segunda-feira, 26 de julho de 2010

LUIZ FELIPE PONDÉ

FSP 26/07

Do ponto de vista da pedra

Eu sei que podem me achar excessivamente cético, mas só acredito em Deus e na alma. Em mais nada

NUMA MADRUGADA, afundo em cigarros e insônia. Na TV a cabo, cenas de um filme chinês, "2046 - Os Segredos do Amor", fotografia de cores fortes, músicas incomuns, mulheres lindas, ancas deliciosas que sobem e descem escadas e se arrastam entre os lençóis. O filme não deixa de ser uma ode a esse antigo vício que muitos de nós, homens, temos: a paixão pelas mulheres e a mistura de afetos que as atormenta, a beleza insustentável, a forma infiel do corpo, o tédio incurável.
Uma chinesa se apaixona por um japonês. Seu pai a proíbe de amar o japonês, afinal o ódio aos horrores da guerra causados pelos japoneses justifica sua fala. O ano é 1967.
Ele volta para o Japão. Ela enlouquece, adoece, é internada. Põe-se a falar sozinha, definha sob a opressão da saudade. Vaga pelo quarto abraçando sombras.
E, aí, o filme me ganha definitivamente. Sim, eu sei que pessoas saudáveis não sofrem assim. Mas, em minha obsessão pelos que morrem de amor, não consigo admirar quem resolve bem a vida. Tenho certa paixão por quem fracassa no combate ao afeto. Certamente, tenho algum trauma primitivo, daqueles que fundam nossa personalidade despertando nossa alma.
Tem gente por aí que se julga inteligente porque não acredita na existência da alma -pobres diabos. Eu sei que podem me achar excessivamente cético, mas eu só acredito em Deus e na alma. Em mais nada. Eu, aliás, confio mais em almas penadas. Que assustam os sonhos à noite. Sim, eu sei. Melhor aqueles que tomam remédios, fazem terapias objetivas, meditam 15 minutos diariamente e viram budistas. Mas eu me encanto facilmente por gente que, como essa heroína chinesa, adoece de amor.
Vagando pela casa tentando relembrar cada palavra dita, cada cheiro, cada silêncio, cada gosto na boca, o toque da língua, a saliva, escorrendo a mão pelos seios, numa dança doce e macabra de acasalamento. Sozinha, beijando as paredes. O rosto coberto de lágrimas, os olhos vidrados, a boca salgada, a voz rouca de tanto gritar sozinha para os céus.
A incompreensão de todos à sua volta por tamanha incapacidade de se tornar indiferente ao amor morto. Sentir-se como uma folha esmagada contra o chão, elevada pelo vento, seca de tanto afeto, evocando a misericórdia dos deuses, eis minha fenomenologia do amor.
Lembro-me do conto de Edgar Allan Poe "A Queda da Casa de Usher". Não me esqueço da doença que afeta o irmão e a irmã Usher. O talento monstruoso do melancólico Poe esmaga o leitor de sensibilidade diante da morbidez do amor impuro entre os irmãos Usher, fundando uma cumplicidade de segredos na distância entre os séculos.
A degeneração mortal dos irmãos se materializa numa sensibilidade insuportável para com os detalhes concretos da existência física. As roupas pesam na pele, os sons das palavras faladas em voz baixa rasgam os ouvidos, o paladar da língua é ferido pelo gosto sem gosto do alimento, a claridade de um dia sombrio ofusca a pupila infeliz diante do peso da luz, o ruído das relações humanas tortura o lento passar das horas, até as pedras das paredes da casa de Usher são agonia.
Miseráveis irmãos buscam a nudez, o silêncio, a fome, a escuridão, a solidão como cura. A vida, pouco a pouco, se torna morte, buscando o impossível repouso na ânsia de se fazer também pedra.
Amar é estar impregnado de uma presença, como o acúmulo dos anos se torna limo entre as pedras. Como uma forma de infecção invisível que une corpo e alma no desejo.
Sim, eu sei que se trata de um modo ruim de viver. Devemos fazer o culto da vida saudável. Mas não consigo. Encanta-me a personagem que perde a batalha contra si mesma como minha chinesa insone.
Morbidez? Pouco importa. Fôssemos apenas um bando de mamíferos alegres, ao longo de nossos milhares de anos de existência, não sobreviveríamos. A dor é que nos adapta ao ambiente hostil.
O "direito à felicidade" é a nossa grande falácia: hoje somos superficiais até do ponto de vista das pedras. Já Tocqueville, no século 19, temia que a "mania da felicidade" tornasse todos nós os tolos do futuro. Amém.

