segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013








"Não tem mais Carnaval. Acabaram com tudo", diz Zeca Pagodinho.
Zeca Pagodinho acaba a entrevista, cantarola Bezerra da Silva ("Favela quando é favela, não deixa morar delator") e conta logo qual é a boa: "Eu vou no jogo ali um bocadinho. Todo dia eu vou para o maldito daquele jogo. Ah, mas é ali que eu sei de tudo: que barracão que está pronto, quem vai sair. Sambista, jogo, futebol e bicheiro, está todo mundo junto." FOLHA SP 04.02
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Ex-anotador do jogo do bicho, o mais conhecido sambista do país é avesso a protocolos. Quando agendou a entrevista com a Folha, sua assessora sugeriu que a conversa fosse conduzida da maneira mais informal possível.

Leonardo Wen/Folhapress

O cantor e compositor Zeca Pagodinho
"Até hoje, é complicado você falar com um 'negocião' daquele te filmando. Você tem que saber o que falar", explica o cantor. "Eu sempre falo algum palavrão."

Zeca talvez seja o único brasileiro que levou uma caixinha de cerveja ao visitar o presidente da República ("lá poderia não ter"). O anfitrião de então é considerado um herói para ele, mas apenas isso. "Tem gente que pensa que sou amigo do Lula. Eu não tenho essa amizade, essa coisa de estar com ele toda hora."

Segundos depois, já está elogiando o ministro do STF Joaquim Barbosa, relator do mensalão e fã de Zeca. "Esse foi o cara de 2012. Gosto de gente decente. O cara botou para moer mesmo." E brinda: "Saúde, seu Joaquim."

*
Folha - Você ficou com a surpreso com a repercussão do episódio de Xerém?
Zeca Pagodinho - Fiquei. Nunca tinha visto aquilo de perto. Na televisão a gente vê, mas você ver de perto seus vizinhos indo embora na lama é confuso, complicado para o ser humano. Fica difícil a gente ver as crianças chorando. Gente que é meu vizinho ali, que a gente vê na feira, no botequim, na cachoeira. O que eu fiz eu faria em qualquer outro lugar. Claro que Xerém é onde eu criei meus filhos, é um lugar que eu adoro, tenho bons amigos, uma gente boa. Já estou lá há 20 e poucos anos, tenho escola de música lá, eu conheço todo mundo. A gente faz festa de Páscoa, de Natal, Dia da Criança, a gente sabe quem está ali perto.

E a repercussão envolvendo seu nome? A maioria das pessoas te elogiou, mas algumas te criticaram.
Eu não tive tempo para olhar isso não. Não tive tempo pra ver essas coisas não.

O cantor Zeca Pagodinho fala à Folha em restaurante na Barra da Tijuca, no Rio
Por que você gosta tanto de lá?
Porque foi lá que eu comecei a arrumar a minha vida. Lá eu comecei a botar a minha cabeça para pensar. Eu era muito "deixa-a-vida-me-levar". E ali eu comecei a parar para pensar, estruturar a minha vida. Fiz muita coisa boa ali. Fiz disco de samba ali, o "Quintal do Pagodinho" --o primeiro, 12 anos atrás. Fizemos agora um vídeo. Fizemos tanta coisa ali, [levei] o Paulinho da Viola. Muito tempo ali, naquelas águas ali com as crianças. Meus filhos foram para lá com 3 anos, hoje estão com 25. Quer dizer, aquele povo todo aí a gente conhece todo mundo.

O que você talvez não saiba é que, antes de eu ajudar todo mundo, de madrugada, eles já tinham entrado no meu quintal e salvado meus bois, meus cabritos. Eu nem vi.

Ah é?
É. Para você ver como é Xerém. Escutei só a falação e perguntei: "O que está havendo aí?". Não sabia o que era. Depois, de manhã, minha filha falou: "Pai, eles mergulharam lá, os bois estão morrendo afogados, tocaram os bois para a parte de cima, tiraram os cabritos."

