domingo, 27 de junho de 2010

Ponto a ponto - José Antonio Dias Toffoli

Mais novo ministro entre os titulares do STF dá a receita para modernizar o Judiciário e integrar a administração pública

Fonte: correio brasiliense 27/06

Como uma fábrica, o sistema judicial sustenta-se em engrenagens. Essa linha de produção é complexa e funciona, muitas vezes, impulsionada por interesses, preconceitos. Leva tempo para ganhar agilidade. Nas palavras do ministro Dias Toffoli, o mais novo dos 11 que compõem o Supremo Tribunal Federal (STF), é preciso acabar com a cultura do litígio, estimular as soluções administrativas e integrar as carreiras que fazem a interface com o mundo real. Só assim o país terá uma estrutura jurídica melhor.

Apesar disso, Toffoli diz que o acesso aos tribunais garantido no Brasil deve ser visto como referência no mundo. A burocracia no sentido virtuoso, também. É o que ele vai pregar durante o II Congresso Brasileiro das Carreiras Jurídicas de Estado, marcado para acontecer entre os dias 6 e 9 de julho em Brasília. “Será um debate de integração de carreiras voltado a um resultado: a própria integração”, resume. Ex-advogado-geral da União, Toffoli defende a conciliação do Estado com o Estado e das carreiras que dão sustentação à Justiça com elas próprias.

Inquieto, o ministro também propõe soluções que aprimorariam a relação da máquina com seus funcionários. Para ele, o Poder deve ser visto como um só: carreiras horizontais, irmãs no DNA e nas funções, pensadas como uma solução de futuro para minimizar as disputas que congestionam o funcionalismo no Executivo, no Judiciário e no Legislativo. A seguir, os principais pontos da entrevista concedida por Toffoli ao Correio.

Cultura do conflito precisa ter um fim

Vocação para a briga
No Brasil, temos a cultura do conflito: qualquer problema que leva para o Judiciário. Por que não discutir outras maneiras? As corporações gostam disso porque dá poder, dá demanda, dá justificativa para existência, dá explicação para ter bons salários etc. Não estou aqui criticando, mas é preciso parar para ver que existem outras maneiras de resolver conflitos. Desenvolveu-se a cultura de que o Judiciário é o que resolve tudo. Costumo dizer que tanto na iniciativa púbica quanto na iniciativa privada, os gestores no Brasil, seja um executivo de uma grande empresa privada, seja um executivo da área pública, um ministro de Estado, um secretário, quando ele não sabe o que fazer com um problema, manda para o jurídico. E o jurídico manda para o Judiciário. Só que o Judiciário tem várias instâncias e vários procedimentos e não vai resolver aquilo no dia seguinte. Então é uma decisão errada aquela que leva para o Judiciário aquilo que não devia estar no Judiciário. Por que a cultura jurídica no Brasil é formatada para o conflito e não para a solução? Nós, na escola, na faculdade de Direito, queremos aprender a litigar. Não se ensina a solucionar.

Acesso ao Judiciário
O acesso à Justiça em outros países é caríssimo. No Brasil, é barato. O acesso às instâncias superiores em outros países é quase somente acessível a quem tem condições econômicas. No Brasil, qualquer cidadão pode. Tem países que para se advogar em cortes supremas você tem que ter um exame específico e cobra-se uma aprovação específica para atuar naquela corte. No Brasil, qualquer advogado atua da primeira instância ao Supremo Tribunal Federal.

Linha de produção
Somos uma linha de produção de solução de conflitos em nome do Estado. O sistema judicial, seja o promotor, o advogado público ou privado, é função essencial à Justiça, ou seja, o defensor ou mesmo a polícia judiciária traz elementos para que na área criminal seja feita uma ação penal, uma investigação e uma punição, todos esses integrantes de carreiras jurídicas que compõem uma linha de produção de resolução de conflitos em nome do Estado. Eles não agem para si mesmos. Se ficar olhando só sua atividade e não ver que faz parte de uma linha de produção, vai ser um trabalhador alienado naquela mesma visão dita por Marx. O CNJ (Conselho Nacional de Justiça), ao estabelecer metas, como fez na gestão do ministro Gilmar Mendes, preocupou-se com isso. Ora, nós temos uma razão de ser, de dar uma resposta à sociedade. Ninguém pode ser promotor, juiz ou advogado público para si mesmo. As demandas não podem ficar aí sem solução.

Análise prévia
Na França, há análise prévia de constitucionalidade, mas não para todas as leis. No nosso caso, quais são as maiores demandas? Lei tributária e lei do serviço público. Onde estão os maiores problemas do ponto de vista dos chamados esqueletos? Lei tributária e lei do serviço público. Por que não há uma chancela sobre isso de imediato, para evitar milhares de demandas? Porque se a lei é inconstitucional não vai dar tempo de gerar o esqueleto para uma outra geração pagar, para outro governo pagar.

