terça-feira, 31 de agosto de 2010

CARLOS HEITOR CONY

Bienais

RIO DE JANEIRO - Sou um profissional do livro, tanto na mão como na contramão, na voz ativa e na passiva. Acho que passei a maior parte do meu tempo lendo ou escrevendo, e confesso que, embora não me justifique, o contato com o livro tem sido o melhor da minha vida -ao lado de outros prazeres, poucos e não bastantes.
Mesmo assim, não gosto da palavra "bienal", usada pelas feiras de livros que, felizmente, se realizam anualmente. Mas considero o evento necessário para a promoção do livro como um todo, e não da literatura em si.
Sempre ouvi dizer que há duas maneiras de ser escritor. A primeira, a mais tradicional, é a do refúgio na chamada torre de marfim, em que o autor se isola para não se promiscuir com o mercado.
A segunda considera o livro como um elo entre o autor e o leitor, não diviniza nem demoniza a praxe, aceita a regra do jogo e dá o seu recado.
Há gênios e imbecis nas duas categorias. Gênios que se isolam e imbecis que também cultivam a torre que eles julgam ser de marfim.
Deve ser o meu caso, embora a minha torre seja um escombro, mais inclinada e muito mais feia do que a de Pisa.
Não é por aí que a literatura sobrevive como arte e como uma das vias mais importantes da cultura universal e do enriquecimento espiritual. É difícil admitir a existência de gênios inéditos, mas pode haver algum a ser descoberto pela posteridade.
No geral, o gênio pode tardar a ser reconhecido, mas, antes disso, tem de pagar um preço: tirante a própria vida, nada é gratuito na vida. Não há almoços grátis.
Como gênio é coisa rara, e discutível, quem não é gênio precisa pagar o mico e, mais por humildade do que por vaidade, se submeter à sua circunstância.
Por tudo isso, salve as bienais, principalmente as anuais.

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Uma lei com milhares de autores

JUCA FERREIRA

FSP 31/08

Não interessa aos autores a judicialização do direito autoral, com milhares de processos e com o alto grau de inadimplência que temos

O Ministério da Cultura está concluindo hoje a consulta pública sobre o anteprojeto para a modernização da Lei do Direito Autoral. Recebemos milhares de contribuições.
Algo já esperado, pela importância que o direito do autor tem não só para os próprios criadores como para toda a economia da cultura.
Organizamos mais de 80 reuniões setoriais em todo o Brasil, seis seminários nacionais e um internacional. Envolvemos mais de 10 mil interessados e estudamos a legislação de mais de 30 países. O anteprojeto é fruto desse processo.
A finalidade de colocar o texto em consulta pública é a de identificar fragilidades, equívocos e recolher sugestões para o seu aperfeiçoamento. A amplitude e a profundidade das manifestações não deixam dúvidas: teremos um projeto de lei melhor do que a minuta apresentada em junho!
No Brasil, as economias culturais não conseguem atingir legalmente nem 20% do mercado potencial, com exceção da TV aberta. É óbvio que uma economia saudável precisa ampliar o acesso dos consumidores para que a mercadoria realize plenamente sua missão e materialize seu valor de troca.
E, claro, quanto mais segurança jurídica, mais investidores se interessarão pelos negócios culturais.
Os usuários são igualmente importantes. Por isso, a lei do direito autoral precisa e deve buscar a harmonização com esses outros direitos e interesses.
Interessa ao autor uma economia saudável. Não interessa aos autores a judicialização do direito autoral, com milhares de processos na Justiça e com o alto grau de inadimplência que temos hoje.
Sem falar na insegurança da grande maioria dos artistas e criadores quanto à honestidade do processo de arrecadação e distribuição do direito autoral.
Um dos pontos mais questionados ao longo desse processo foi o da licença não voluntária: ela se destina a equacionar casos excepcionais dentro do conjunto do direito autoral e visa permitir a reedição de obras esgotadas e as chamadas obras órfãs, fundamentalmente.
Não tem aplicação no universo da música, mas é relevante no mundo das artes visuais e no da literatura.
Obras que, apesar de relevantes para a nossa cultura, encontram-se, por motivos diversos, inacessíveis. Não podemos deixar de registrar leituras enviesadas, expostas, especialmente, por aqueles que tiram proveito de falhas da atual legislação, numa tentativa de desqualificar a proposta de lei em discussão.
Questões estruturais e centrais do projeto de lei, como as que ampliam os direitos dos autores, ficaram secundarizadas nessas leituras marotas. Por exemplo, o reforço na posição contratual dos autores, que terão maior poder na negociação de seus direitos com terceiros.
Facilitamos para que os autores e artistas de obras audiovisuais possam obter mais ganhos pela exibição pública de suas obras; criamos exigências para que as associações de gestão coletiva sejam transparentes para os artistas, em nome de quem fazem a arrecadação em suas atividades, e comprovem uma administração idônea.
A lei atual é defasada e não oferece saídas diante das novas tecnologias. O acesso da sociedade aos conteúdos culturais em ambiente digital é uma grande oportunidade de acesso à cultura e um desafio para o direito de autor.
A saída não pode ser policialesca, de querer cercear, proibir e prender, mas procurar navegar nessa onda, buscando novos modelos de negócios e regras para esses usos que garantam os direitos dos autores. O mundo inteiro está discutindo essa questão.
Se queremos que os autores recebam satisfatoriamente por suas criações, se queremos desenvolvimento cultural e acesso pleno à cultura para todos, ou seja, uma economia da cultura forte no Brasil, por que não procuramos juntos as saídas?