E aí você acordou e foi ajudar o pessoal?
Acordei e fui ver o que estava havendo. Eu vi Mônica [sua mulher] na rua. Falei: "Tua mãe está lá fora". [A filha falou:] Ih pai, está feio o negócio lá fora", minha filha falou. Aí eu fui lá ver. A gente vê, né, cara? Você vê seus vizinhos. Muitos ali trabalharam na minha casa, uns trabalham até hoje. É complicado. São amigos de botequim, de beira de campo. Você entendeu?

Você acaba de voltar de São Paulo. São Paulo é mesmo o túmulo do samba ou isso é lenda?
Nunca ouvi falar nisso. Quer dizer, já ouvi falar, mas nunca presenciei isso. Quando eu comecei a minha carreira com o Raça Brasileira, cheguei em São Paulo e vi o maior movimento de samba, (algo) que eu nunca vi em lugar nenhum. Que era "O Samba Pede Passagem", com Moisés da Rocha. Tinha Seu Evaristo, outro grande contribuidor do samba, Camisa Verde era a coisa mais... Tinha o São Paulo Chique. Eu fui pra lá pra fazer um show e fiquei lá sete meses, pra você ter ideia como era. Fiz grandes amigos e vivia naquelas escolas. No Camisa mais, do falecido Tobias. Mas ia na Vai-Vai, ia na Mocidade, na Rosas de Ouro, no Peruche. Tenho muitos amigos em São Paulo e sempre vi muito movimento de samba lá. Movimento organizado. Tinha ruas que você fazia dez shows na mesma rua. Eu fazia três shows numa noite. Fazia um aqui, outro ali. Tem gente boa de samba lá. Todo mundo ia pra lá. Estourava lá, sempre foi assim. Originais do Samba, Nosso Samba, todo mundo ia pra lá, Almir Guineto, Mussum.

Você conseguiu fazer um trabalho que atinge gente de diferentes classes sociais. Qual o segredo?
Fazer. A minha vida não tem muita fórmula, a minha vida vai acontecendo. A gente tem vontade de fazer as coisas faz. Fazer simples é porque a gente é simples. Aí sai sempre pelo lado, vamos dizer assim, mais povão, com elementos de esquina, de comunidade, é o que a gente gosta, é o que o povo gosta. Agora, com qualidade, né. Tem que fazer as coisas com qualidade. Fazer o popular, o que é nosso, o carioca, com músicos bons, com estúdio bom.

Tem muito samba ruim por aí?
Não escuto samba ruim. Só escuto samba bom. Todos os que eu escuto são bons.

Como você está vendo a situação do samba hoje?
Está bom. Ótimo. Todo mundo trabalhando. O "Quintal do Pagodinho" vendeu 105 mil cópias em três meses. Estamos trabalhando direto, todo mundo trabalho. Está ótimo o samba. Acho que falta rádio para tocar. Só isso. Gente boa tem muita. Muita gente boa. Está sobrando. Mas não tem onde tocar.

Por quê?
Aí não sei... O samba só tem uma rádio, mas não tem informação, não falam do autor, não tem um programa de samba, como tinha. Como tinha aqui Arlênio Lívio. Falta um programa de samba. Inclusive na televisão. Um espaço para o samba. Mas a gente vai vivendo assim mesmo. Está bom também.

O samba tinha o domínio dos morros do Rio. E esse espaço foi ocupado pelo funk. Por que aconteceu isso?
Olha, muito tempo que eu não frequento morro, pelo menos para noitada. Às vezes vou de dia. Faço umas compras, na comunidade e tal. Vou nos hortifrútis. Vou no botequim tomar cerveja. Mesmo porque eu vim para a Barra. Na Barra, só a Rocinha que tem escola de samba. Aqui não tem favela perto. Com a violência também todo mundo ficou mais devagar em ir pra morro. Não só eu nem como todo mundo. A gente não vai mais para Mangueira, para Salgueiro, para não sei para onde. Também ficou também com 50 anos. Não tem como também. A gente era mais novo. Agora se eu subir uma ladeira...meu amigo, tem que armar um barraco para eu dormir lá em cima. E também já não tem mais barraco. Já não tem mais tendinha. Vou fazer um morro pra mim, do meu jeito. Eu ia fazer, não deixaram, lá em Xerém.

