sexta-feira, 5 de abril de 2013

HISTóRIA »
Animadores da memória
Instituições criadas na Estrutural e em Ceilândia zelam pela cultura e promovem uma série de atividades no sentido de estimular o fortalecimento dos laços de identidade dos jovens com as suas comunidades   CORREIO BSB 05.04

Cuidar da memória e preservá-la são uns dos principais motivos que fazem com que o Museu Casa da Memória Viva e o Ponto de Memória da Estrutural continuem com as portas abertas à comunidade. Didáticos, os espaços culturais contam as histórias da população com muita dedicação e mostram que os museus podem, sim, fugir do estigma de serem instituições elitistas.


           
Jevan resolveu criar o Museu Casa Memória Viva com a ajuda dos seus alunos

Museu Casa da Memória Viva

A casa da memória surgiu em 1993, quando Manoel Jevan, professor de história da rede pública de ensino, encontrou-se em um impasse, pois  ao ensinar as histórias das regiões administrativas, deparou-se com livros que tratavam os locais de maneira preconceituosa. “Eram livros de pessoas de fora que falavam sobre a Ceilândia. Não tinha nenhum  de moradores daqui”.

Para suprir a carência de materiais produzidos pelos próprios ceilandenses, Jevan criou a Sociedade dos pesquisadores e pioneiros da Ceilândia (SPPCei).

Com a iniciativa, seus alunos trouxeram diversas histórias de pioneiros. “Em 1997, eu já tinha juntado tanto material que distribui tudo em painéis. Comecei com cinco, um era em homenagem ao Vladimir de Carvalho, que é um padrinho para este projeto”, conta.

O material conquistado fica exposto, por um determinado tempo, na garagem da casa de Jevan. Além dos painéis, a Casa da Memória Viva também abriga diversos livros de escritores da Ceilândia e a Cordelteca candanga, que, segundo o criador do espaço, é a maior coleção de livros de cordel sobre Lampião de Brasília.

Todas as exposições que já passaram pelo museu tiveram como objetivo mostrar a Ceilândia histórica, a terra dos “candangos excluídos incansáveis”, como o próprio Jevan denomina. “Apresentar uma memória que não pertence a mim, não pertence aos estudantes que trazem esses pioneiros, que pertence a própria história da cidade”, explica.

"Não tinha nenhum livro sobre a Ceilândia escrito por moradores daqui”
Manoel Jevan, coordenador do Museu Casa da Memória Viva


Literatura
Pioneiros da Academia Ceilandense de Letras & Artes Populares — ACLAP, promoveram um encontro no dia 27 de março, para saudar novos membros e lançar o livro Coletânia Candanga. Dona Percilia, presidenta de honra, e o escritor mais antigo da Ceilândia, Joaquim Bezerra da Nóbrega, estiveram presentes no evento e prestigiaram os postulantes às cadeiras na "academia mais eclética do Brasil". O encontro também marcou a reabertura da Casa da Memória Viva, agora em novo endereço, na "casa com portão do Ipê amarelo" (QNN 40, Cj. J, Cs. 03; 3048-2630). O livro Coletânia Candanga está disponível para download gratuito no site www.oclubedosom.com.br/memoriaviva.htm.


           
Maria Abadia em frente a uma exposição sobre as mulheres da Estrutural

Ponto de Memória da Estrutural

Com o intuito de mostrar a história local e tendo a comunidade como peça fundamental, o Ponto de Memória da Estrutural (Q. 3, Cj. 14, Lt. 4, Setor Leste) tem chamado a atenção. Administrado por moradores da cidade-satélite, desenvolve diversas oficinas e reflete sobre a identidade local, cultura e movimentos sociais.

O projeto começou a ser desenvolvido em 2009 e foi inaugurado em seu atual endereço em 2011, por meio do Programa Pontos de Memória, feito em parceria com o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), o Governo do DF e a população.
Maria Abadia Teixeira de Jesus, uma das coordenadoras, conta que a proposta de ter um local voltado para a comunidade e que promove a cultura e a interação é nova na Estrutural, e tem rendido bons frutos. “A aproximação com a história tira os jovens da violência e faz com que tenham orgulho do lugar onde moram.”

O Ponto de memória representa uma vitória para os moradores da cidade, que encontram no próprio território programas culturais, e a intenção é que, cada vez mais, a comunidade tome posse do local.