JUCA FERREIRA, sociólogo, é ministro da Cultura.

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Por um ensino melhor

Fsp 31/08

É louvável a iniciativa de entidades sociais de propor que candidatos assumam compromissos públicos com a educação antes da eleição

Duas dezenas de organizações lançam hoje em Brasília a "Carta-Compromisso pela Garantia do Direito à Educação de Qualidade", que pretendem ver adotada por candidatos aos Poderes Executivo e Legislativo. Trata-se de um passo adiante na crescente tomada de consciência da esfera pública quanto ao papel estratégico do ensino. Ela já levou à formação do movimento Todos pela Educação, articulador da carta, que logrou conferir ao tema uma prioridade perto de consensual.
O documento repete a fórmula bem-sucedida de vincular prioridades gerais com metas concretas, passíveis de acompanhamento e verificação. Entre os objetivos específicos estão alfabetizar todas as crianças até oito anos de idade antes de 2014, incluir todos os jovens e crianças de 4 a 17 anos na escola até 2016 e cobrir toda a demanda por vagas em creches até 2020. São propostas factíveis, mas nem por isso triviais.
Além das metas relativas ao ensino, fixa-se o objetivo mais geral de elevar a fatia do PIB investida no setor a 10%, dos quais 8% para a educação básica e 2% para a superior. Já houve melhora: a educação básica recebe hoje cerca de 5% do PIB, contra 3,7% em 2006.
Embora desejável, o aumento de verbas precisa ser contextualizado. Parece improvável que candidatos se comprometam previamente com metas de elevação de investimentos no ensino sem levar em conta demandas de outras áreas, como a de saúde.
Além disso, o acréscimo de recursos precisa estar vinculado a objetivos determinados e ao aperfeiçoamento da gestão, sob pena de desperdício.
Outros objetivos da propostas também suscitam reserva, pois os meios de alcançá-los não se mostram tão consensuais quanto poderia parecer. Além da parcela do PIB, são eles: valorização dos profissionais da educação, gestão democrática das escolas e aperfeiçoamento das políticas de avaliação e regulação.
Ora, são bem conhecidas as divergências de fundo ideológico a respeito dos três pontos que separam gestões do PT e do PSDB em todos os níveis de governo. As políticas tucanas de premiação por mérito para educadores, por exemplo, são malvistas nos círculos sindicais petistas.
Tampouco parece corriqueiro, no campo dos conflitos reais, chegar a acordo sobre o que seja uma gestão democrática, que não resulte em aparelhamento da escola por grupos partidários. Ou, então, sobre que consequências dar para resultados de avaliação.
À parte essas discordâncias, não resta dúvida de que cabe pôr em prática de uma vez por todas o piso salarial nacional para docentes de R$ 1.024,67 (inferior até à renda média do país, R$ 1.117,95), ainda ignorado em alguns Estados. Para esses casos, uma Lei de Responsabilidade Educacional não seria má ideia.
Todos os candidatos deveriam subscrever o compromisso, ainda que fazendo as ressalvas cabíveis no que respeita à aplicabilidade e explicitando que interpretação dariam aos princípios sujeitos a controvérsia. Se a campanha eleitoral seguisse esse figurino, o público não estaria presenciando o festival de inanidades marqueteiras que assola o país.

