quarta-feira, 21 de abril de 2010

Dia do Índio: resistência frente às fases da colonização

ter, 20/04/2010 - 00:00 — Roberta Traspadini

Fonte; www.radioagencianp.com.br

“A vida do índio cativo não podia ser mais dura como cargueiro ou remador, que eram seus trabalhos principais. Pertencente a quem o apresasse, ele era um bem semovente, desgastado com a maior indiferença, como se isso fosse o seu destino, mesmo porque havia um estoque aparentemente inesgotável de índios para repor os que se gastavam”. (Darci Ribeiro, O povo Brasileiro)

Dia 19 de abril, dia do índio, relata na história do Brasil, a luta de um grupo em sobreviver em meio às brutais avalanches de seus opositores guerreando pela tomada de seus territórios, recursos, corpos e mentes, enquanto reais possuidores da memória viva do país.

Podemos considerar ao menos três fases de ressignificação, na luta, dos marcos da disputa do capital contra o trabalho no país.

Primeira fase: A bárbara colonização européia do território latino-americano. Este momento Paulo Freire retratou como o poder do opressor e as armas que o mesmo tem para oprimir seu principal oponente no território conquistado, na tentativa de diminuí-lo ou aniquilá-lo.

A marca deste período foi a da produção do ideal-real do colonizador, frente ao ideal-real processo de vida dos grupos residentes no continente até então.

Isto resultou intencionalmente tano na domesticação dos índios que conseguiam ser acorrentados à dinâmica de ser evangelizadora dos europeus, quanto na caça-morte dos índios que temporariamente conseguiam fugir.

A luta do índio na colonização do século XVI marca a sanguinária corrida dos países hegemônicos daquele então, de disputar o poder além mar, em pleno início do modo de produção capitalista europeu.

Segundo fase: A bárbara democratização da Pátria Amada instituída pela sua independência (1822) e posteriormente pela proclamação da República (1989). Este momento tão substantivo da construção da soberania nacional delegou, no discurso, aos índios a possibilidade de lutar, retomar, defender suas terras, culturas, seus domínios.

Entretanto, no marco geral de constituição da Nação, o grupo já era minoritário, e como tal com um poder restrito, segundo os detentores do poder do capital, à ação para dentro dele, mas jamais para fora na contestação de outra ordem que supunha outro progresso de natureza progressista, includente, solidária, presente.

Terceira fase: A bárbara democratização pós-ditadura. Esta fase garantida, por princípio, na luta pela dignidade da pessoa humana no que se consolidou como direitos humanos, permitiu aos índios tanto lutar por direitos, como garantir outros tantos anteriores à leitura institucional do poder.

O índio ganha, na revisão da constituição de 1988, seu verdadeiro papel de sujeito de direitos no País. Guardião dos históricos processos de resistência do Brasil, teria na constituição, garantias de posse-uso, cultura, autonomia, entre outros, dada sua inquestionável trajetória histórica de se manter vivo e protetor dos processos nacionais, ao longo do caminhar histórico de lutas do povo brasileiro.

São três fases em que se diagnosticam as formas-conteúdos da barbárie dos proprietários privados do capital, contra estas minorias.

Os índios, minorias em números e maiorias, junto com negros e camponeses, em conhecimentos populares tradicionais sobre territórios, espaços, vidas em sustentabilidade, são produtores de uma visibilidade que o capital tenta, com os recursos que estipula em cada época, destruir.

Raposa Serra do Sol, Monte Belo, Aracruz, Transposição do São Francisco, entre outros projetos de desenvolvimento de olho na ordem e no progresso das transnacionais, são na realidade, territórios e espaços de resistência dos sujeitos políticos que tentam lutar por seus direitos, em plena era da parceria público-privada (PPP), isto é, do Estado mínimo para os interesses dos grupos sociais-populares e máximo para os interesses privados do capital (in)ternacional.