O espaço já promoveu duas exposições. A primeira, Movimentos da Estrutural — Luta, resistência e conquista, apresentou com diversas fotos históricas e objetos, incluindo pneus, que simbolizaram manifestações. O trabalho também foi exposto na Universidade de Brasília.

A segunda, denominada A mulher e a cidade retrata o universo feminino. A mostra expõe uma parede coberta por fotos de donas de casa, costureiras, chefs de família, professoras. Todas têm em comum a Estrutural, cidade onde vivem.
A exposição recebe muitos moradores, e os rostos das mulheres chamam a atenção de quem passa. Prova do retorno são as duas catadoras de lixo que visitaram o espaço. Segundo Maria Abadia, elas estavam passando pela rua, ficaram curiosas, entraram e se encantaram.



"A aproximação com a história tira os jovens da violência e faz com que tenham orgulho do lugar onde moram”
Maria Abadia Teixeira, uma das coordenadoras do Ponto de Memória da Estrutural



Visita ilustre
Em novembro de 2012, o Ponto de Memória recebeu uma visita de peso em suas instalações: o renomado museólogo e professor Hugues de Varine-Bohan. De passagem por Brasília, ele fez questão de conhecer o Ponto de Memória, e, segundo Maria Abadia, o especialista em ações comunitárias e regeneração urbana ficou encantado com o projeto.

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"Puniu o clube a jogar..."
Sempre que se referia ao português de figuras públicas, jornalistas, etc., o saudoso Millôr Fernandes citava as regências estranhas, forçadas. Tinha plena razão o grande Millôr.  Pasquale Cipro Neto é professor de português  FOLHA SP 05.04
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Antes de ilustrar o que dizia o escritor, convém lembrar que a regência diz respeito à relação que se estabelece entre as palavras ou orações. Em "Ele gosta de futebol", por exemplo, o verbo "gostar" rege a preposição "de". A regência não se limita à relação entre os verbos e os seus complementos. Em "olhos verdes", por exemplo, o substantivo "olhos" é o regente, por isso o adjetivo ("verdes") se ajusta à flexão de número (plural) imposta pelo substantivo.

Voltando ao que dizia Millôr, há, sim, um festival de regências bizarras nos meios de comunicação. Salvo engano, o prato preferido desses inventores é a preposição "a". Em diversos casos em que naturalmente se usaria "para", surge, misteriosamente, o empafioso "a". Há algum tempo, um jornal publicou o seguinte título, a respeito de um teste comparativo entre dois automóveis: "Carro X não é páreo a carro Y". Páreo "a"? Alguém, em sã consciência, diria que o time X não é páreo "ao" Barcelona, por exemplo? Duvideodó!

"Carro X não é páreo a carro Y" tem fortíssimo cheiro de invencionice, mandracaria, falsa erudição. Alguém dirá que o "a" entrou no lugar do "para" por uma questão de espaço. Não era isso. Havia espaço mais do que suficiente para que o título fosse o óbvio ("Carro X não é páreo para carro Y").

Outro exemplo (este muito mais frequente do que o anterior) se vê com o verbo "socorrer". Jornalistas de rádio ou TV adoram dizer que "Fulano foi socorrido ao hospital X". Esse caso, que é um pouco diferente do anterior, tem características que merecem atenção. Temos aí um cruzamento. Explico: Fulano foi levado "ao" (ou "para o") hospital X e socorrido "no" hospital X. O que se faz? Uma saladinha... Embute-se o sentido do verbo "levar" no de "socorrer" e mantém-se a preposição que se usa com "levar"... Elaiá!

A construção corrente no padrão culto da língua não é essa; é esta, mais do que óbvia: "Fulano foi levado ao (ou 'para o') hospital X, onde foi socorrido". Para os que preferem algo mais sintético, pode-se usar a também óbvia construção "Fulano foi socorrido no hospital X" (elimina-se a óbvia informação de que Fulano foi levado para lá, já que, se o indivíduo foi socorrido no hospital X, é mais do que evidente que ele foi conduzido para lá).

Por fim, uma grande maravilha, que ouvi dia desses num programa esportivo: "A Conmebol puniu o clube a jogar com portões fechados...". Puniu o clube "a" jogar? Isso é que é inclusão verbal! O que talvez fosse algo como "Puniu o clube, o que o obriga a jogar..." ou "Puniu clube, que será obrigado a jogar..." acaba virando uma mixórdia que lembra de longe o português que eu, tu e o Chico Barrigudo usamos...