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Ler é o remédio

Atire o primeiro livro quem nunca buscou literatura para a afta, a cólica, o cabelo estragado, o mau-humor ou o excesso de peso

FSP 31/08

Começo o dia com a "bebida de Jafé", mix de frutas, iogurte e farinha de linhaça que, diz o livro "A dieta de Jesus" (Planeta, 144 págs., R$ 19,90), é antioxidante.
Tento preparar um lanche para levar ao trabalho, algo que melhore o humor e deixe a cintura fina, como orienta o "Coma e Seja Feliz" (Thomas Nelson Brasil, 320 págs., R$ 34,90). Duas colheres de abacate amassado, 1/4 de xícara de alfafa, 1 fatia de cebola e... já estou estressadíssima. Alguém tem toda aquela lista na geladeira ou tempo para picar tudo antes do batente? Para ter humor, cintura e ser feliz, cozinheira é essencial.
No almoço, folheio outro livro saudável, o "Manual do Proprietário" (Delphos/Aguiar, 224 págs., R$ 45). Que prega guardar um dia por semana só para líquidos, nada de mastigar. Tarde demais.
Decido tentar "Mulheres, Comida & Deus"(Lua de Papel, 192 págs., R$ 27,90), já que a autora costuma levar pacientes a retiros espirituais que pregam a não-dieta.
Mas há regras também na não-dieta, descubro, saudosa do tempo em que bomba de chocolate era só bomba de chocolate, não frustração, como afirma um capítulo.
Difícil ser "Magra e Poderosa" (Audiolivro, 5 horas, R$ 24,90), como nos querem Rory Freedman e Kim Barnouin. As duas americanas tinham péssimos hábitos alimentares até que se conheceram numa agência de talentos (aqui é de empregos, mesmo), estudaram "nutrição holística" e lançaram o título que está entre os best-sellers do "New York Times".
Ao menos, são mais divertidas que a fofa de "Reeduque seu Cérebro, Remodele seu Corpo"(DVS, 225 págs., R$ 42). Para essa autora, peso extra é igual a "cérebro preguiçoso".
Só na última Bienal do Livro, foram lançados pelo menos 700 títulos sobre saúde e mais 200 sobre beleza, todos na base do "como fazer".
No ano passado, a autoajuda representava 5,44% do total de livros produzidos no Brasil, de acordo com informações da Câmara Brasileira de Livros.
No Reino Unido, a editora da Amazon, Fiona Buckland, diz que o filão saúde-beleza cresce em média 40% ao ano.
"Isso é um retrato dessa cultura que enxerga o corpo como capital. Saúde é o que mostramos, o que aparece, não é mais o que somos interiormente ou ausência de dor", diza antropóloga Mirian Goldenberg, colunista do Equilíbrio. "Esses livros vendem a concepção de um corpo jovem e que não vai morrer nunca. Esse é "o" mercado", diz Goldenberg.
"A autoajuda na saúde está ganhando cada vez mais valor na sociedade atual. Mas se as pessoas têm preocupações reais com o corpo e a mente, deveriam procurar um médico", afirma o vice-presidente do grupo de médicos de família da Inglaterra, Graham Archard.
É a mesma opinião de seu colega brasileiro, Antonio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica. "Prescrever dieta é coisa de médico e nenhum profissional de projeção realmente importante escreve essas obras com tanto apelo mercadológico", opina.
Mas então esses livros são perigosos? "Nada. A pessoa compra, faz uma sopinha e em seguida o livro vai ficar na estante", diz Lopes
Não é a intenção da dona de casa Cristina Nagao, 41, que saiu da Bienal do Livro na sexta retrasada carregando cinco sacolas.
"Comprei o "Estilo Saudável" (Alaúde, 192 págs., R$ 29,90) da Cátia Fonseca, sabe, apresentadora do "Mulheres?'", disse, referindo-se a um veterano programa de TV e mostrando a capa.
Ela conta que, depois de uns livros, mudou de vida. Quase não come frituras e toma bastante água, mas a ginástica, confessa, ainda não entrou na sua rotina.
O que ela aprendeu de mais importante nesses livros? "Que a cozinha pode ser uma fonte imensa de bactérias. Agora, sempre que chego da feira lavo tudo e tiro dos plásticos cor-de-rosa."
A administradora de empresa Silmara Mendonça, 36, comprou "50 Frutas e seus Benefícios Medicinais" (Elevação, 152 págs., R$ 19,90) e estava encantada com o poder de um unguento de folha de abacateiro contra aftas.
Silmara também investiu em "Dr. Cabelo" ( Elevação, 192 págs., R$ 28,40). "Eu sei que chapinha faz mal, mas não sabia que água de coco batida com a polpa melhora o estrago", contou.
Ela afirma adorar dicas, acha que essa categoria de leitura é mais útil do que romances. "Romance? Só quero com o meu marido", falou assim, bem prática.
Antes de comprar um desses livros é legal saber quem é o autor, pesquisar sobre ele. Quem recomenda é o médico Antonio Carlos Lopes.
Os fisioterapeutas Alessandra Concurueo, 25, e Rafael Reichler, 28, consumidores de livros de saúde, sabem o que levam para casa. "Há editoras especializadas, é melhor comprar de quem entende", diz Rafael.
Para o sociólogo Dario Caldas, do Observatório de Sinais, imaginar que os títulos espetaculosos manipulam pessoas "ingênuas" é voltar aos anos 60, quando a TV era culpada por tudo. "Os livros funcionam para uma parcela da população. Mesmo que sejam como bálsamo."
"As pessoas querem saber "como" tudo. Da felicidade ao nó de gravata", diz Caldas, segundo quem há uma nova safra de livros desse tipo que são muito úteis. Tipo "Atividades do Dia-a-Dia Sem Segredos - Para Deficientes Visuais", da fundação Dorina Nowill. Mas ele também não se incomoda com obras que ensinam a limpar a pele. "Agora, educar a comer e a ser feliz, acho complicado."
Não dá para lutar contra a autoajuda, melhor aderir. Se as dicas e receitas não funcionarem, ponho para rodar o audiolivro "Ame Suas Rugas" (Universidade Falada, R$ 11,99) e relaxo.

