domingo, 20 de junho de 2010

Uma tarde para ser lembrada

Autor foi consagrado doutor honoris causa no auditório Dois Candangos. Proposta do título veio do Departamento de Teoria Literária
UNB 18/06

O homem mais sábio que conheci não sabia ler nem escrever.

José Saramago

O homem que escreveu sobre a cegueira da civilização contemporânea iluminou a Universidade de Brasília na tarde de 17 de novembro de 1997. A cerimônia foi no auditório Dois Candangos e durou cerca de três horas. Na ocasião, Saramago enfatizou o desejo de manter uma relação de franqueza com seus leitores. “Trouxe comigo algum trabalho, alguns livros, idéias, reflexões, o melhor que em uma vida já longa pude ir inventando e fabricando, uma ponte de palavras por onde intento chegar aos meus leitores e onde desejo que os meus leitores me encontrem, com a confiança, deles e minha, de que lá esteja e saiba estar, não apenas o autor, mas a pessoa real, o homem que sou. Não peço mais porque é o máximo que peço”.

As palavras sinceras do autor consagrado emocionaram as duzentas
pessoas presentes. “Foi lindo demais. Quando ele entrou, todos ficamos de pé”, lembra a professora Enilde Faustich, do Departamento de Linguistica, Português e Línguas Clássicas. Saramago ganharia o Nobel de Literatura no ano seguinte, mas já era escritor consagrado. Enilde anotou na agenda daquele ano as impressões que o escritor causou. "Ele foi absolutamente encantador em sua afetuosidade". A professora lembra que o acesso era restrito, com cadeiras numeradas.

Também professora do Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Sylvia Cyntrão recorda que Saramago respondeu às críticas de que era uma pessoa muito fechada. “De maneira muito delicada, ele contestou seus críticos”. Apaixonada pela obra do autor, Sylvia Cyntrão conta que entregou a Saramago trabalhos sobre ele feitos pelos alunos dela. Eram textos sobre o livro Ensaio sobre a Cegueira, que havia sido lançado dois anos antes, em 1995. “Saramago estava ao lado de sua mulher (Pilar del Río), cheio de livros. Entreguei o material nas mãos dela. Ele olhou, folheou algumas páginas e com toda doçura disse que não merecia aquilo”, relembra. “Foi uma acolhida maravilhosa, mas eu já tinha acolhido ele há muito tempo”, completa Sylvia.

O convite para Saramago vir à UnB foi feito pelo então vice-diretor do Instituto de Letras Almir Brunetti, assassinado em 2001, aos 68 anos. A relação de amizade do professor com a mulher de Saramago, Pilar del Rio, tornou possível a vinda do escritor à universidade. “Foi ele quem articulou tudo e o carinho que Pilar tinha por Almir foi essencial para conseguir a presença de Saramago na universidade”, conta a professora Sylvia Cyntrão.

A iniciativa para consagrá-lo doutor honoris causa foi aprovado na
277º reunião do Conselho Universitário (Consuni) em 31 de outubro de 1997. Quatro dias depois, o reitor João Cláudio Todorov teria o prazer de assinar a resolução que incluía Saramago entre os mestres mais destacados da UnB. "É uma honra para mim, uma das boas lembranças que guardo do meu tempo a frente da reitoria", comentou Todorov.

PROFECIA - Quando Saramago veio à UnB, o professor da Biologia Lauro Mohry já havia substituído João Cláudio Todorov. A famosa ironia do escritor português chamou atenção de Mohry: “Ele comentou o quadro político do período com muito sarcasmo”. A franqueza do futuro Nobel de Literatura também foi percebida pelo então reitor. “Ele falava o que pensava de maneira muito articulada. Parecia muito sincero, era uma característica da personalidade dele”.

Na ocasião, Cristovam Buarque, então governador do DF, convidou
Saramago para dar um passeio de helicóptero. Depois de sobrevoarem a periferia da cidade, já chegando ao Plano Piloto, o escritor comentou em tom profético: “O que vocês chamam de novo vai ficar velho. As cidades satélites serão o novo, enquanto o centro permanecerá conservado. A cidade vai se renovar pela periferia”. Nesta sexta-feira, durante palestra na Faculdade de Comunicação, Cristovam lembrou especialmente daquelas palavras: “Ali, Saramago me ensinou a pensar ao contrário”.

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