CARLOS HEITOR CONY
FSP 15/06
Briga na Lagoa
RIO DE JANEIRO - Ninguém me contou: eu vi. O sujeito caminhava pela orla da Lagoa, num passo esforçado, a camisa empapada de suor, a respiração de quem vinha de longe e ia para mais longe ainda.
De repente, um outro homem que vinha em sentido contrário deu-lhe um soco. Os dois rolaram no chão. A coisa mais próxima deles era eu. Poderia fazer alguma coisa, mas preferi ver como aquilo iria acabar.
Deviam ter seus motivos, o que batia e o que apanhava. Não sou de me meter em brigas alheias, e só brigo quando não tenho mesmo alternativa.
Parei a uma distância prudente e fiquei apreciando. Os dois deviam ser conhecidos antigos. Mais: deviam ter algum tipo de intimidade. Nada diziam, só se esbofeteavam, tentavam se esganar um ao outro.
Briga por mulher? Por dívida não paga? Não dava para ver a cara deles, de maneira que fiquei nessas duas hipóteses. Ambas justificavam aquela luta que de repente parou. Ainda sentados no chão, os dois me olharam com raiva.
Levantaram-se, limparam a terra que se grudara nos corpos suados, um deles sangrava na boca. Olharam mais uma vez para mim, como se eu fosse o culpado de tudo ou tivesse estragado uma festa deles. E voltaram a caminhar cada um para um lado.
Aí quem ficou com o problema fui eu. Para que lado deveria ir? Se acompanhasse um deles, poderia significar uma espécie de solidariedade e amanhã o outro camarada poderia me agredir por conta disso. Tomei a iniciativa de ficar parado, esperando que os dois se afastassem dali.
Até que senti um peso na consciência. Eu devia ter entrado na briga também, batendo e apanhando, como nos filmes do cinema mudo, em que todos brigavam por brigar.
Seria uma forma de purgar meus pecados. Talvez seguisse meu caminho com uma culpa a menos.
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Museus naturais em condições precárias
MIGUEL TREFAUT RODRIGUES e HUSSAM ZAHER
FSP 15/06
Parte influente da própria comunidade científica ainda não se conscientizou do papel estratégico que as coleções têm para o Brasil
O incêndio que atingiu as coleções de serpentes e artrópodes do Instituto Butantan revelou ao país as condições precárias em que se encontra seu acervo biológico.
Mais preocupante foi a constatação de que uma parte influente da própria comunidade científica ainda não se conscientizou do papel estratégico desempenhado por essas coleções no desenvolvimento científico e tecnológico do Brasil -país detentor da maior diversidade de espécies de plantas, animais e micro-organismos do planeta.
Não se trata de avaliar a qualidade da ciência produzida em um dos nossos institutos tecnológicos ou os parâmetros técnicos que regem a manutenção de exemplares mortos, mas, sim, a perda de autonomia científica e de credibilidade que as coleções propiciavam.
Acervos desse tipo são de fundamental importância para o estudo da biodiversidade, por documentarem o processo de criação e diversificação da vida na Terra. Estima-se que o número de espécies vivas varie entre 10 e 40 milhões, das quais apenas 1,8 milhão foram descobertas e nomeadas. A desproporção entre o que se conhece e o que ainda resta por descobrir constitui um dos maiores desafios da ciência da biodiversidade, o que justifica a criação de acervos biológicos.
Nos últimos anos, as coleções científicas passaram a ser utilizadas como ferramentas essenciais de gestão ambiental e como base para modelagens preditivas. A criação, na ONU, da Convenção sobre a Diversidade Biológica procura reverter os impactos nefastos produzidos pela perda global de biodiversidade, destacando a função central das coleções no gerenciamento dos recursos naturais.
Esse novo olhar sobre as velhas coleções valoriza-as em seu papel menos compreendido, o de assegurar a qualidade de vida de nossa espécie. Hoje, contamos com importantes conquistas da genômica, mas ainda estamos distantes do dia em que o caminho entre os genes e o indivíduo terá sido totalmente desvendado.
Até lá, é fundamental que continuemos guardando espécimes-testemunhos da existência de uma infinidade de processos bióticos e abióticos, que podem ser críticos para o destino da humanidade, mas que ainda somos incapazes de compreender.
O incêndio do Butantan revela que não dedicamos a atenção devida a tão valioso patrimônio. Perdemos coleções centenárias, mas podemos sofrer perdas maiores. Acervos mais expressivos, como os do Museu de Zoologia da USP, do Museu Goeldi e do Museu Nacional estão em situação similar de risco. É imprescindível que o poder público reconheça o valor desses acervos e que as instituições que os abrigam tenham clareza de suas responsabilidades em preservá-los.
Disponibilizar recursos para a proteção das coleções científicas em prédios seguros, a exemplo do que se faz na Europa e na América do Norte, representaria um ato de maturidade exemplar por parte de um país que busca credibilidade internacional.
MIGUEL TREFAUT RODRIGUES é professor do Instituto de Biociências da USP.
HUSSAM ZAHER é diretor do Museu de Zoologia da USP.
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