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livro
O conquistador de palavras
CORREIOWEB 26/07

Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, elaborado por Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, ganha nova edição, com prefácio de Chico Buarque de Holanda

Ninguém que tenha em mão o Dicionário Analógico da Língua Portuguesa poderá dizer que está sem palavras. O falante e/ou escrevente não vai mais se sentir tentando capturar um grão de areia no ar, mas só até aprender a consultar a obra de ideias afins relançada pela editora Lexikon 60 anos depois da primeira edição. Esse gênero de dicionário não oferece o sentido da palavra, função que cabe ao dicionário de significados (Houaiss, Aurélio, Caldas Aulete). A tarefa dele é socorrer o usuário quando ele quer dizer alguma coisa e… a palavra, fugidia, lhe escapa. Ou quando a que encontra não é exatamente a que procura; ou quando quer dizer de outro modo aquilo que já foi dito; ou quando procura uma imagem diferente para não cair no clichê, ou quando, como faz Chico Buarque de Holanda, quer aprender palavras bonitas para embasbacar as moças e esmagar os rivais (veja nesta página).

O filho de Sergio Buarque de Holanda é a estrela máxima que apresenta o Dicionário, com um texto delicioso, mas, para quem vive no Distrito Federal, o dicionário tem um interesse extra: o autor, Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, é goiano da Cidade de Goiás. E, mais que isso, é um personagem e tanto pelos seus inacreditáveis feitos numa capital escondida entre serras e por seu temperamento distraído que fez dele personagem de causos que, mais de 50 anos depois de sua morte, estão sendo reunidos em livro, a ser lançado pelo biblioteconomista José Rincon Ferreira, neto do autor, a partir de anotações de José Sisenando Jaime. História como aquela em que ele, como de hábito, entrou na barbearia e esperou muito tempo para ser atendido até que uma moça bonita se aproximou e ele informou que estava esperando o barbeiro. Soube então que a casa não abrigava mais tesouras, navalhas e espumas de barbear. Era um prostíbulo.

O professor Ferreira ou o professor Ferreirão, como era conhecido, viveu toda a vida num casarão colonial do século 19 na cidade de Goiás. Quando estava grávida do primeiro filho, a mãe dele ficou viúva e teve de criar o garoto fazendo e vendendo doces. Dona Ritoca parecia ter uma noção do mundo para além dos limites da Serra Dourada. Mandou o filho de 17 anos estudar em Ouro Preto. Francisco voltou formado em agronomia, mas os interesses do jovem recém-formado eram muito mais amplos. “Ele era um homem do renascimento, um sujeito extraordinário para seu tempo e para o nosso tempo”, diz a neta Ana Maria Vicentini, psicanalista que já morou em Brasília e hoje vive em São Paulo.

Anuário Histórico
Nos seus 77 anos vividos, Ferreirão foi engenheiro do serviço público, professor do Liceu de Goiás, jornalista, gramático, cronista, ensaísta, autor de várias obras, entre as quais o Anuário Histórico, Geográfico e Descritivo do Estado e do Dicionário Analógico, que só foi publicado em 1950, oito anos depois de sua morte, graças ao interesse de um filólogo, o carioca Antenor Nascentes (1886/1972) que obteve da família as fichas com as anotações de Ferreira e providenciou a edição. Quem possuía e ainda possui a primeira edição do Dicionário Analógico era dono de uma obra rara e esgotada. A segunda edição só pode ser impressa depois de uma longa e vagarosa peleja judicial entre os herdeiros do autor e a editora Coordenada, de Brasília, que detinha os direitos de publicação.

