aumentado a já pesada carga dos ministros do STF. Não poderia ser diferente. Não há bônus sem ônus. O poder do STF foi acrescido via CNJ. Antes o Supremo praticamente só apreciava a política de administração judicial por meio dos recursos extraordinários, com decisões apenas para este ou aquele tribunal ou magistrado. Agora, pode mais. Abrange a todos os tribunais, sobretudo quando aprecia os atos normativos do CNJ.

Diante desses dados, o STF reforma 25% das decisões do STJ — Diego Werneck identifica duas funções para a crescentemente famosa súmula vinculante. Por um lado, com ela, o STF tenta impedir na origem, nas instâncias inferiores, recursos protelatórios e agilizar a prestação jurisdicional. Por outro, a súmula vinculante exerce indispensável função de política jurídica para o STF. Trata-se de “uniformizar” as decisões dos tribunais inferiores, fazer da sua decisão a decisão final. Inclusive as decisões administrativas.

O fato é que, se os recursos extraordinários, assim como os mandados de segurança contra o CNJ, atrasam a palavra final e sobrecarregam o STF, parecem indispensáveis para impor a palavra final. Os dados demonstram. Um jovem estudante da FGV Direito Rio levantou uma explicação possível para a dissintonia: se houvesse maior solidariedade dos tribunais inferiores em torno dos valores de lei e justiça, a sobrecarga no Supremo seria menor. Ou seja, muitas vezes no Judiciário a cultura jurídica de prática do dissenso prevalece sobre a da busca do consenso. Será?

CONTARDO CALLIGARIS

Você prefere os obedientes ou os rebeldes?

FSP 06/05


Os pais preferem lidar com um filho revoltado a imaginar que ele tenha uma vida servil




VOLTEI AO presídio feminino do Butantã, em São Paulo, para ser jurado de um concurso de miss atrás das grades, com três premiações: Miss Cultura, Miss Simpatia e Miss Beleza.
No concurso de beleza, a administração decidiu que seriam premiadas cinco mulheres, sem hierarquia. Foi uma ótima ideia. A eleição de uma miss sempre deixa a impressão de que exista um único cânone de beleza. De fato, as cinco mulheres premiadas eram bonitas de maneiras muito diferentes. Mas, sobre a diversidade da beleza, escreverei outro dia.
No concurso de Miss Simpatia, o júri só podia se deixar contaminar pela torcida da plateia. Afinal, simpatia é também saber conquistar amizades, muitas amizades.
Mas vamos ao concurso de Miss Cultura. Cada uma das sete finalistas produziu uma redação sobre um dos temas que tinham sido propostos pelos organizadores. Nós, do júri, recebemos as redações, lemos, ponderamos e, no dia do concurso, escutamos as candidatas lendo seu texto e, eventualmente, respondendo às nossas perguntas.
Os próprios temas levaram as mulheres a falar de seus planos de futuro, do uso que elas fizeram ou fariam do tempo de detenção, do arrependimento, da saudade etc. Com isso, era quase inevitável que as considerações das concorrentes fossem sempre muito próximas ao que a sociedade espera que um detento pense e declare. Mas, cuidado, não há crítica alguma nessa minha observação, até porque nada do que as candidatas escreveram soava fingido.
Então qual é o meu problema? Eu preferiria que as candidatas se mostrassem revoltadas e agressivas? Claro que não. No entanto, ao ler as redações, eu me preocupava, paradoxalmente, com a rebeldia das autoras, como se ela fosse uma qualidade que não poderia se perder, que, mesmo numa penitenciária, deveria ser preservada. Que loucura é essa?
Pois bem, é uma loucura absolutamente banal, uma loucura própria de nossa cultura. Se não fosse por ela, aliás, a tarefa dos pais e dos educadores seria imensamente mais fácil. Explico.
Todos queremos que filhos ou alunos respeitem nossa autoridade. Agora, todos também consideramos que nossa tarefa de pais ou educadores só será cumprida quando filhos e alunos pensarem por conta própria, ou seja, quando eles sejam capazes de desconsiderar nossos conselhos e desobedecer a nossas ordens.
Seria cômodo se, como nas sociedades tradicionais, a gente dispusesse de ritos de passagem sancionando a entrada na idade adulta: aos 15 anos e um dia, saia sozinho pela savana, armado de uma lança, e só volte tendo matado seu primeiro leão. A partir de então, você será autônomo.
Infelizmente, para nós, o tempo de se tornar adulto se estende sem limites definidos: não sabemos quando ele acaba e, mais problemático ainda, não sabemos quando começa. Consequência: pais e educadores podem sofrer, exasperados pela rebeldia de moleques e meninas incontroláveis e, ao mesmo tempo, deliciar-se ao relatar as travessuras de filhos e alunos. Qualquer terapeuta já atendeu pais "desesperados" com a insubordinação dos filhos, mas que, de repente, abrem um sorriso extasiado na hora de contar "o horror" que é sua vida com esses descendentes que os desrespeitam.
Eis o problema que torna educar quase impossível, em nossa cultura: a autonomia, para nós, é um valor tão importante que ela precisa ser confirmada pela desobediência. Com isso, qualquer pai prefere, no fundo, lidar com um filho revoltado a imaginar que o filho possa ter uma vida servil e, portanto, medíocre.
Os santos mais respeitados são os que foram grandes pecadores e descrentes (Agostinho, Francisco, o próprio Paulo etc.). No imaginário cristão, aliás, uma conversão tem mais valor do que a fé de quem sempre acreditou. A parábola do pastor que deixa o rebanho para procurar a ovelha perdida sugere que, assim como a gente, talvez Deus prefira os rebeldes.
Uma anedota. Em maio de 1969, no átrio da Universidade de Genebra, junto com amigos anarquistas, eu distribuía panfletos criticando a iminente visita do papa à cidade.
Um professor, passando por nós, perguntou-me: "Será que o senhor tem uma autorização para distribuir esses panfletos?". Respondi imediatamente: "Senhor, tenho muito mais do que uma autorização, tenho uma proibição formal".
Fato coerente com o que acabo de argumentar, ele achou engraçada minha impertinência e deixou que continuássemos.

