domingo, 13 de junho de 2010

Notas de uma fuga

Fsp 13.06

O jovem tocador de oboé haitiano Jean Gerald sobreviveu ao terremoto no Haiti e veio estudar no Conservatório de Tatuí, onde tem dez horas diárias de música

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Faltavam apenas três dias para Jean Gerald, 24, embarcar para o Brasil quando o chão se abriu.
"Eu tinha gravado um CD na igreja e ia ouvi-lo quando tudo aconteceu. Eu estava na rua. De repente, vi apenas fumaça. E pessoas mortas. Fiquei imóvel. Só consegui falar com meu professor duas semanas depois."
A fumaça era a do terremoto que devastou o Haiti em janeiro deste ano.
O professor era o oboísta brasileiro Alex Klein, um dos mais prestigiados do mundo, solista da Sinfônica de Chicago por 20 anos.
Àquela altura, Jean Gerald tinha conseguido uma passagem para vir ao Brasil participar do Festival de Música de Santa Catarina.
Seria um passo importante no caminho que tentava começar a trilhar. "Mas o chão se abriu", repete, para em seguida emudecer.
Gerald não gosta de falar nem da política do Haiti, seu país natal, nem do cortejo de horrores que passou diante de seus olhos.
"Prefiro falar só de música", delimita, com um sorriso que empresta delicadeza ao olhar sério.
É que enquanto o país sofria as consequências de um desastre natural que as condições políticas e econômicas agravaram, o destino tecia outras teias para Gerald.
Impressionados com o que havia acontecido ao pupilo, Alex Klein e outros professores de universidades americanas tentaram encontrar uma solução para o jovem brilhante que, há anos, buscava saídas para as limitações da terra natal.
"Ele me foi apresentado por dois norte-americanos que apostam muito nele. Quando houve a tragédia, eles decidiram que queriam também prestar algum tipo de ajuda humanitária", conta Klein à Folha, por telefone, dos Estados Unidos, onde participa de um festival de música.
"O Jean tem um grande talento para um instrumento muito difícil", diz Klein. "O que acontece no Haiti é uma vergonha para todo continente americano. Achamos que, ao menos no que está ao nosso alcance, deveríamos tentar fazer alguma coisa."
E foi assim que, em silêncio, o meio musical mobilizou-se e possibilitou a vinda de Jean Gerald para o Brasil.

MOBILIZAÇÃO
Desde fevereiro, o jovem haitiano é aluno do Conservatório de Tatuí, tradicional escola no interior de São Paulo. Mas apenas há duas semanas é um aluno com todos os direitos e documentos.
"Foi uma loucura todo o processo para que conseguíssemos o visto", conta Henrique Autran Dourado, diretor do conservatório.
Jean Gerald só não foi extraditado por um triz. "Tivemos que fazer um abaixo-assinado internacional e mobilizar o Itamaraty", conta Dourado. "Queriam que ele voltasse para tirar o visto."
O processo foi custoso, mas terminou bem.
Na semana passada, ao receber a reportagem da Folha no conservatório, Gerald dizia-se aliviado de, enfim, ter de novo uma terra segura.
Impregnado da rotina de aulas e dez horas diárias de estudos, ele espera uma bolsa de estudos e resiste à tragédia e ao isolamento familiar apegando-se a uma certeza: a do retorno.
Seu sonho é ser um virtuoso capaz de tocar nas principais orquestras do mundo.
"Quando isso acontecer, poderei voltar para meu país para ensinar oboé e, quem sabe, abrir um orfanato. Não existe nenhum professor de oboé em Porto Príncipe."
Gerald, apesar de entender muita coisa em português, comunica-se em inglês e francês e garante que, de Tatuí, conhece apenas o conservatório e o alojamento.
"Gosto só de tocar e ler", diz, confessando que arrisca também uns versos. "O chato é que as moças, hoje, não gostam muito de poesia."
Mas sempre que o assunto se desvia da música, Jean Gerald diminui o compasso.
Baixa os olhos, por exemplo, para dizer que perdeu muitos amigos no terremoto, apesar de a família toda ter sido salva.
Mais de uma vez, interrompeu a própria fala ao se dar conta de que estava roçando a política.
"É um assunto sensível. A presença dos americanos no Haiti é complicada. Mas foram também americanos alguns dos que me ajudaram."