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Abortos, canibais e peregrinos

FSP 31/08

O feto só é vida quando somos capazes de imaginar uma vida para e com ele; vida passa a ser uma opção

24 DE AGOSTO
AS DISCUSSÕES sobre o aborto despertam o poeta que há em nós. Uma amiga disse-me hoje que era favorável ao aborto livre porque só existe vida, ser humano, "pessoa", quando existe um nome.
Entendo a metáfora: o feto converte-se em vida quando somos capazes de projetar uma identidade nele. Quando o feto deixa de ser feto e passa a ser, sei lá, Maria ou Manuel. Quando é, no fundo, desejado.
Em silêncio, ainda contemplei as vantagens de uma legislação que consagrasse essa espécie de "validade onomástica": os pais evitavam dar nome ao filho até os 12 ou 13 (anos, não meses) e esperavam para ver.
Se ele fosse um adolescente típico, com maus modos e péssima higiene, seria sempre possível despachar a "coisa", a inominada "coisa", para o outro mundo. E por que não?
Se o feto só é vida quando somos capazes de imaginar uma vida para ele e com ele, a própria noção de "vida humana" deixa de repousar nas mãos do mistério (evitemos referências ao patrão lá de cima) e passa a ser opção de cada um.
Como, na verdade, já é: podemos mascarar a discussão sobre o aborto com quilos de retórica social, feminista, criminal ou sanitária.
Mas a "liberalização do aborto" parte de uma atitude filosófica que consiste em "privatizar" a noção de vida humana.
Para uns, é Maria. Para outros, é um amontoado de células (benignas) que se remove como se removem as malignas. Caso encerrado.

27 DE AGOSTO
Um restaurante em Berlim que serve carne humana? Desconfiei. Acertei. Era piada, revelam os jornais. A Alemanha é pródiga em horrores mil, mas não existe restaurante canibal nenhum para cozinhar pratos de inspiração wari. Muito menos disposto a receber braços ou pernas de doadores beneméritos.
Pressinto alguma desilusão entre leitores "gourmet". Mas a inquietação teórica, com ou sem esse restaurante, mantém-se: será legítimo o canibalismo?
Montaigne, no século 16, dizia que sim, desde que a matéria-prima já estivesse morta. E se eu já posso legar o meu corpo para a ciência, por que não para a panela?
Boa pergunta. Pena que, na confusão mental em que vivemos, não haja uma resposta vigorosa para ela.
Como, por exemplo, lembrar os presentes que a forma como devemos honrar os ausentes não passa por assá-los no espeto. Isso seria uma forma de desrespeito, não necessariamente pelos mortos mas pela sensibilidade e humanidade dos vivos.
A exata sensibilidade e humanidade que nos impede de passear com cadáveres no shopping; de transformá-los em cabides ou bibelôs para a casa (depois de empalhados, claro); ou de usá-los para praticar tiro ao alvo, mesmo que todas essas fossem vontades expressas do defunto.
O episódio anedótico do restaurante berlinense serviu, ao menos, para lembrar que uma sociedade incapaz de respeitar os mortos é incapaz de se respeitar a si própria.