É óbvio que essas coisas fazem escola e se propagam rapidamente. Está aí o horroroso uso do verbo "ter", que não me deixa mentir. Parece que a imprensa não abre mão disso, nem a pau. É um tal de "O motorista teve a perna quebrada" ou bobagens afins que não há ouvido são que aguente...

Não posso encerrar a coluna sem deixar de citar o texto que vi na madrugada de ontem no blog do grande Juca Kfouri ("Ascendeu a chama verde"). Foi grande o número de pessoas que "corrigiram" Juca e/ou o site pelo "erro" (esse pessoal queria "acendeu" no lugar de "ascendeu")... E olhe que não faltou didatismo no texto do grande Juca ("O Palmeiras subia, ASCENDIA, e chegava..." -assim mesmo, com a palavra "ascendia" toda em maiúsculas). É dura a vida, meu caro Juca. Mas a gente aguenta! É isso.



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Ricardo Reis? Quem?
Hoje, ninguém ignora o que são "heterônimos", marca registrada de Fernando Pessoa (1888-1935): diferentes poetas, cada qual com personalidade e estilo próprios, todos criados pelo mesmo autor. VALOR   ECONÔMICO   05.04


 As diferenças são tantas que quase todo leitor tem o seu favorito. Para uns, é Álvaro de Campos, engenheiro naval, irrequieto, sintonizado com a agitação da grande cidade; sua meta na vida é "sentir tudo de todas as maneiras".   .Para outros, é Alberto Caeiro, camponês tranquilo, que quer apenas sentir a natureza e não pensar; ele acha que "há metafísica bastante em não pensar em nada". Para outros mais, é o próprio Pessoa, o dos poemas patrióticos, que trazem reflexões como esta: "Tudo vale a pena, se a alma não é pequena".

Nosso poeta passou a vida concebendo heterônimos, várias dezenas, mas completos são só três - quatro, se considerarmos o próprio como um deles. Logo, na lista acima um ficou de fora: Ricardo Reis, médico que nunca exerceu a profissão, autor de umas odes inspiradas em Horácio (século I a.C.). Ficou de fora porque até hoje não conheci ninguém que dissesse: Ricardo Reis? Ah, é o meu favorito. Não é uma boa razão para conhecê-lo de perto?

"O dr. Ricardo Reis nasceu dentro da minha alma", diz o seu criador, "no dia 29 de janeiro de 1914, pelas 11 horas da noite. Eu estivera ouvindo no dia anterior uma discussão extensa sobre os excessos, especialmente de realização, da arte moderna. Segundo o meu processo de sentir as cousas sem as sentir, fui-me deixando ir na onda dessa reação momentânea." Assim, Reis vai ganhando vida e, através dele, Pessoa desenvolve uma teoria neoclássica (ele esclarece) "segundo princípios que não adoto nem aceito".

Então o que temos é uma "reação" contra a arte moderna, cujos "excessos" o poeta repudia. E arte "moderna", no caso, é a vanguarda do início do século passado, irreverente, rebelde a todas as regras. Em represália, Reis escreve uma poesia marcada por rigorosa disciplina: formas fixas, ritmo bem medido, vocabulário erudito, ordem invertida e muita mitologia: "As rosas amo dos jardins de Adônis,/ Essas volucres amo, Lídia, rosas".

Quer dizer: "Amo as rosas dos jardins de Adônis,/ Amo, Lídia, essas rosas volucres". Adônis é um belo jovem, por quem Vênus, a deusa do amor, se apaixonara, e ele morre numa caçada; do seu sangue, espalhado na terra, brotam as primeiras flores da primavera. "Volucre" (latim) quer dizer volátil, fugaz.

Mas, já em 1914, quem estaria disposto a interromper a leitura, desmontar e remontar as frases e fazer pesquisas? Hoje, então, quase um século depois... E Pessoa tinha consciência disso. O que ele pretende é nos oferecer o desafio, e a oportunidade, de aperfeiçoar as qualidades das quais somos cada vez mais carentes: capacidade de concentração, atenção ao detalhe, disciplina interior, paciência de ir chegando aos poucos ao verdadeiro sentido das coisas. Autodomínio, enfim, em vez da submissão aos desejos que se multiplicam sem cessar, e são logo descartados.