CARLOS HEITOR CONY

Cinema e saúde

FSP 06/05

RIO DE JANEIRO - Considerado hoje como a sétima arte, o cinema teve origem mais modesta, quando foram projetadas, na parede de um prédio em Paris, algumas cenas da chegada de um trem a Vincennes. Pouco depois, outras cenas documentais foram exibidas: a entrada de operários numa fábrica e um sujeito fazendo ginástica no jardim de sua casa.
Na melhor das hipóteses, a brincadeira tinha tudo para se transformar numa atração dos parques de diversão, circos e mafuás. Somente aos poucos a nova linguagem transformou-se em vocábulos capazes de contar uma história, fazer um protesto, tornar-se uma arte que mistura romance, poesia e crítica.
Por isso mesmo, além de se tornar uma expressão de arte, o cinema é também um poderoso veículo de informação em todos os campos, sobretudo no da saúde. Basta lembrar a campanha de esclarecimentos sobre a qualidade de vida, a necessidade da camisinha e dos exames precoces para combater o câncer.
Devo ao cinema alguns momentos que tomei como referência de minha vida pessoal e profissional de escritor. Devo também ao cinema o alerta que me levou a um especialista que operou as minhas cordas vocais.
O filme contava a história de uma cantora que estava perdendo a voz e que se recuperou após uma cirurgia. Mesmo sem ser cantor, lucrei bastante quando voltei a falar normalmente, embora nem sempre tenha sido entendido.
Felizmente, ganho a vida com palavras escritas. Se fosse depender da fala, estaria vivendo na pior, debaixo de um viaduto e coberto por folhas de jornal -como aquele personagem que Noel Rosa eternizou.
Esse problema, que me acompanha desde a infância, é responsável por vexames que dei ao longo da vida. Não é culpa do cinema nem da medicina. É minha mesmo.