São mais de 500 anos de história de resistência, aprendizagem na luta e reivindicação de direitos, em uma sociedade que foi sendo (des)educada para lutar. Luta por direitos em uma sociedade que foi sendo educada, via domesticação, para aceitar o que pode ser, dado o que projetaram para ela, e não para fazer acontecer o sonho coletivo de produzir um outro sentido de Brasil, de Nação.

São mais de 500 anos de luta de uma minoria índia que, como grupo social, nos constitui como povo brasileiro, cujo sentido popular é o de resgatar o que continua produzido historicamente dentro de seus territórios e para além dele, em meio à brutal invisibilidade de seus processos na esfera social.

São mais de 500 anos de herança histórico-social do ser índio que, ainda quando esteja territorialmente próximo de nossas moradias, enquanto ser coletivo, pertencente ao mesmo projeto de Nação, está adormecido como processo que nos constitui há séculos.

Vivemos em territórios com várias evidências desta morte anunciada pelo capital de uma cultura e sua resistência evidenciada em seus processos de luta cotidiana.

Alguns elementos chaves que recuperam nossas raízes materializadas neste jeito de ser índio brasileiro são:

os nomes tupis-guaranís e das demais raízes índias com os quais nos deparamos diariamente;

as culturas e expressões de vida que foram apropriadas no todo social mas que são particulares destes grupos;

as heranças na pele da descendência destes povos;

o jeito de ser próprio deste grupo em meio à sociedade de consumo padronizada pelo capital no seu modo de operar de forma cada vez mais globalizada no local.

O dia do índio deve servir para os índios de marco de luta ao longo de seu caminhar histórico. Para nós, este dia deve demarcar o terreno que, enquanto esquerda, temos que recuperar de nossas lutar particulares na produção de um projeto popular que consiga considerar o todo sem matar sua raiz, a parte substantiva dos vários jeitos de ser que nos constituem. Parte expressiva que nos reconhece nos múltiplos processos de produção de vida que nos caracterizam.

A guerra histórica se refere ao modelo de desenvolvimento pautado para o Brasil cuja ordem do progresso é a do capital subordinando, explorando, contrariando a riqueza e o sentido do trabalho, tanto do índio, quanto do negro, da mulher, da criança e dos trabalhadores em geral.

Que o dia do índio, como o do negro, o abril vermelho e as demais lutas nos permitam, como classe trabalhadora, ressignificar a urgência de uma unidade popular da esquerda que lute contra o direito individual da propriedade constituído para aniquilar o direito constitucional. E que este direito social, na transição rumo a outro mundo necessário e possível, sirva para além de proteger, recuperar nosso real sentido de ser, pertencer, enquanto povo brasileiro.

OS BRIC E NÓS

Por Delfim Netto

Fonte: Valor Econômico 20/04

Na semana passada, nesta mesma coluna tivemos a oportunidade de fazer ligeiras considerações sobre a precariedade das projeções de longo prazo da evolução do PIB dos Bric, medidos em dólar de valor constante. Relembramos o fracasso de todas as ” previsões ” de longo prazo feitas nos anos 60 do século passado e enfatizamos a precariedade das ” previsões ” sobre o comportamento nos próximos 20 anos das economias abrigadas no acrônimo Bric. Com as ” previsões ” correntes, os Bric não caberão no mundo projetado para 2020.

A tabela nº 1 abaixo mostra isso. Na sua construção foram usadas: 1º ) taxas de crescimento constante entre 2010/2020: Brasil, 5%; Rússia, 6%; Índia e China, 8%, comumente assumidas nas alegres visões do futuro com que somos bombardeados e 2º ) a hipótese que a economia mundial vai continuar a crescer à uma taxa real histórica de 3% ao ano.

Salta aos olhos que a conta não fecha. Se o ” Resto do Mundo ” continuar a crescer 3% ao ano, o que faz sentido, para que os Bric possam crescer na média 7,5%, seria preciso que ele crescesse a apenas 0,4% ao ano. De fato, como a população do Resto do Mundo cresce 1% ao ano, o seu PIB per capita deveria reduzir-se de 0,6% ao ano!

