domingo, 8 de janeiro de 2012


O amado rei do livro.    Arnaldo Niskier
Doutor em educação, membro da Academia Brasileira de Letras e presidente do CIEE/Rio
Teremos um ano bastante rico em matéria de cultura. Haverá, em 2012, a comemoração de dois significativos centenários: o do Barão do Rio Branco e o de Jorge Amado, ambos pertencentes à galeria de imortais da Academia Brasileira de Letras. O escritor baiano, pela grande aceitação popular de seus livros, ultrapassou as fronteiras da literatura, tornando-se um dos autores brasileiros que mais tiveram a obra vertida para a televisão e o cinema. CORREIO BSB 08.01 


É difícil compreender o estilo de Jorge Amado por meio de interpretações sociológicas ou teorias afins: corre-se o risco de não se ter a exata definição da arte do escritor baiano. Também não terá sucesso quem fizer um paralelo entre seus livros e os fatos históricos ocorridos nos períodos em que foram escritos. Esses estudos críticos não levam em conta a liberdade de criação. Jorge Amado criou um estilo jorgeamadiano, totalmente pessoal, indo muito além de fundamentações teóricas, legando-nos obras inesquecíveis.

Cabe aqui um parêntese para falar do crítico Antônio Cândido, cujo livro Formação da literatura brasileira é considerado fonte de referência das mais confiáveis. Apesar de usar os acontecimentos históricos e sociais localizados nos períodos em que as obras foram escritas como critérios críticos para emitir suas opiniões, sobre Jorge Amado ele procurou realçar a força poética dos romances analisados.

O que vemos a seguir é uma declaração de amor de Antonio Candido, entusiasmado pela simplicidade do estilo do autor de Jubiabá: “Na nossa literatura moderna, Jorge Amado é o maior romancista do amor, força de carne e de sangue que arrasta os seus personagens para um extraordinário clima lírico. Amor dos ricos e dos pobres; amor dos pretos, dos operários, que antes não tinha estado de literatura senão edulcorado pelo bucolismo ou bestializado pelos naturalistas”.

Como se vê, trata-se de uma obra que consegue conquistar leitores e críticos com a mesma intensidade. Para Alfredo Bosi, a criação de Jorge Amado teve uma caminhada multifacetada no decorrer dos anos: iniciou com tintas de “romance proletário”, passou por depoimentos líricos, seguiu a cartilha da pregação partidária, se especializou na valorização da região cacaueira e, por fim, se estabilizou na produção de crônicas de costumes provincianos.

A obra do escritor baiano, adaptada para a televisão, obteve imenso sucesso de audiência. E um fato adicional engrandece ainda mais essa façanha: depois da exibição de cada uma das novelas, as edições dos livros se sucederam, revelando sinergia muito forte entre as duas mídias. Graças à transposição de seus livros para a televisão, foi revisto o mito, sustentado na época por alguns intelectuais, de que a televisão estragava o gosto pela leitura ou impedia a sua propagação.

Comprovei esse fato em 1995 quando, a pedido do então presidente da ABL, Austregésilo de Athayde, falei pela primeira vez na Casa de Machado sobre a existência de uma nascente literatura eletrônica, fato que hoje se tornou realidade, com a multiplicação de e-books, tablets, Kindles e outros recursos digitais.

Nas muitas viagens que fiz ao longo da vida, visitei bibliotecas de várias universidades, onde sempre encontrei versões dos seus romances. Não necessariamente dos 37 livros, mas a maioria deles, nas línguas locais. Foi assim em Seul, em Berkley, em Estocolmo, em Tóquio e em Telavive.

Ao lado de Pelé, Amado foi o brasileiro que mais trabalhou pela imagem do país no exterior. Se um é o rei do futebol, o outro pode ser considerado o rei do livro ou da palavra escrita. Um incomparável contador de histórias.
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Lá vai o Brasil, subindo a ladeira
Jaime Pinsky,  Historiador, professor titular da Unicamp, diretor da Editora Contexto
Na cultura oral, os contadores de história eram verdadeiros atores que relatavam episódios, reais ou imaginários, com dramaticidade, acentuando passagens emocionantes, criando suspense, a ponto de deixar insones os ouvintes, abalados com revelações e sugestões que a narrativa apresentava. Ainda encontramos resquícios dessa cultura no interior do país, mas ela se encontra em extinção, engolida pela TV, mais visual, acessível a quase toda a população. CORREIO BSB 08.01 

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Talvez a grande tragédia da cultura brasileira tenha sido passar, diretamente, da cultura oral para a digital. Quando, finalmente, o Estado passou a considerar essencial a alfabetização de toda a população (com qualidade muito, mas muito discutível mesmo, diga-se de passagem) já era tarde. A internet, com todos os seus produtos (e-mails, redes sociais, Twitter, Facebook), assim como a cultura dos torpedos em celulares, promoveu não apenas uma nova linguagem (até aí, tudo bem), mas um discurso sugestivo em vez de um outro argumentativo, portanto sem coesão ou coerência, sem fluxo narrativo, sem começo, meio e fim.