Superada essa fase, a Lexicon Editora Digital, especializada em dicionários, comprou o direito de publicação da obra. Foram dois anos destinados a retirar perto de 20% das palavras ou termos já não utilizados pelos falantes da língua portuguesa, em especial alguns galicismos. E a inclusão de novos léxicos. A edição ficou com 764 páginas. Agora, a editora prepara o lançamento de uma versão on-line, para ser consultada gratuitamente e com permissão para colaboração de leitores. (Prática que a editora já adota no Aulete Digital (

Responsável pela atualização do dicionário e editor de obras de referências da Lexicon, Paulo Geiger explica que o uso de dicionário analógico é uma tradição das línguas anglo-saxônicas. Para fabricar o seu dicionário, o professor Ferreira usou como base a primeira obra do gênero publicada no Brasil, em 1936, do padre Carlos Spitzer. Mas a inspiração veio dos thesaurus (dicionário de ideias afins) de língua inglesa, modelo criado pelo lexicógrafo britânico Peter Mark Roget (1779/1869). A primeira tiragem do Dicionário Analógico sumiu das prateleiras em uma semana. “A segunda está no mesmo caminho”, diz Paulo Geiger. Já foram vendidos 10 mil exemplares, número razoável em se tratando de dicionário.

Trecho
Os dicionários de meu pai

Francisco Buarque de Hollanda

Pouco antes de morrer, meu pai me chamou ao escritório e me entregou um livro de capa preta que eu nunca havia visto. Era o dicionário analógico de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Ficava quase escondido, perto dos cinco grandes volumes do dicionário Caldas Aulete, entre outros livros de consulta que papai mantinha ao alcance da mão numa estante giratória. Isso pode te servir, foi mais ou menos o que ele então me disse, no seu falar meio grunhido.

Era como se ele, cansado, me passasse um bastão que de alguma forma eu deveria levar adiante. E por um bom tempo aquele livro me ajudou no acabamento de romances e letras de canções, sem falar das horas em que eu o folheava à toa: o amor aos dicionários, para o sérvio Milorad Pavic, autor de romances-enciclopédias, é um traço infantil no caráter de um homem adulto.

Palavra puxa palavra, e escarafunchar o dicionário analógico foi virando para mim um passatempo (desenfado, espairecimento, entretém, solaz, recreio, filistria). O resultado é que o livro, herdado já em estado precário, começou a se esfarelar em meus dedos. Encostei-o na estante das relíquias ao descobrir, num sebo atrás da Sala Cecília Meireles, o mesmo dicionário em encadernação de percalina. Por dentro estava em boas condições, apesar de algumas manchas amareladas, e de trazer na folha de rosto a palavra anauê, escrita à caneta-tinteiro.

Com esse livro escrevi novas canções e romances, decifrei enigmas, fechei muitas palavras cruzadas. E ao vê-lo dar sinais de fadiga, saí de sebo em sebo pelo Rio de Janeiro para me garantir um dicionário analógico de reserva. Encontrei dois, mas não me dei por satisfeito, fiquei viciado no negócio. Dei de vasculhar livrarias país afora, só em São Paulo adquiri meia dúzia de exemplares, e ainda arrematei o último à venda na Amazon.com antes que algum aventureiro o fizesse.

Eu já imaginava deter o monopólio (açambarcamento, exclusividade, hegemonia, senhorio, império) de dicionários analógicos da língua portuguesa, não fosse pelo senhor João Ubaldo Ribeiro, que ao que me consta também tem um, quiçá carcomido pelas traças (brocas, carunchos, gusanos, cupins, térmitas, cáries, lagartas-rosadas, gafanhotos, bichos-carpinteiros). A horas mortas, eu corria os olhos pela minha prateleira repleta de livros gêmeos, escolhia um a esmo e o abria a bel-prazer. Então anotava num moleskine as palavras mais preciosas, a fim de esmerar o vocabulário com o que eu embasbacaria as moças e esmagaria meus rivais.

Hoje sou surpreendido pelo anúncio desta nova edição do dicionário analógico de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Sinto como se invadissem minha propriedade, revirassem meus baús, espalhassem aos ventos meu tesouro. Trata-se para mim de uma terrível (funesta, nefasta, macabra, atroz, abominável, dilacerante, miseranda) notícia.

Dicionário Analógico da Língua Portuguesa

2ª edição atualizada e revista, Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, 764 páginas, editora Lexicon, R$ 70.
Blog sobre o professor Ferreira: http://franciscoferreiradossantosazevedo.blogspot.com/

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