O que acontece quando se impõe a condição que o Resto do Mundo continue a crescer à taxa de 3% ao ano? A tabela nº 2 revela:

A resposta é que a economia mundial deveria acelerar o seu crescimento de 3% para 4,4% ao ano. Diante da realidade que vivemos: 1º ) a óbvia e crescente escassez de recursos no nível mundial e 2º ) a interferência antropomórfica no aquecimento global do planeta, será essa uma hipótese razoável? Claramente não, a não ser diante de uma tremenda revolução tecnológica que acreditamos está fora do horizonte de 20 anos.

O entusiasmo com os Bric é tal que, com frequência, vemos afirmações que revelam a ” esperança ” que eles poderão bastar-se a si mesmos, independentemente do que ocorre com a economia mundial. Os Bric são uma ideia interessante, mas é claro que eles não constituem um grupo com interesses homogêneos.

De fato, suspeitamos que a Rússia é um elemento estranho ao ninho. A China com seus 5.000 anos de civilização e o pragmatismo filosófico que ” não importa a cor do gato desde que ele pegue os ratos ” , agarrou-se com coragem e inteligência às possibilidades abertas para a importação pelos EUA de produtos fabricados na China com capital de empresas americanas. Não deixou de aproveitar nenhuma oportunidade: foi integrada ” estrategicamente ” como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Construiu sua bomba atômica sem olhar seu custo humano. Só entrou para a OMC em 2002 (prestando-lhe um favor) depois de ter feito tudo o que era possível em matéria de ” artes ” exportadoras. Em 30 anos, para inveja de todos nós, transformou-se na segunda economia mundial e no seu maior exportador.

Para a China, os Bric são apenas convenientes supridores de suas crescentes necessidades de matérias-primas e alimentos, que ela pretende pagar com a exportação de manufaturas. Sua política externa esconde mal o ” moderno imperialismo ” na busca de suprimento seguro de matérias-primas, como vemos na África e agora no Brasil. Na crise de 2008 ela mostrou sua verdadeira face: fixou sua taxa de câmbio ao dólar. Cuidou dos seus interesses e o fez muito bem!

O Brasil precisa pensar em si e não pendurar-se em ilusões. A situação de cada um dos Bric é muito diferente. A paciência do mundo com a China está se esgotando como testemunham nossos próprios problemas com ela. Precisamos tomar cuidado em não assumir compromissos como Brics que no futuro possam bloquear nossa ação independente.

De todos os Bric o Brasil é o país que tem maior probabilidade de ver realizadas as ” projeções ” . Tem: 1) um estoque genético riquíssimo que estimula a adaptação e a tolerância; 2) um importante mercado interno; 3) matriz energética adequada; 4) uma promissora disponibilidade futura de petróleo; 5) terra, água e tecnologia para expandir sua agricultura; 6) uma única língua e, não tem: 7) problemas de fronteira e 8 ) problemas étnicos e religiosos sensíveis. Mais do que tudo isso, somos uma democracia constitucional consolidada com um Supremo Tribunal Federal independente que ” garante ” nossas liberdades individuais. Nossa ambição de crescimento é modesta (5% ao ano), o que nos acomodará bem na economia mundial.

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras.