Sempre poderíamos argumentar que, para alguns, a frase curta, solta, é apenas uma forma a mais de expressão, que pode perfeitamente coexistir com outras. De acordo, mas isso só existe para os que antes aprenderam a estruturar o pensamento logicamente. Para a maioria, o discurso argumentativo não passa de uma forma antiga, superada, de comunicação entre os homens, uma espécie de pré-história que se confunde com redigir à mão ou com velhas máquinas de escrever.

É claro que a substituição das formas de comunicação tem a ver com um dos aspectos mais relevantes da vida moderna, a pressa. Comemos depressa, devoramos o nosso alimento em vez de degustá-lo mansamente. Amamos depressa e substituímos impacientemente nossa antiga paixão por outra, mais fresca, que, no entanto, não resistirá a nenhuma rusga, nenhuma crise. Usamos nossas roupas, nossos carros, nossos computadores, nossos celulares até que eles nos pareçam “superados”, não necessariamente por obsolescência real, mas psicológica. O novo, sempre o novo. Afinal, não é para isso que trabalhamos?

A sociedade de consumo venceu, o capitalismo darwinista (na expressão de Amós Oz), competitivo, produtor de mercadorias, venceu. Ironicamente, o país ícone dos comunistas até poucos anos atrás, a China, é o mais darwinista dos produtores de mercadorias com obsolescência programada (pela má qualidade dos componentes, ou pelo cansaço do usuário). A propaganda venceu, conseguiu convencer a todos de que seríamos infelizes, verdadeira e profundamente infelizes se não conseguirmos fazer dinheiro suficiente para comprar aquele produto ou obter aquele serviço que nosso colega, nosso amigo, nosso conhecido conseguiu.

Então, para que ler um livro de Tomas Mann, que tem centenas de páginas e exige um investimento intelectual mais sério, se podemos nos emocionar com capítulos de novelas cafonas e óbvias? E o mais grave é que elas preenchem nossas necessidades. Para que procurar um filme mais exigente, se consumimos os mesmos filmecos que nossos filhos pequenos gostam, os que escondem a inexistência de conteúdo por meio de uma forma cada vez mais elaborada, plágios não bem disfarçados de verdadeiros criadores? Nossa incapacidade de desfrutar de produtos intelectuais mais sofisticados pode ser percebida até na preocupação de lermos e enviarmos mensagens de celular no meio de uma sessão de cinema, ou da execução de um movimento lento de um concerto de Beethoven.

Tudo isso me vem à cabeça a partir de notícia veiculada no Jornal da Cultura (TV Cultura, São Paulo) desta última quarta-feira. Pesquisa feita com jovens da periferia de São Paulo, sem formação universitária, mostra que eles estão comprando automóveis e motos para seu transporte pessoal, para pagar em dois ou três anos. Triste governo, incapaz de dotar a cidade de uma rede mínima de transporte coletivo. Mas tristes garotos também. Perguntado sobre seus planos após terminar de pagar o carro, um deles não hesitou em afirmar: “Comprar um carro melhor”.

Despreparado, nem sequer cogita usufruir de bens culturais produzidos pela humanidade, mas acredita que sair metaforicamente da periferia é ter um carro como o de quem mora na área central da cidade. Como não sabe ler e compreender, sua consciência social limita-se à percepção de tuiteiro, a de que possuir é ser feliz. E assim vamos, valorosos e fortes, na frente da Inglaterra, em busca do cetro de maior economia do mundo.

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Bairros de classe média abrigam cracolândias privês
Traficantes alugam apartamentos e casas na Vila Mariana, Paraíso e Bela Vista para receber viciados FOLHA SP 08.01

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Em um espaço do tamanho de uma perua Kombi, seis homens dividem três cachimbos de crack feitos com antenas de TV e latinhas de alumínio.

Cinco deles estão sentados no chão. São iluminados por um lampião que contrasta com a janela de vidros escurecidos. O outro está em pé. Observa a cena ao lado da porta. Ali, não há móveis, tapetes, tampouco cortinas.