29 DE AGOSTO
Coincidências: a BBC informa que o vaso sanitário de John Lennon está à venda por 9.500 libras. O "Sunday Telegraph", no mesmo dia, informa que o vaso sanitário do escritor J.D. Salinger também. Por US$ 1 milhão. Como explicar essa diferença de preços?
Não quero ser acusado de preconceitos culturais, mas sempre disse que existe uma superioridade evidente da grande literatura sobre a música pop.
E, além disso, o vaso de Salinger foi usado durante meio século; o de Lennon, durante três anos. Deve ser incomparavelmente mais transcendente para o órfão respectivo sentar onde o patriarca teve os melhores pensamentos durante meio século, e não durante míseros três anos.
E digo "órfão" com todo o respeito: o historiador Paul Johnson escrevia em tempos que a adoração que dedicamos às "celebridades" é uma corruptela do tipo de adoração que os nossos antepassados dedicavam a santos, beatos e outros tipos de iluminados.
Johnson está certo. Tão certo que os peregrinos de hoje até imitam os peregrinos de ontem na busca desesperada de uma relíquia. Ontem, um pedaço de tecido. Hoje, um vaso sanitário. Amanhã, quem sabe, a língua de Madonna, enfiada num recipiente de formol, como a língua de santo Antônio de Lisboa que vi na Itália, anos atrás.

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Dicionário de museus imaginários

Novo MAC-USP no antigo prédio do Detran adaptado repete histórico do museu que até hoje teve mais de dez projetos° arquitetônicos que não saíram do papel

FSP 31/08
Quando abrir sua nova sede perto do Ibirapuera, no antigo prédio do Detran em dezembro, o Museu de Arte Contemporânea da USP vai escrever mais um capítulo numa história de projetos arquitetônicos que poderiam ter sido e que nunca foram.
Desde que surgiu em 1963, tendo como ponto de partida a doação da coleção de Ciccillo Matarazzo para a universidade, o MAC nunca teve um prédio construído para abrigar suas mostras e coleções.
Mas não faltaram projetos. Pelo menos dez propostas nas últimas cinco décadas já emprestaram forma -imaginária- ao museu com a maior coleção de arte moderna da América Latina, hoje com cerca de 10 mil obras.
Franz Heep, arquiteto que desenhou o edifício Itália, pensou numa sede para o MAC-USP que seria construída no coração da Cidade Universitária, nos anos 60.
Na mesma época, Oswaldo Bratke também imaginou um complexo museológico no que configurava o segundo maior conjunto de construções modernistas em São Paulo depois do Ibirapuera.
Não chegaram a sair do papel. Entre os motivos, falta de verbas e "circunstâncias desfavoráveis", nas palavras do ex-diretor Walter Zanini, da época do regime militar -o redator do AI-5 ocupou o posto de reitor da universidade.
De um projeto de Paulo Mendes da Rocha, entregue em 1974, ficaram só parte das fundações até hoje no campus, espécie de pegadas de um museu que viveu só do nome por quase 30 anos.
Foi só em 1992 que a antiga coleção de Ciccillo Matarazzo deixou o espaço no último andar do pavilhão da Bienal para se instalar num prédio da Cidade Universitária, que adaptou uma residência estudantil para receber o MAC.

MUDANÇA
E, de lá, ele não saiu até agora. Teixeira Coelho, hoje curador do Masp, tentou fazer a mudança quando dirigiu o MAC há dez anos.
Organizou um concurso internacional e recebeu propostas do japonês Arata Isozaki, dos brasileiros Mendes da Rocha e Eduardo de Almeida e do suíço Bernard Tschumi, eleito o vencedor.
Não fosse engavetado pela gestão seguinte, Tschumi teria feito um museu vertical num lote da prefeitura perto do parque da Água Branca.
Passada mais uma década, é para outro parque -e para outro prédio adaptado- que vai agora o MAC.
Oscar Niemeyer tentou mudar seu próprio projeto, o Palácio da Agricultura, de 1951, para receber o museu, mas também essa ideia acabou arquivada por um veto da defesa do patrimônio.

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AIBA MAIS

Massacre é um dos maiores na história do país

Fsp 30/08/10

O México presenciou no começo da semana passada uma das maiores chacinas já registradas na guerra do tráfico no país.
Em San Fernando, em Tamaulipas, Estado que faz fronteira com os Estados Unidos, foram encontrados mortos 72 imigrantes ilegais.
Entre as vítimas estão hondurenhos, salvadorenhos e guatemaltecos. Até o fechamento desta edição, o Itamaraty havia identificado dois brasileiros de Minas Gerais.
Único sobrevivente, o equatoriano Freddy Lala Pomavilla, que está hospitalizado, atribuiu a ação ao cartel Zetas.
A suspeita é de que os imigrantes, que tentavam cruzar a fronteira para os EUA, morreram por terem se recusado a trabalhar para os narcotraficantes.
Depois da pressão do governo, o narcotráfico mexicano respondeu com carros-bomba, novas chacinas e o desaparecimento de um promotor.
Na sexta passada, em Ciudad Victoria, ocorreu uma explosão perto do estúdio da Televisa -não houve vítimas.
O cerco à ação do narcotráfico vem sendo acirrado pelo presidente Felipe Calderón desde 2006. Cerca de 28 mil pessoas morreram no país em episódios ligados à narcoviolência.

