quinta-feira, 10 de junho de 2010

Serial killer da citação

Novo livro de Xico Sá ironiza o comportamento do homem moderno

Revista CULT 08/06

De Santana do Cariri (CE) para o restante do Brasil, o jornalista Xico Sá conserva a característica típica do homem do sertão: é um macho-jurubeba, ou seja, não tem frescura e não é “afrescalhado”. Atraído pela “vagabundagem da crônica, que é um pouco jornalismo e um pouco literatura” e cansado do “destravecamento da fêmea”, ou seja, de tocar no braço de uma mulher e “sentir que se está tocando no braço do seu amigo”, Xico usa a ironia para abordar o comportamento dos homens e das mulheres contemporâneas em seu novo livro, Chabadabadá – aventuras e desventuras do macho perdido e da fêmea que se acha (Record, 2010), a exemplo do bem-sucedido Modos de Macho & Modinhas de fêmea (Record, 2003).

“Serial killer da citação”, Xico também pode ser considerado um farejador de fraudes políticas. Em 1993, conquistou o Prêmio Esso de Reportagem Especializada, com a reportagem Anatomia de uma Licitação, publicada pela Folha de S.Paulo. Ao lado do jornalista Oscar Pilagallo, ele denunciou um cartel de empreiteiras que fraudavam licitações em São Paulo. Ficou nacionalmente conhecido após dedicar cerca de 18 meses de sua vida para encontrar e entrevistar o empresário Paulo César Cavalcante Farias, o PC Farias, que estava foragido da polícia e era procurado por ser um dos principais mentores dos esquemas de corrupção divulgados a partir de 1992 que envolviam o então presidente Fernando Collor de Melo.

Transitando em diversas áreas, Xico foi baterista do grupo Anjos de Klee e contribuiu com o Mundo Livre S/A, uma das bandas fundadoras do movimento Manguebeat. No futebol, o jornalista participa do programa Cartão Verde (TV Cultura) e é um dos autores de Pelé 70 (Realejo/Brasileira, 2010).

Bem-humorado, ele conta que parou de citar os amigos em suas crônicas, “para não sentirem roubados nas suas frases” e não terem problemas nos relacionamentos amorosos. Para o leitor de Nelson Rodrigues, Julio Cortázar e de Philip Roth, o mundo está muito solene: “ficamos sérios com relação a tudo, ao futebol, ao carnaval, mas na literatura há o ego de quem a faz, que quer evitar a auto-esculhambação”. Confira a entrevista concedida por Xico Sá ao site da CULT.

CULT – Você faz uma crítica social e retrata as mudanças que ocorrem na sociedade com bastante ironia. Na sua opinião, falta ironia na literatura contemporânea?
XICO SÁ -
A literatura brasileira ainda é muito séria, muito carrancuda. Em um certo sentido, ainda é muito século 19 e até naturalista-realista demais. Quando se aborda violência, nunca se permite a gozação e a auto-ironia de brincar sobre a nossa marginalidade literária com relação ao mundo. Acho que ficamos sérios com relação a tudo, ao futebol, ao carnaval, mas na literatura há o ego de quem a faz, que quer evitar a auto-esculhambação. Eu tento ser o mais irônico possível, o menos dono de qualquer verdade; sempre me coloco como cobaia ou personagem. Tento ser gozador e evito ser solene, o tom mais comum na literatura.

CULT – Que autores você aprecia, quais são seus autores de cabeceira?
XICO -
Eu gosto mais de ficção do que de crônica ou de ensaios. Leio bastante ficção, romance e contos. Talvez o autor que eu mais goste seja o [argentino Julio] Cortázar, que é uma paixão antiga e talvez seja o autor que eu mais volto a ler, mas não há nada de reflexo dele no que escrevo. Gosto do Cortázar contista e um que acho incrível é o “Orientação dos Gatos” [conto publicado na obra Queremos Tanto a Glenda, Editora Argentina, 2004]. Entre os autores contemporâneos, gosto muito do Philip Roth [norte-americano, autor de Adeus, Columbus, Pastoral Americana, entre outros] que faz uma reflexão sobre a questão do envelhecimento. Desde O complexo de Portnoy, eu tenho lido todos os livros dele que saem, é um autor cuja leitura é obrigatória para mim.