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“O Brasil não é o país do futebol” http://diplomatique.uol.com.br/interf/spacer.gif

DIPLOMATIQUE 13.06

É isso mesmo. Segundo Juca Kfouri, “o Brasil não é o país do futebol”. E para sustentar seu argumento, Juca lança mão de uma pesquisa do DataFolha “que mostra que maior que a torcida do Flamengo são as pessoas que dizem não ter time de coração: 25%!”. Conversamos sobre essas e muitas outras questões com o jornalista

DIPLOMATIQUE – Há uma citação bastante conhecida do historiador Eric Hobsbwam sobre o futebol carregar o conflito essencial da globalização. O que você acha disso?

JUCA KFOURI – É muito boa essa sacada dele. A globalização fez com que o mundo de futebol se conhecesse inteiramente, ao menos do ponto de vista tático do jogo. Ninguém surpreende mais ninguém. Ao mesmo tempo, a globalização permitiu aos países mais fortes tomarem daqueles periféricos os seus maiores talentos. Nós somos prova disso, assim como os argentinos. A concentração de capital na Europa e na Ásia permite a eles levarem os nossos talentos. Mas, paradoxalmente, esses talentos têm de provar a sua capacidade lá fora para servir às seleções nacionais. Acaba sendo um jogo dialético. Quer dizer, a chancela do nacional vem do globalizado, o que, de alguma maneira, permite retomar a ideia do Dostoievsky de que não há nada mais universal do que a esquina da sua casa. Ou aquela do Fernando Pessoa, quando diz que o Rio Tejo é mais bonito do que o rio que passa na minha aldeia, mas o Rio Tejo não é mais bonito do que o rio que passa na minha aldeia porque não é o rio que passa na minha aldeia. Acabamos de ver isso com a convocação do Dunga: tem dois jogadores de times brasileiros que vão jogar a Copa do Mundo pelo Brasil. Dois. Esse fenômeno ocorre claramente a partir do começo dos anos 1980.

DIPLOMATIQUE – Um dos grandes responsáveis para dar essa tônica ao futebol, ao que tudo indica, foi João Havelange. É coincidência ter sido um brasileiro?

KFOURI – Não. É aquilo de a pessoa estar no lugar certo, na hora certa. O João Havelange assumiu a FIFA (Federação Internacional de Futebol) em 1974. A eleição dele ocorreu no Congresso anterior à Copa da Alemanha e, portanto, após a primeira Copa do Mundo transmitida para o mundo inteiro pela televisão, a de 1970, no México. Havelange assumiu a FIFA com um evento que já era globalizado e se deu conta disso. Em seguida, montou um pequeno grupo com empresas como Adidas e Coca-Cola e, aos poucos, foi gerando o império que a federação é hoje. É inegável que ele teve esta visão de capitalismo selvagem. E esse modelo – perverso – montado pela FIFA é reproduzido aqui pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol). É o modelo de seitas, de pequenos grupos.

DIPLOMATIQUE – É possível traçar um paralelo entre essa situação e a especulação desenfreada do sistema financeiro, que recentemente arrastou o mundo para uma enorme crise? Não seria necessário algum tipo de regulamentação?

KFOURI – Sem dúvida. Hoje na Europa há muita gente boa preocupada com isso. Veja o caso brasileiro: se fizermos um seminário para discutir o futebol aqui entre dirigentes, comissões técnicas, atletas, jornalistas, governo e torcedores, todos concordarão que do jeito que está não pode continuar. Haverá unanimidade, ninguém dirá diferente. Mas se todo o mundo está de acordo por que não mudar? Quem ganha com isso? A quem interessa? Bem, o futebol é a maior das indústrias do entretenimento e o esporte em si é uma das instituições mais favoráveis à lavagem de dinheiro. É uma grande lavanderia. Por quê? Porque lida com uma altíssima dose de subjetividade. Quanto custa o Lionel Messi? Eu digo para você, 120 milhões de euros. Você responde ‘barbaridade, é dinheiro pra chuchu’. Mas eu posso dizer ‘não, que 120 nada, são 150 milhões de euros’. O Manchester United estaria disposto a pagar ao Barcelona esse valor. Mas e aí, alguém vale 150 milhões de euros? E diante disso, quanto valeria o Pelé? Ah, 300 milhões de euros. Mas só o dobro, o Pelé? É, talvez, 500 milhões de euros. Ou seja, é um saco sem fundo.

DIPLOMATIQUE – Mas e como os jogadores ficam nessa situação de mercadoria valendo milhões? Penso, por exemplo, no Vagner Love e no Adriano: quando eles voltaram para as comunidades deles foi um escândalo sem tamanho, revelando essa discrepância entre os salários, o status e a origem de cada um.