Avanços do sistema
O sistema já está se aprimorando, não há dúvida. Se você pegar o Judiciário desde a Constituição de 1988, é outro Judiciário. Com o controle prévio, o Judiciário ficará mais rápido. Para estancar os problemas da Justiça, é preciso estar sempre se falando sobre o tema. Dou dois exemplos: os judeus nunca param de falar do Holocausto. Dizem, ‘Ah, mas foi há tanto tempo!’ E algum dia a Coca-Cola ficou sem fazer a divulgação do seu produto na televisão? Todo dia que você liga a televisão estão falando da Coca-Cola. Ela não faz propaganda porque gosta de jogar dinheiro fora, mas porque é necessário. Às vezes, você tem que ser repetitivo naquilo que você pensa, que parece ser o óbvio, mas o óbvio tem que ser dito, repetido e todo dia lembrado.

Valor da moeda
Se o Estado era incapaz de dar certeza do valor da moeda, quanto mais do da Justiça. Então as pessoas não confiavam no Estado gestor, administrador, legislador. Elas buscavam o Estado juiz. A ideia de se procurar o Judiciário foi alimentada pela falência do Estado administrador no Brasil no sentido econômico, de você ter um mínimo de seriedade no valor da moeda. Não tenha dúvida de que a estabilização monetária a partir de 1994 repercute no sentido de poder ter uma diminuição da litigiosidade na medida em que, com o passar do tempo, as certezas jurídicas passam a ser maiores.


Estabilidade
Com a estabilidade econômica, muitas vezes não vale a pena ficar recorrendo porque, com os juros de mora que vai pagar, vai acabar ficando mais cara a dívida do que comprar e pagar de imediato o valor. E tem situações em que a própria União estava condenada em decisões judiciais que tinham 12% ao ano de juros de mora, sendo que em outras circunstâncias ainda tem a taxa Selic (juros básicos da economia) A litigiosidade é fruto da incerteza do resultado. Por que não se fazia acordo? Porque ninguém tinha ideia do que valeria aquilo. Vamos supor que a gente tenha um litígio ali de um aluguel de prédio que comprei e você não entregou no prazo, e aquilo está em litígio há três ou quatro anos. No passado, não havia como ter ideia de quanto valia aquilo. Não tenho ideia de quanto vai valer aquilo no mês que vem, quanto mais nesse período todo. Então você vai jogando para frente, para ver se com um plano econômico como isso vai ficar. Essa cultura do conflito tem a ver com a cultura inflacionária.


Integração
Temos uma formação em que tudo é crime hoje. A gestão pública tem a visão seguinte de que quem está fazendo algo está defendendo interesses. Esse é um outro tema que tem que se vencer na cultura brasileira. Quando você é gestor público, em qualquer decisão que você toma alguém ganha e alguém perde. Isso não quer dizer que, necessariamente, o gestor que está tomando a decisão está ganhando ou está perdendo. Então, muitas vezes, esses preconceitos precisam ser superados e só se faz isso quando se coloca as pessoas juntas.


Falsos dilemas
Você tomaria um remédio que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) diz que é ineficaz e inseguro para a sua saúde? Um remédio precisa ter segurança e eficácia. Você compraria um medicamento que a Anvisa vetou e um juiz deu uma liminar liberando? Você voaria em uma empresa aérea que a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) disse que não tem condições de voar? Dou esses dois exemplos porque o setor privado não reconhece a legitimidade dos órgãos de Estado de mérito. Não voaria em uma empresa aérea que funciona por liminar, não compraria um medicamento vendido por liminar. E os dois exemplos que eu dei são verdadeiros. No Brasil, já teve medicamento vendido por liminar e até pouco tempo atrás havia empresa aérea que funcionou por três anos com liminar contra decisão da Anac. O setor privado não vê legitimidade nesses órgãos e acaba recorrendo ao Judiciário.


RH ÚNICO
Precisamos acabar com a ideia dos poderes isolados. O poder é um só. E isso vale para a gestão dos recursos humanos também. Esse prédio do STF está registrado onde? Na SPU (Secretaria de Patrimônio do União). Não tem sentido termos analistas e técnicos como carreiras diferentes no Judiciário e no Legislativo. É preciso que seja criada uma secretaria de recursos humanos para todos os poderes, onde as carreiras fiquem sob uma única coordenação. Parece impossível, mas é preciso perseguir este caminho como fizemos com tantas outras coisas na economia e na área social.


Carreiras
O sistema judicial é composto por todas as carreiras jurídicas. O juiz, sozinho, não faz nada se não tiver demanda. Se não tiver um recurso aqui, não tenho trabalho. Para isso tem que ter o advogado, o ministério público, o advogado público, se não a demanda não chega. E essas carreiras nunca tinham tido um evento único, no qual cada um pudesse apresentar suas razões. Qual a ideia? Essas áreas todas não dialogam. Umas ficam disputando com as outras quem é a melhor, quem faz mais pela sociedade brasileira, quem é mais importante. Essa disputa ajuda a quem? Por que não dialogar em conjunto? Essa é a concepção: colocar todos, em conjunto, discutindo o sistema judicial.

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