CULT – Alguns críticos classificam a crônica como um gênero menor da literatura. Qual a sua posição?
XICO –
A crônica é um vira-lata, é o primo pobre da literatura. Eu acho que por estar relacionada à realidade, veiculada a periódicos, ou seja, no jornal que vai embrulhar o peixe, então, ela tem mesmo esse caráter. Essa vagabundagem da crônica de ser um pouco jornalismo e um pouco literatura me atrai, porque ela fica menos solene, o cronista se sente menos obrigado a escrever uma grande obra, uma grande história.

Se pegarmos Nelson Rodrigues, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, do Antônio Maria, vemos que não é assim tão pequeno. Evidentemente a obra mais importante de Nelson Rodrigues é para o teatro, mas a crônica dele rendeu volumes que são belíssimas obras, que são extremamente literárias e têm estilo. Percebemos que a crônica não é tão vagabunda assim quando nos distanciamos no tempo e reunimos o trabalho de bons escritores.

Com a Internet, a crônica ganhou fôlego, até pelo tamanho, pela facilidade de leitura e pelo formato. É um gênero que nunca foi tão lido no Brasil. A crônica é tida como antiga e é associada à nostalgia, ao Rio de Janeiro dos anos 1960, aos cronistas antigos. A crônica é interessante, porque todo mundo brinca: o romancista pratica, o poeta pratica. Ela é a nossa pelada literária, não é aquela coisa solene, mas todo mundo vai brincar com essa bola bacana.

CULT – Por que os machos-jurubeba, ou seja, os homens sem frescura, estão em extinção?
XICO -
Acho que com toda essa modernidade, tem uma questão de mercado, ou seja, não tem mais mulheres para esse tipo de homem, que ficou obsoleto. Ao mesmo tempo, esse homem tem um aspecto meio nostálgico, que é o cavalheirismo. O cavalheirismo é uma característica que o macho moderno não tem necessariamente, enquanto que o jurubeba ainda tem essa reserva. Ao mesmo tempo em que ele é tosco, no modo de vestir e de falar, ele tem essa reserva de cavalheirismo que o está salvando de uma extinção mais imediata. Essa é a sua última salvação: puxar a cadeira, abrir a porta do carro.

CULT – O que você tem do macho-jurubeba?
XICO -
Eu tenho muito do macho-jurubeba por conta da minha origem, da minha formação, desse lado mais sertão. Há muito do autor nesse macho-jurubeba, que é o que um dialogo mais com minha família. Eu falo que se eu voltar para casa do meu pai, ele não me aceita mais. Meu pai fica assombrado com certos costumes de hoje e ele não vai ficar só na ironia ou na brincadeira como eu faço, ele fecha a cara, não quer conversa. O comportamento mais sensível do homem, mais afrescalhado, seria inadmissível para o meu pai.

CULT – Por um lado, você cita as tendências apontadas pela mídia, como a Revista da Folha e a Caras; por outro lado, ressalta o conservadorismo de algumas famílias brasileiras que teriam resistência em aceitar as transformações. Nesse cenário, qual o principal agente transformador da sociedade?
XICO -
O que causa grandes mudanças nos costumes como comportamento, sexo e moda, ainda é a televisão. Agora, a Internet também vai ser o grande agente. A Internet sofre um processo de massificação, tanto por conta das lan-houses, como também por essa nova classe média, das classes C e D, que está chegando a um patamar de consumo melhor e já está comprando seu computador.

CULT – Em suas obras, há várias referências a importantes nomes, como Marcel Proust, Jorge Amado, Graciliano Ramos e Godard. De que forma essas citações contribuem para enriquecer e até tornar os textos mais irônicos?
XICO -
Eu sou um citador, praticamente um serial killer da citação. Cito o tempo inteiro, é um vício que tento tirar, porque se deixar eu acabo fazendo uma metaliteratura. Eu guardo muitas coisas, acabo de ler um livro, vou para a mesa do bar com os amigos e passo a noite inteira falando as citações do livro, é uma mania louca. Há também muita citação de contemporâneos, pessoas amigas, como Joca Terron, Ronaldo Bressane, Marçal Aquino.