KFOURI – Aí há outra questão que, para mim, talvez seja a mais angustiante e que dá o outro lado dessa moeda tão rica, tão aparentemente glamorosa. Sabe quantos clubes brasileiros têm departamento de recursos humanos? Nenhum. Nenhum clube se preocupa em encaminhar uma carreira junto ao seu trabalhador. Há um paternalismo, um dirigente mais jeitoso aqui e ali, mas não existe uma coisa mais estruturada. E embora já haja alguns clubes que trabalhem com psicólogos especializados em esporte, em regra se considera isso frescura. Será que não é preciso tratar a cabeça de um garoto desses que vem da favela, que ontem estava pensando se ia conseguir almoçar e que hoje está comprando uma Mercedes-Benz último tipo blindada? É de uma baita irresponsabilidade e de uma burrice ignorar isso. Em última análise, os clubes não querem pagar R$ 15 mil por mês para um terapeuta cuidar de quem ganha R$ 400 mil por mês e será vendido por R$ 80 milhões. E aí as pessoas se horrorizam porque o Adriano foi até a favela e os caras que o receberam estavam armados. O Vagner Love disse: ‘qual é a surpresa? Ou vocês já viram alguém chegar lá em cima sem passar por ninguém armado? Isso já era assim quando eu era criança’. Mas a hipocrisia é de tal tamanho que as pessoas se horrorizam com jogadores de futebol ao mesmo tempo em que parecem esquecer que o Michael Jackson precisou comprar sua autorização para filmar no morro. E que para fazer os Jogos Pan-americanos em paz o governador do Rio de Janeiro teve que estabelecer um acordo com o tráfico.

DIPLOMATIQUE – Qual é a força dos impérios da CBF e da FIFA?

KFOURI – É tão poderoso que nos próximos quatro anos vai haver uma discussão aqui no Brasil sobre cedermos a nossa soberania para a FIFA. Veja o exemplo da Copa da Alemanha: na terra da cerveja, só a Budweiser americana podia ser vendida dentro dos estádios. Os alemães ficaram enlouquecidos, mas é assim que funciona: a FIFA manda. Isto advém desse insuperável poder de sedução que o futebol tem. Quando o Lula ganhou a eleição em 2002, me pediu que eu reunisse um grupo de pessoas e apresentasse um projeto de política esportiva para o Brasil, porque simplesmente não havia nenhum. Em 25 dias, a toque de caixa, fizemos um plano que era basicamente de inclusão social por meio do esporte. Partimos de um dado da Organização Mundial da Saúde de que a cada dólar investido em esporte, poupam-se três dólares em saúde pública. Tratava-se de uma massificação da coisa. Por mim, esporte de alto rendimento ficaria por conta da iniciativa privada, o governo não precisava cuidar disso. Mas o projeto virou tábula rasa, ele até agradeceu muito, mas não aconteceu nada. O Lula teve a generosidade de assinar, como as duas primeiras leis de seu mandato, em 2002, o Estatuto do Torcedor e a chamada Lei de Moralização do Esporte. Elas haviam sido gestadas e acordadas como as únicas duas leis aprovadas por unanimidade na gestão anterior do Fernando Henrique Cardoso. Fui convidado para acompanhar a assinatura das leis. Eu cheguei ao palácio e, para a minha surpresa e o meu constrangimento, veio um cara do cerimonial, e me levou para sentar à mesa, junto com os ministros. Eu não queria, disse que iria lá para trás, mas não teve jeito. Sentei ali e o Lula começou o seu discurso e disse, literalmente: ‘Senhoras e senhores, nunca mais vamos ouvir o jornalista Juca Kfouri dizer que no Brasil o torcedor é tratado feito gado’. O auditório veio abaixo com palmas. Eu não sabia onde enfiar a perna, o braço, a gravata. Ele encerrou 30 minutos depois dizendo que a minha presença lá era simbólica para todos aqueles jornalistas que foram processados por essa cartolagem malsã. Eu saí dessa cerimônia esmurrando o ar – embora já sem o direito à ingenuidade, aos 52 anos. Muito bem. Seis meses depois, o Lula estava de braço dado com o Ricardo Teixeira para o jogo do Haiti. E seis anos depois deu a Timemania [loteria organizada pelo governo federal] para os caras que deixaram os times brasileiros endividados, sem a exigência de nenhuma contrapartida de modelo de gestão. O resultado? Os times já estão falindo de novo e precisando de uma Timemania 2.

DIPLOMATIQUE – E dá tempo de a Copa do Mundo aqui não ser uma farra, essa desorganização?


KFOURI – Não dá mais tempo. Corremos o mesmo risco que a África do Sul em relação à Copa do Mundo: que ela seja um desastre. Tudo leva a crer que isso é possível. Na África do Sul, por exemplo, não há nem torcida porque eles não têm poder aquisitivo.