Epicuro (341-270 a.C.) pregava que o homem deve buscar, na vida, o máximo de prazer. Para nós, modernos, isso quer dizer quantidade, fartura, abundância, ausência de limites. Mas não assim para Pessoa-Reis. "Quem não se contenta com pouco não se contenta com nada" (Epicuro). Querer todos os prazeres só resulta em dor e sofrimento: o homem é um ser insaciável. Logo, buscar o prazer quer dizer evitar a dor. Como? Satisfazendo-se com pouco. Nós, modernos, nos recusamos a chamar isso de "prazer".

A mesma Lídia, a das "rosas volucres", é várias vezes interpelada pelo poeta, que lhe dá conselhos e, em dado momento, convida: "Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do regato". E acrescenta: "Enlacemos as mãos". Não é um claro preâmbulo aos prazeres do amor? Mas em seguida ele reconsidera: "Desenlacemos as mãos". Se isso o surpreende, leitor, imagine a surpresa da pobre Lídia... Mas no fim ele explica: se eu morrer antes, ele diz, "lembrar-te-ás de mim depois/ Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,/ Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos". Se ela morrer antes, o resultado será o mesmo: nenhum deles sofrerá.

Para a sensibilidade moderna, um absurdo; para Ricardo Reis, a satisfação possível: o controle das paixões e dos instintos. "Abdica e sê rei de ti próprio", afirma. Para ele, os "excessos" da arte moderna são apenas um indício da decadência geral da sociedade. E isso não é fenômeno recente, ele adverte, começou com o advento do... cristianismo, "mera heresia pagã, produto de uma degenerescência nas ideias e nos sentimentos de onde deriva o estado perpetuamente mórbido da nossa civilização". O cristianismo, diz Reis, é "um sistema religioso em que tomam relevo os sentimentos íntimos de cada indivíduo, em que o interesse do espírito se concentra em seus próprios movimentos".

Para ele, todos os males do mundo resultam do subjetivismo ao qual fomos condenados pela religião cristã, tornada hegemônica: cada cristão é obrigado a viver dentro de si o seu deus, sem jamais saber se é o mesmo deus do vizinho ao lado, tão cristão quanto ele. Daí a desagregação e a dispersão, não só na esfera religiosa, mas em tudo o mais. Cada homem é um ser à parte, incapaz de comungar com os outros homens ou com a natureza. Neste nosso mundo, solidariedade virou uma questão de "sentimento", quando deveria ser, como foi antes de Cristo, uma questão de razão e consciência.

A solução, segundo Reis, é a volta ao paganismo, único momento da história em que o homem se sentiu plenamente integrado na realidade de todas as coisas. Mas como não seria possível simplesmente apagar 20 séculos de cristianismo, ele propõe que Cristo seja aceito como um deus a mais, vindo somar-se aos outros deuses do Olimpo.

Um dos seus poemas mais controvertidos diz: "Não a ti, Cristo, odeio ou te não quero./ Em ti como nos outros creio deuses mais velhos./ Só te tenho por não mais nem menos/ Do que eles". E, umas estrofes adiante: "Cura tu, idólatra exclusivo de Cristo, que a vida/ É múltipla e todos os dias são diferentes dos outros,/ E só sendo múltiplos como eles/ Estaremos com a verdade". Mas sua conclusão é pessimista: "O paganismo morreu. O cristianismo, que por decadência e degeneração descende dele, substituiu-o definitivamente. Está envenenada para sempre a alma humana".

Conclusão: Reis não representa uma volta ao passado, mas sim um fundo mergulho neste nosso tempo, que, com sua avidez e seu sonho de liberdade ilimitada, nos condena à eterna insatisfação. É uma crítica implacável à nossa leviandade, ao nosso egoísmo, ao nosso fanatismo. Se não for por isso que todos fogem dele, é uma boa razão, quem sabe, para que até hoje ninguém dissesse: Ricardo Reis? Ah, é o meu favorito.

Carlos Felipe Moisés é poeta ("Noite Nula", 2008) e crítico literário ("Tradição & Ruptura", 2012). Foi o curador da exposição "Fernando Pessoa: Plural como o Universo", no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, em 2010-2011

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