LUIZ FELIPE PONDÉ FSP 19/04

Um medieval com estilo


O "progresso" deve ser manipulado assim como quem manipula o bacilo da lepra




A CABO DE chegar de Istambul, para onde fui por razões profissionais. No avião li o belo livro "A Resistência", do escritor argentino Ernesto Sabato. Trata-se de uma peça de resistência à estupidez do mundo moderno. Sabato lamenta a ganância que nos assola sob a forma de projeto social para felicidade.
Estive em Istambul há 15 anos. Nunca esqueci a Igreja de Santa Sofia. A Turquia tem um dos maiores patrimônios arqueológicos do mundo antigo. Pena que esteja na moda.
Em 1995, andei pela Santa Sofia (eu e minha pequena família) sozinho por algum tempo, mergulhado no silêncio daquele monumento ao cristianismo antigo.
A Turquia, naquele tempo, tinha a benção de ser esquecida pelo mundo. O Cristo Pantocrator (o senhor do universo) no alto e os demais ícones bizantinos eram as únicas companhias. Hoje, a Santa Sofia parece uma Aparecida do Norte sob os pés da multidão. Se aqui são os crentes que assolam o espaço, lá são as novas formigas devoradoras do mundo, esses novos bárbaros, os turistas.
Hoje, o impasse, para quem ama conhecer o mundo, é como escapar da indústria do turismo e sua breguice de massa. O capitalismo aqui revela uma de suas maiores contradições: para ganhar dinheiro, muitas vezes, há que fazer tudo parecer a "25 de março". E, com isso, chegamos ao "progresso" da Turquia. É, a Turquia "progrediu". E o "progresso moderno" é uma praga de formigas assolando a vida.
"Progresso" é uma dessas ideias típicas da modernidade que deve ser manipulada como quem manipula o bacilo da lepra. Aos 50 anos, começo a ter aquele sentimento clássico de que o "passado" detém uma dignidade essencial. Acredito firmemente que toda redenção possível vem apenas dos mortos.
Pouco importa se as almas superficiais me taxarem de nostálgico. Ser odiado pelas almas superficiais é parte da minha ética. Ser superficial nada tem a ver com ser ignorante, muitas vezes a erudição está a serviço da superficialidade. Desprezo a democracia como forma de sensibilidade, aliás, a considero como um desses remédios necessários, mas horríveis (como quimioterapias) para uma doença humana incurável: nossa natural vocação para abusar do poder.
Prefiro almas pecadoras a almas eficazes (como diz Sabato), culpadas em sua agonia, conscientes do mal que causam no mundo, presas em suas fraquezas, aniquiladas por seu orgulho ridículo, com olhos vidrados de dor. Prefiro ser um pecador (e com isso não faço elogio a autores medíocres como Sade, mas sim me coloco sob a sombra de grandes filósofos como Santo Agostinho) a ser um "cidadão que crê no progresso".
Uma amiga minha me define, com precisão matemática, como "um medieval com estilo". As almas superficiais dirão "todo medieval é sem estilo", mas, de novo, as almas superficiais não têm a mínima ideia do que seja um medieval. Um medieval vaga por um mundo devastado, pressentindo a esperança sempre como filha do mistério. Uma espécie caçada, a cada dia, pelos superficiais crentes no progresso "humanista".
O que me encanta em Sabato é a forma que assume sua crítica, seu viés nostálgico, traço do que há de melhor no romantismo, sua dor diante da barbárie que é a sociedade da eficácia em que vivemos, sem o ridículo do filme "Avatar". Mas ele esbarrará num impasse clássico: confessemos, a sociedade da eficácia nos serve a todos com sua medicina, seus aviões, seus computadores. Abrir mão dela é abrir mão dos ganhos técnicos que ela gerou. Ninguém abre mão disso, por isso todo mundo prefere a infelicidade permeada pela higiene da solidão, porque o amor não é eficaz.
A resistência proposta por Sabato passa pela crença numa saúde espiritual, fincada em nossa vocação para o sagrado e para os valores eternos. Neste movimento, ele ataca o humanismo da eficácia e chama para si a herança de russos como o filósofo Nicolai Berdiaev (século 20). Berdiaev chamava de "nova Idade Média" a devastação da vida causada pela sociedade do progresso tecnológico. Ele era um dostoievskiano e nietzschiano e, por isso mesmo, alguém que desprezava a sensibilidade burocrática da democracia em favor da sensibilidade criadora e libertária. Os superficiais, essa maioria que infesta o mundo, dirão que isso é um desvio aristocrático. Pouco importa, mesmo que sejamos sempre derrotados, o que importa é termos a coragem de fracassar da forma que escolhermos.

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