DIPLOMATIQUE – Sim, a princípio a venda de ingressos para a Copa de agora estava sendo via internet e por cartão de crédito, como os africanos iriam conseguir comprar?

KFOURI – A reação da economia informal está sendo armada. E não é apenas a questão dos ingressos. Com a Copa, construíram-se meios de transporte público em Joannesburgo que quebraram o grande jeito de se locomover na cidade: as lotações clandestinas. Você pode ter não só um fracasso do ponto de vista da presença de público, como se teme que um jornalista seja morto, um membro de delegação seja sequestrado, alguma coisa desse tipo aconteça. Os alemães já disseram que vão desembarcar de colete à prova de balas. É uma coisa de maluco pensar que você vai fazer a Copa do Mundo num lugar que alguém chegue desse jeito, não é? Os europeus são bem capazes, se acontecer alguma coisa, de dizerem que não dá para fazer uma outra Copa seguida no Terceiro Mundo. E os americanos estão loucos para tirar alguma coisa do Brasil, como as Olimpíadas. Claro, há que se considerar que o Ricardo Teixeira articulou isso direito, ele tem lá a sua força.

DIPLOMATIQUE – E nós corremos riscos de os ingressos aqui também não serem acessíveis para o grosso da população, como na África do Sul?

KFOURI – Eu imagino ainda que o que vai acabar acontecendo é que eles vão abrir. Vão vender a preço popular. De qualquer forma, o Brasil não é o país do futebol. Acabou de sair uma pesquisa do DataFolha que mostra que maior do que a torcida do Flamengo são as pessoas que dizem não ter time de coração: 25%! Depois vem o Flamengo, com 17% e o Corinthians com 14%. Na Argentina, em uma pesquisa igual, apenas 7% disseram não ter clube! E mais do que isso, nós somos absolutamente auto-suficientes em matéria de futebol. ‘Conosco ninguém podosco’, se diz por aí. Somos cinco vezes campeões do mundo. Damos as cartas. O brasileiro não vai ver Zaire e Noruega. O brasileiro não vai ver Costa Rica e Suécia. Pode ir ver Argentina e Inglaterra, França e Itália, Alemanha e Uruguai. Mas aqueles joguinhos mais periféricos não. No primeiro mundo, vão. Até nos Estados Unidos foram. Não tinha um estádio vazio nos Estados Unidos. Tinha, é claro, um pouco a coisa do inusitado, que eles queriam ver que esporte é esse. Agora, aqui, o que justifica, para nós, sediar a Copa é mexer na infraestrutura do país. Não faz sentido discutir a construção dos estádios para um evento de um mês. Em um país com as nossas carências é preciso refazer os aeroportos, dar uma belíssima de uma investida na área hospitalar, no transporte coletivo etc. Um exemplo de país onde isso foi bem-sucedido é a Espanha. Em 1982 eles fizeram uma Copa do Mundo, o primeiro grande acontecimento lá pós-franquismo. A herança desse período ainda era muito presente, mas já se via ali um país novo nascendo. E dez anos depois, com as Olimpíadas de Barcelona, isso estava sedimentado. A Espanha era um país moderno, não mais a porta dos fundos da Europa. E os dois eventos foram e são cartões de visita dessa mudança. Ao mesmo tempo, a loucura que se fez na Grécia em torno das Olimpíadas de Atenas tem relação direta com a crise econômica atual lá. Outro dia ouvi o Sócrates dizer que tem medo que tudo o que o Lula acumulou nesses oito anos de boa imagem para o Brasil no exterior a gente jogue fora com dois eventos perdulários feitos sob escândalos. E faz sentido.
Veja só, eu fui cobrir o jogo Brasil e Noruega na Copa da França, em 1998, no mesmo estádio em que o Brasil tinha jogado em 1938, em Marselha. No mesmíssimo estádio. Deram uma ajeitada, claro, mas a estrutura era igual. O Morumbi não é um bom estádio, é frio, tem ponto cego... É um horror para o dia a dia. Mas está aí há quase 50 anos. Dizer que não dá para fazer quatro ou cinco jogos de uma competição internacional lá é mentira. Também não dá para fazer de maneira ideal no Maracanã ou no Mineirão. Mas daí a jogar isso tudo no chão... Eu não estou nem falando do Pan-americano, que custou dez vezes mais do que estava orçado – e que foi feito com dinheiro público, apesar de estar previsto para a iniciativa privada. Aliás, você sabia que o Engenhão não vai servir para a Copa e que o parque aquático Maria Lenk não é adequado às Olimpíadas? Enfim, qual é a diferença entre você reformar e fazer um novo?

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