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LUIZ FELIPE PONDÉ

A oligarquia de esquerda

Fsp 30/08/10


O jargão "por uma sociedade mais justa" pode ser falado pelo pior dos canalhas




VOCÊ ACREDITA em justiça social? Tenho minhas dúvidas. Engasgou? Como pode alguém não crer em justiça social? Calma, já explico. Quem em sã consciência seria contra uma vida "menos ruim"? Não eu. Mas cuidado: o jargão "por uma sociedade mais justa" pode ser falado pelo pior dos canalhas. Assim como dizer "vou fazer mais escolas", dizer "sou por uma sociedade mais justa" pode ser golpe.
Aliás, que invasão de privacidade é essa propaganda política gratuita na mídia, não? O desgraçado comum, indo pro trabalho no trânsito, querendo um pouco de música pra aliviar seu dia a dia, é obrigado a ouvir a palhaçada sem graça dos candidatos. Ou o blablablá compenetrado de quem se acha sério e acredita que sou obrigado a ouvi-lo.
Mas voltando à justiça social, proponho a leitura do filósofo escocês David Hume (século 18), "An Enquiry Concerning the Principles of Morals, Section III". Cético e irônico, Hume foi um dos maiores filósofos modernos. É conhecida sua ironia para com a ideia de justiça social. Ele a comparava aos delírios dos cristãos puritanos de sua época em busca de uma vida pura. Para Hume, os defensores de um "critério racional" de justiça social eram tão fanáticos quanto os fanáticos da fé.
Sua crítica visava a possibilidade de nós termos critérios claros do que seria justo socialmente. Mas ele também duvidava de quem estabeleceria essa justiça "criteriosa" e de como se estabeleceria esse paraíso de justiça social no mundo. Se você falar em educação e saúde, é fácil, mas e quando vamos além disso no "projeto de justiça social"? Aqui é que a coisa pega.
Mas antes da pergunta "o que é justiça social?", podemos perguntar quem seriam "os paladinos da justiça social". Seria gente honesta? Ou aproveitadores do patrimônio dos outros e da "matéria bruta da infelicidade humana", ansiosos por fazer seus próprios patrimônios à custa do roubo do fruto do trabalho alheio "em nome da justiça social"? Humm...
A semelhança dos hipócritas da fé que falavam em nome da justiça divina para roubar sua alma, esses hipócritas falariam em nome da justiça social para roubar você. Ambas abstratas e inefáveis, por isso mesmo excelentes ferramentas para aproveitadores e mentirosos, as justiças divina e social seriam armas poderosas de retórica autoritária e mau-caráter.
Suspeito de que se Hume vivesse hoje entre nós, faria críticas semelhantes à oligarquia de esquerda que se apoderou da máquina do governo brasileiro manipulando uma linguagem de "justiça social": controle da mídia, das escolas, dos direitos autorais, das opiniões, da distribuição de vagas nas universidades, tudo em nome da "justiça social". Ataca-se assim, o coração da vida inteligente: o pensamento e suas formas materiais de produção e distribuição.
A tendência autoritária da política nacional espanta as almas menos cegas ou menos hipócritas. A oligarquia de esquerda associa as práticas das velhas oligarquias ao maior estelionato da história política moderna: a ideia de fazer justiça social a custa do trabalho (econômico e intelectual) alheio.
Outro filósofo britânico, Locke (século 17), chamava a atenção para o fato de que sem propriedade privada não haveria qualquer liberdade possível no mundo porque liberdade, quando arrancada de sua raiz concreta, a propriedade privada (isto é, o fruto do seu esforço pessoal e livre e que ninguém pode tomar), seria irreal.
Instalando-se num ambiente antes ocupado pela oligarquia nordestina, brutal e coronelista, e sua aliada, a chique oligarquia industrial paulista, os "paladinos da justiça social" se apoderam dos mecanismos de controle da sociedade e passam a produzir sucessores e sucessoras tirando-os da cartola, fazendo uso da mais abusiva retórica e máquina de propaganda.
Engana-se quem acha que propriedade privada seja apenas "sua casa". Não, a primeira propriedade privada que existe é invisível: sua alma, seu espírito, suas ideias. É sobre elas que a oligarquia de esquerda avança a passos largos. Em nome da "justiça social" ela silenciará todos.