CULT – Você disse que já prejudicou amigos por citá-los em suas crônicas. Pode abrir para nós um desses casos?
XICO -
Faço citações de autores mais antigos, mas também dos meus contemporâneos, até a chegar ao ponto de pessoas que estão vivas falarem: “Pelo amor de Deus, não me cita mais. Deixa de me homenagear, porque eu não quero esse tipo de homenagem. Está me complicando em casa, está complicando meu casamento, meu namoro”. Teve um caso com o Ronaldo Bressane, acho que faz uns cinco anos. Eu escrevi uma crônica sobre o “brechosexual”, que seria o metassexual de brechó. E tinha uma frase dele meio machista dita em mesa. E ele disse: “Para de me homenagear”. No Chabadabadá tem uma nota de advertência do autor, em que eu falo isso, que alguns amigos aparecem no livro sem o nome citado para não se sentirem roubados nas suas frases.

A citação representa uma certa insegurança da parte de quem escreve, se amparar em algum nome, principalmente nos clássicos, revela um pouco isso. Às vezes revela também um certo exibicionismo, para mostrar que se lê determinado autor, mas comigo essas frases estão na mesa do bar, estão na hora do almoço, estão no que eu digo todos os dias. Então, eu me sinto mais à vontade, porque não estou sendo falso. Tenho um amigo que me conforta e diz: “Isso é pós-moderno, não tem que ficar incomodado com isso”; uma das características da pós-modernidade é a fragmentação e a citação.

CULT – Se pudesse escolher uma mulher perfeita – que pode ser formada com partes de várias mulheres – como ela seria?
XICO -
O que mais me incomoda é o corpo moldado pela academia ou pela nova exigência da mulher, que tem que parecer com um jogador de futebol, que tem muito músculo. É quase um corpo artificial, isso é o que mais me incomoda, é o que chamo de “destravecamento da fêmea”. Você toca no braço de algumas mulheres, parece que se está tocando no braço do seu amigo, não é legal. Toda minha educação sentimental foi da mulher com um toque macio, o seu colo, confortável. Você deita no colo de uma mulher dessas, é como se estivesse deitando no colo de um homem, que tem um músculo na perna, ou seja, é desconfortável.

Trecho da crônica “Da peleja do metrossexual contra o macho-jurubeba”

“E da costela de David Beckham, Deus fez o metrossexual.Essa nova espécie composta por rapazes sensíveis, chegados a uma roupa Armani, que decoram a casa na linha minimalismo ultramoderno e têm uma bancada de pontinhos de cremes superior a qualquer mademoiselle, qualquer rapariga endinheirada… Superior, no quesito produtos de estética e beleza, até mesmo à mais vaidosa das balzacas.

Ou, como diz Michael Flocker, jornalista de Nova York que escreveu um guia sobre esses dândis do consumo, trata-se do homem do século 21 que estabelece tendências, homem heterossexual urbano com elevado senso estético, homem que ama um ‘bom vinho’ (adora cheirar a rolha, sentir o bouquet etc.), dedica tempo e dinheiro às compras; homem, enfim, disposto a assumir seu lado feminino no último.

Como diria Costinha, gênio e comediante das antigas, com a sua imoral bocarra: ‘Nooooosssa!’” (…)

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CARLOS HEITOR CONY

Lamber sabão FSP 10/06

RIO DE JANEIRO - Um avião de companhia peruana, com os equipamentos sofisticados, de última geração, inclusive com oito computadores interligados ao gigantesco computador central na torre de um aeroporto supermoderno, de repente ficou voando sozinho, sem nenhum comando. Os pilotos nada podiam fazer. Manche, pedais, alavancas e botões estavam travados pela pane inesperada e irreversível.
Há uma piada no meio aeronáutico: na cabine de comando de um avião do futuro, só haverá instrumentos, um piloto e um cachorro. Por que o cachorro? Se o piloto tentar mexer em algum instrumento, o cachorro não deixará.
Dos aviões passo para a vida geral. Cada vez mais a era digital nos penetra, programando aquilo que podemos e devemos fazer, deixando uma estreita faixa para o que realmente queremos fazer. E o que é pior: programando inclusive aquilo que devemos querer fazer. Na hora de escolher um sorvete de manga ou abacaxi, minha vontade de nada me servirá: estarei programado para, naquela circunstância, preferir um ou outro sorvete.
Vamos dar de barato que a programação seja correta, necessária, saudável, urgente, que todas as coordenadas tenham sido previstas, analisadas e resolvidas para o meu bem-estar moral e material e para o meu prazer. Muito bem. Basta um chip entrar em pane e tudo se esboroa.
Vou tomar um sorvete de manga ou abacaxi, milhões de circuitos internos estão procurando determinar a escolha que devo fazer naquele momento -e eis que o chip avariado me ordena, literalmente, lamber sabão.
Não tendo sabão à vista, saio a procura de um banheiro público. Com sorte, encontro um que tem um pedaço diáfano de sabão grosseiro, e lá fico eu, lambendo aquilo.
A hipótese, como o sabão, é também grosseira. Mas não deixa de ser possível.