Democratização do acesso à banda larga

ROGÉRIO SANTANNA

FSP 06/05


Apesar do enorme potencial, a banda larga no Brasil é cara, lenta e concentrada nas regiões com alta renda e densidade populacional



O AVANÇO das políticas sociais e o crescimento econômico dos últimos anos possibilitaram ao país um papel de destaque na geopolítica internacional. Mais de 24 milhões de pessoas superaram a pobreza entre 2003 e 2008, e a classe C tornou-se a maioria da população, cuja participação passou de 43%, em 2003, para 53,6%, no ano passado.
Porém, apesar dessas e de outras conquistas, que melhoraram a vida do brasileiro e o grau de confiabilidade dos investidores estrangeiros, ainda não superamos o desafio de incluir os cidadãos na sociedade da informação e do conhecimento.
Para acelerar o desenvolvimento, precisamos massificar o acesso à internet. Sem ela, não há como desburocratizar os processos, eliminar o papel no âmbito do governo e das empresas e reduzir o custo do país.
Apesar do enorme potencial, a banda larga no país é cara, de baixa velocidade e concentrada nas regiões com alta renda e densidade populacional.
Isso ocorre porque a maioria desses serviços é prestada por apenas três empresas, que detêm 86% do mercado brasileiro e visam as classes A e B. As velocidades de banda disponibilizadas são, em 90% dos casos, inferiores a um megabit.
A banda larga é, hoje, o sistema nervoso da nova economia globalizada, e as barreiras que impedem o seu acesso universal retardam o crescimento do país. Situação ainda mais preocupante nas regiões Norte, Nordeste e naquelas mais afastadas dos grandes centros, que estão condenadas pelo mercado à desconexão eterna.
A disseminação dos serviços de governo e de comércio eletrônico depende dessa infraestrutura para atender igualmente a todos, em especial os mais pobres e mais distantes das regiões metropolitanas.
Como o governo vai cumprir seu compromisso social com os trabalhadores de garantir a aposentadoria em até 30 minutos, se a banda larga não estiver em todos os municípios? Como poderá massificar o uso da nota fiscal eletrônica com as atuais deficiências nessa área?
Dados divulgados pela NET Serviços mostram que a banda larga é competitiva em apenas 184 municípios brasileiros, onde vivem 83 milhões de pessoas, e que há monopólios em 2.235 municípios, nos quais residem 63 milhões de pessoas. Nos demais 3.145 municípios, o negócio é considerado inviável pela empresa.
A banda larga também permite a transmissão de voz, um serviço cada vez mais disponível de forma gratuita.
Diferentemente do que ocorre na telefonia tradicional, nesse ambiente a duração e a distância das chamadas não influem no preço, e sim a largura da banda contratada. Isso resulta da convergência digital, que está mudando as regras de tarifação.
Sem tirar o aparelho do gancho, o brasileiro já paga entre R$ 32 e R$ 42 pela assinatura básica de telefone fixo. Situação que ocorre não somente nos locais distantes, onde são necessários subsídios, mas também nas grandes capitais.
Se esse modelo tivesse sido aplicado para o acesso à internet, a rede mundial não teria se desenvolvido. É fácil deduzir que há uma resistência natural por parte das empresas telefônicas que retardam a migração de suas redes para o novo modelo.
Esse mercado já sofre reduções importantes a cada ano no mundo e nos países onde há grande disseminação da banda larga: voz representa só 30% do tráfego, enquanto no Brasil representa mais de 80%.
O pequeno número de cidades em que há concorrência na banda larga mostra que, sozinho, o mercado não irá resolver esse problema.
O Plano Nacional de Banda Larga permitirá acelerar o desenvolvimento do interior do Brasil ao reduzir em cerca de 70% o preço médio cobrado pelo serviço. Assim, será possível levar banda larga de baixo custo e alta velocidade a 4.278 municípios localizados em 26 Estados, mais o Distrito Federal, atendendo a 88% da população brasileira até 2014.
A meta é elevar o número de domicílios com internet do país dos atuais 13,5 milhões para 35 milhões no ano de 2014.
Aeroportos, portos e estradas são infraestruturas do século passado. A banda larga, que agora o Brasil tem a oportunidade de levar a todo o seu imenso território, é a única capaz de preparar a nação para enfrentar os desafios da modernidade.
A pior exclusão social é aquela que nega o acesso ao conhecimento porque dificulta o alcance de direitos fundamentais, como saúde e educação, e especialmente porque retira o direito de exercer a cidadania com plenitude.


ROGÉRIO SANTANNA é secretário de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento.

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