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FERNANDO DE BARROS E SILVA

Cultura de salão

Fsp 30/08/10

SÃO PAULO - Estreia hoje à noite o novo "Roda Viva", apresentado por Marília "Gabi" Gabriela. Como você, também não vi. As objeções, aqui, não se referem à perfomance, mas a princípios. Importa menos saber se a multiapresentadora está sóbria ou descolada, cool ou afetada. A questão é anterior.
"Eu sou Marília Gabriela, jornalista. Acredito no Brasil como a Vivo acredita". Até outro dia, a campanha estava no ar. Gabriela empresta (ou vende) seu prestígio, e o associa à condição de jornalista, para promover a empresa de telefonia. A mesma Gabriela empresta seu talento para comandar aquele que foi (não é mais, já faz tempo) o principal programa de debate e política na principal emissora pública do país (talvez não seja mais).
Você não vê William Bonner e Fátima Bernardes vendendo lançamentos imobillários nos jornais ou margarina na TV. Já Faustão, que não é mais jornalista, mas animador das massas, faz de seu programa um camelódromo. A Globo, no entanto, é uma emissora privada.
Qual o modelo de Marília Gabriela? E quais, sobretudo, são os parâmetros da "nova" TV Cultura?
João Sayad é uma figura ilustre da sociedade civil progressista, um banqueiro-intelectual de extração tucano-petista, com bons serviços prestados para ambos os lados.
Estranha foi a maneira com que ele chegou à presidência da TV Cultura, desalojando Paulo Markun, de quem foi chefe, numa espécie de golpe palaciano. Mais estranhos, porém, são os rumos da emissora, que parece associar vícios estatais e tentações mercadistas, em prejuízo do que é propriamente público.
A pergunta "para que serve a Cultura" deve se desdobrar, à maneira nietzscheana, em outra: a quem serve a TV Cultura? Acumulam-se evidências de que ela tenha se tornado uma confraria do tucanato, um tipo de sinecura ou abrigo para fidalgos decadentes. Não será contratando a Tina Turner do jornalismo local para afetar um ar modernoso que a Cultura vai recobrar prestígio ou relevância pública.

FUNCIONALISMO
Judiciário vive guerra por reajuste CORREIO 30/08

Servidores mais antigos rejeitam solução que garante aprovação de projeto de lei com aumento apenas a recém-contratados


Novatos e velha guarda do Judiciário duelam nos bastidores em torno de uma alternativa ao projeto de lei enviado ao Congresso Nacional que eleva os contracheques de analistas, técnicos e auxiliares. Apoiada por quem ingressou depois de 2000, mas rejeitada pelos que estão na ativa há mais tempo, a ideia — se aceita — reduziria significativamente o impacto financeiro da polêmica proposta (PL nº 6.613/09) que prevê ganho médio de 56% aos cerca de 100 mil funcionários dos tribunais federais. O nó está em adotar o modelo de subsídio como remuneração para todos.

Difundido em larga escala entre as carreiras de elite do Executivo federal, o sistema unifica salário-base, gratificações e vantagens pessoais até o limite correspondente ao fim de carreira. Os que já ganham acima desse total não amargam perdas, uma vez que o excedente é repassado mês a mês na forma de parcela complementar. Reajustes futuros, no entanto, só incidem sobre as remunerações dos trabalhadores que ainda não romperam a barreira de referência. No caso dos servidores da Justiça, a controvérsia está justamente aí.

Na ponta do lápis
Se a alteração na fórmula de pagamento entrar em vigor, os empregados mais antigos dos tribunais ficarão sem qualquer aumento salarial. Isso porque, na média, as remunerações dos veteranos extrapolam o máximo calculado como aquilo que seria o último estágio possível dentro do conceito de subsídio(1),/b>. Entre os servidores que estão atualmente em faixas salariais intermediárias, o efeito é exatamente o oposto. Para esses, que são minoria, o bônus poderia representar mais até do que o dobro do salário. Traduzindo em números, as diferenças ficam visíveis.

Um analista no topo da carreira que recebe hoje R$ 24.988,14 não teria ganho algum se o subsídio estipulado em R$ 18.478,45 estivesse valendo. O servidor nessa situação embolsaria o valor acrescido de um complemento correspondente ao que faltou para alcançar sua antiga remuneração. Na ponta do lápis, pelo cenário traçado pelo PL 6.613/09 o mesmo servidor seria beneficiado com um reajuste de R$ 7.577,87, fazendo com que sua remuneração mensal saltasse para R$ 32.566,01 — superior ao teto do funcionalismo público (R$ 26.723,13).