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Mecenato e universidade

JOÃO GRANDINO RODAS

Ou universidades públicas paulistas se conformam em obsolescer placidamente ou devem procurar outras fontes de financiamento

FSP 10/06
Em um mundo em constante evolução, para que a universidade, pública ou privada, se mantenha atualizada são necessários orçamentos cada vez maiores.
Tal fenômeno verifica-se tanto no exterior quanto no Brasil, não sendo por acaso que as universidades mais importantes do mundo sejam também as campeãs na captação de recursos.
A universidade pública brasileira absorve cerca de 25% dos universitários brasileiros, cursando os demais instituições privadas.
As universidades públicas, por serem, geralmente, as mais tradicionais, recrutam os estudantes mais preparados.
Contudo, se já existiam algumas universidades particulares de renome, nota-se hoje grande ebulição nas instituições privadas, mormente em razão do ingresso de grandes capitais, inclusive estrangeiros, no setor, o que tornará mais acirrada a disputa pelos melhores alunos.
Isso é bastante positivo, uma vez que contribui para a melhora do nível do ensino superior brasileiro.
Um dos principais problemas das universidades públicas reside exatamente na dificuldade em aumentar seu orçamento na mesma proporção das suas crescentes necessidades.
Financiar o ensino superior, infelizmente, não pode ser prioridade absoluta do poder público, pois há outras necessidades prementes, como a educação fundamental e média, a saúde, a segurança, a infraestrutura etc.
Se até pouco tempo atrás bastavam quatro paredes, lousa, giz, mesas e cadeiras, bibliotecas e laboratórios, atualmente são necessárias salas de aula dotadas de modernos meios eletrônicos, bibliotecas digitais e laboratórios de ponta, todos sujeitos a rápida obsolescência.
Como estudo de caso, tomemos as três universidades públicas paulistas -USP, Unicamp e Unesp-, cujo orçamento é de cerca de 10% do ICMS recolhido no Estado (quase R$ 7 bilhões em 2009).
Desse montante, 85% são consumidos com a folha de pagamento, restando apenas 15% para todos os outros gastos: construções, compra de materiais, manutenções e pesquisa. Se não fossem as instituições de fomento à pesquisa, como a Fapesp e o CNPQ, praticamente não haveria como financiar a pesquisa nessas universidades.
Nesse cenário, impõe-se um dilema: ou as universidades públicas paulistas se conformam em obsolescer placidamente ou devem procurar outras fontes de financiamento. Daí a importância da parceria público-privada, bem como das doações de mecenas, antigos alunos ou não.
Embora tal aconteça com grande intensidade em outros quadrantes do globo, entre nós não somente inexiste esse costume como ele representa verdadeiro tabu, suficiente para condenar seus próceres às fogueiras da inquisição.
É capcioso o argumento de que a entrada de recursos privados nas universidades públicas compromete a sua autonomia. Trata-se tão somente de tentar manter sua liderança como centros de excelência.
Para tanto, urge que a questão seja pensada sem ideologias, que regras claras sejam delineadas e que seja feito um grande trabalho de conscientização, no sentido de que os antigos alunos de universidades públicas possuem um débito para com elas e, consequentemente, para com a sociedade.
Motivá-los a retribuir a formação que receberam, na medida de suas possibilidades, é salutar e necessário. O modo, emocional e rocambolesco, como foi conduzida a experiência relativa ao projeto de modernização da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco certamente não contribuiu para a referida conscientização.


JOÃO GRANDINO RODAS, 66, é reitor da Universidade de São Paulo. Foi diretor da Faculdade de Direito da USP e presidente do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica).

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