Passa das 16h de uma sexta-feira nublada em São Paulo. O ambiente descrito acima poderia ser em uma rua da cracolândia, na região central da cidade, mas não é.

Trata-se do interior de um apartamento de classe média na Bela Vista, a poucas quadras de um dos mais famosos corredores gastronômicos da metrópole, a rua Avanhandava. Lá, usuários de crack alugam a sala, o quarto e a cozinha com um único propósito: fumar a droga.

Com três celulares no bolso, um senhor cabisbaixo, aparentando ter 60 anos, era o responsável pela venda das pedras e também pelo aluguel do imóvel. Preço: R$ 10 (a pedra), mais R$ 10 pelo espaço usado para o consumo.

Antes mesmo da operação da Polícia Militar, que cercou a cracolândia na semana passada, a Folha percorreu, nos últimos seis meses, bairros como Vila Mariana, Bixiga, Paraíso, Penha e Bela Vista.

Nesses locais, a reportagem encontrou casas e apartamentos onde funciona um esquema até então desconhecido das autoridades, as cracolândias privês.

Dentro do apartamento da Bela Vista, o cheiro, uma mistura de tabaco, fumaça, óleo de lampião queimado e suor, é forte. Dois jovens estão alucinados. Acabaram de fumar a terceira pedra do dia. Entreolham-se e parecem apavorados, sem motivo aparente.

Um acaba de dar seu primeiro trago. Os outros três observam. Eles fumam cigarros. Esperam a vez para terem a sensação que tanto aguardaram após uma manhã inteira de trabalho em uma loja de informática ali perto.

As cracolândias privês são extremamente lucrativas e seguras para o criminoso. Ele ganha duas vezes: na venda da droga e na locação da área.

Para o usuário, a maioria homens de classes baixa e média, com idades entre 18 e 35 anos, de diferentes profissões, é algo discretíssimo.

Nesses ambientes, ele consegue fugir dos olhares de reprovação de moradores e também do controle policial.

Para entrar nesse submundo, é preciso ser apresentado por algum conhecido do traficante. Deve-se seguir a principal exigência do local, só consumir a droga vendida ali.

"Fique esperto, aqui não entra pedra [de crack] de outro lugar", alerta o traficante.

LUZ DE LAMPIÃO

A Folha visitou cinco imóveis, entre casas e apartamentos. Em dois deles, a reportagem entrou acompanhada de um usuário, em tratamento, que conheceu na cracolândia enquanto apurava outra história. Ele só aceitou apresentar o repórter às cracolândias privês porque diz estar indignado com a quantidade de jovens viciados na cidade.

À primeira vista, por fora, não é possível perceber que em qualquer um desses cinco lugares haja venda e consumo de drogas lá dentro.

Os apartamentos, na Bela Vista e no Bixiga, são iluminados por lampiões. Possuem pequenas brechas nas janelas, para não intoxicar quem está trancado lá. As portas permanecem quase o tempo inteiro fechadas.

Para ter acesso a eles, é preciso subir dois lances de escadas. Na sequência, deve-se comprar a "pê" (pedra de crack) vendida na própria escadaria e pedir que o vendedor autorize a entrada -vale registrar que o repórter não comprou a droga.

Já as casas, ou estavam abandonadas e foram invadidas ou haviam sido alugadas pelos traficantes por preços baixíssimos por conta de seu mau estado de conservação.

Elas estão na Vila Mariana, Paraíso e Penha. Os muros têm mais de três metros de altura. Os portões não têm brechas, o que impossibilita que alguém, do lado de fora, observe o que acontece ali.

A casa da Vila Mariana não é imunda como os cortiços fechados pela operação da polícia no centro paulistano.

A morada é simples. Fica em uma rua bem arborizada, próxima de um posto de gasolina, rodeada por prédios residenciais. Dentro dela, poucos móveis. Uma mesa e duas cadeiras na sala, onde ficam o "patrão" ou seu subordinado. Ao todo, são 11 cômodos improvisados, transformados em quartos, coletivos ou individuais. São divididos por finas paredes de madeira compensada.

Há dois tipos de cracolândia privê. Nos apartamentos, o usuário compra a pedra com o traficante e a consome em um dos cômodos.

Na outra, vive no lugar, chamado "mocó". Pode tomar banho, comer, dormir. O valor varia conforme a forma de pagamento. Adiantado em dinheiro, R$ 210. Se for pagar no fim do mês, R$ 300.

Um comentário:

Paula disse...

Obrigada por disponibilizar textos de alto nível! Um abraço