Situação inversa viveria outro analista em início de carreira e sem vantagem incorporada ao contracheque. Com salário de R$ 6.897,90, esse servidor teria R$ 3.964,71 de aumento com o PL nº 6.613, totalizando R$ 10.862,61. Já com o subsídio, definido para essa classe em R$ 14.232,00, o mesmo servidor receberia de reajuste R$ 7.334,10. As disparidades entre um modelo e outro é o que, no fim das contas, determinam os impactos financeiros. A estimativa oficial é de que o PL, como está, custaria R$ 7 bilhões. Se o subsídio for implantando, o custo cai para algo entre R$ 4 bilhões e R$ 4,8 bilhões, conforme estimativas ainda em fase de elaboração.

1 - Sem disparidades
O formato de remuneração conhecido como subsídio substitui o convencional, composto pelo chamado vencimento-base e pela soma de outras gratificações e ajudas de custo. Além de simplificar a administração, ao estabelecer um único valor para os servidores de uma mesma carreira, o modelo evita a disparidade entre o rendimento dos ingressantes no serviço público e dos profissionais com anos de carreira, que têm seus contracheques engordados por diferentes benefícios.

O número
R$ 4,8 bilhões
Impacto da correção salarial no Orçamento da União se o Projeto de Lei nº 6.613/09 for alterado. Sem as mudanças, o valor estimado é de R$ 7 bilhões


Barrado no Executivo
O reajuste que beneficia os servidores da Justiça se arrasta desde o ano passado e ganhou relevância nos últimos meses devido à resistência do Executivo em dar continuidade ao processo. De forma pública e objetiva, o Ministério do Planejamento descartou qualquer mudança nas remunerações do Judiciário neste ano por falta de previsão orçamentária. Mais do que isso: o ministro Paulo Bernardo jogou para o governo que será eleito em outubro a responsabilidade de concluir as negociações e, eventualmente, chancelar a autorização para o aumento que viria apenas a partir de 2011 e de maneira escalonada.

No ano passado, a folha de pessoal ativo civil e militar do Executivo federal consumiu R$ 67,9 bilhões, enquanto a do Legislativo chegou a R$ 4 bilhões e a do Judiciário, a R$ 22,2 bilhões. Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assumiu, em janeiro de 2003, esses números eram bem mais modestos: R$ 32,1 bilhões, R$ 2,3 bilhões e R$ 7,8 bilhões, respectivamente. O PL nº 6.613/09 está na Câmara dos Deputados a espera de votação. Passadas as eleições, o texto base deverá ser incluído na pauta do Plenário.

Enquanto isso, o lobby em favor do subsídio mobiliza uma parcela considerável dos servidores do Judiciário. Uma comissão que defende a proposta chegou a recolher assinaturas e organizar um abaixo-assinado, que foi apresentado à cúpula da Justiça e ao governo. Paulo Bernardo declarou-se favorável à medida, mas disse aos representantes dos servidores do Judiciário que, em nome da independência constitucional garantida aos Poderes da República, não vai interferir. No passado recente, Bernardo estimulou que carreiras típicas de Estado aderissem ao sistema de subsídio.

Clareza
Em 2008, quando o governo deu início ao megapacote de reajustes aos funcionários do Executivo federal — só concluído no mês passado —, os auditores da Receita Federal, os analistas do Banco Central, os delegados da Polícia Federal, os advogados da União e os gestores governamentais migraram para o modelo de subsídio. Na época, assim como agora ocorre com os servidores da Justiça, houve muita discussão e queda-de-braço. No Fisco, cerca de 10% dos servidores não foram contemplados com reajustes. O Banco Central, que também passou a remunerar seus funcionários dessa maneira, deixou a ver navios cerca de 1,2 mil pessoas.

Do ponto de vista da transparência dos gastos com a folha de pessoal, o subsídio é o formato mais elogiado pelos especialistas em contas públicas. Como no Judiciário existem dezenas de gratificações, vantagens e outros tipos de “penduricalhos” anexados aos contracheques, a fixação de uma parcela única daria à União e à sociedade melhores condições de monitorar a evolução dos custos com a mão de obra empregada na máquina estatal. “Isso seria o melhor dos mundos, porque daria muito maior clareza ao gasto e, no longo prazo, representaria grande economia aos cofres públicos”, resume um técnico do governo que acompanha as despesas com servidores e já trabalhou em equipes que elaboraram orçamentos.

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