Como ia ser?
Ia ser assim: barraco do Arlindo, barraco do Derli, barraco do pessoal do Quintal. Os partideiros ficam perto. E uma tendinha só para reunir todo mundo, uma quadra embaixo, gambiarra. Quando chover, não tem samba.

Como vai ficar o samba nesse novo Rio, esse Rio Olímpico, sem o morro como ele era?
Não sei. Vou fazer meu morro e resolver isso. Meu morro vai ser a solução.

Mas você acha que isso vai mudar o samba de alguma forma?
Da minha geração continua mesma coisa. Com a mesma linguagem. Eu, Arlindo, Sombrinha, Sombra, Fundo de Quintal, Dudu Nobre.

E o pessoal mais novo?
Os mais velhos também já reclamavam da gente. Diziam que a gente estava escorrendo muito. Que fizemos umas harmonias que não tinha. Isso antigamente. Negócio de dissonância para eles... Hummm. É assim mesmo, a vida é essa. O resto, quem ficar ficou. Eu tenho uma discoteca. Eu tenho disco da Manaceia, da Velha Guarda. Você vê a diferença para os meus discos, do Arlindo, do Sombrinha, é outra coisa. Mas tudo bem. Cada um vai se visitando.

[Vira para o garçom] Me dá um chope lá, pelamordedeus? Senão não vou ficar bom dessa gripe.

Dá para explicar samba para gringo?
O gringo gosta de... Mangueira: tum-tum-tuntun-tum. Salgueiro. Portela. Carnaval. Copacabana. Bloco. É isso que gringo gosta. O samba só quem sabe é a gente, é a nossa linguagem. Não tem jeito.

Explicar partido alto é impossível?
Não, claro que não. Só quem pratica é que sabe.

E nem com o pessoal vindo para a Olimpíada esse estereótipo do samba vai mudar?
Isso vai passar, rapaz. Olimpíada não vai ficar pra sempre não. O samba é eterno. Pode até mudar, mas é o samba. Não tem gringo não tem ninguém não.

[Toca o telefone] Teteu, deixa eu acabar de gravar aqui no "JB", daqui a pouco te ligo de volta. "JB" não, como é que é? A Folha. A Folha de S.Paulo. (assessora ri) "JB" até acabou. Teteu, não me irrita. Pô. [Brinda] Saravá.

E você nem se preocupa em explicar o samba para os gringos?
Pra quê? Eles não vão entender mesmo. Se ele vier morar aqui, mesmo assim não dá. Isso é coisa nossa. Está no nosso sangue. Ninguém pode entender essas coisas.

A ascensão social dos brasileiros vai mudar a maneira de fazer samba?
Cara, você muda tua personalidade, você muda tua linguagem. Pode ficar rico e continuar a mesma coisa, vendo a mesma realidade e dali tirar a tua música. É dali que a gente tira a música, do dia a dia. Da mulher do amigo que foi embora. Ou duma tua mesmo. Ou duma briga de vizinho. A onda é essa. A gente faz partido alto toda hora, está sempre brincando, mesmo que não seja para gravar. Mas para sacanear o outro. Cria um samba na hora sacaneando o outro, o outro cria um verso de lá, [você] cria um verso de cá. A gente vai assim. Tanto samba a gente faz e esquece pra lá porque partido é assim: brinca o refrão agora, encarna num, encarna no outro, depois foi embora esqueceu, amanhã faz outro.

E em relação à popularidade do samba dentro do Brasil? O samba tem dificuldade em chegar ao interior do país?
Pelo menos comigo aonde eu vou sou bem recebido, todo mundo canta minhas músicas. As músicas que eu gravei. Não vejo isso. Na Bahia eu sei quem faz samba. Manaus eu sei quem faz samba. No Recife eu sei quem faz samba. Quando eu chego no Recife já sei, vou encontrar belo chico. E os amigos de lá que tão. Vamos lá no samba do amigo ali, os caras vão no hotel, a gente brinca, fala alguma coisa. Está sempre ligado. Sempre falando sobre.

Qual sua opinião sobre as escolas de samba no Rio hoje?
Nenhuma. Eu sou portelense, mas amo todas as escolas. Jamais poderia ser jurado. Ia dar dez para todo mundo. Só o fato de a pessoa se empenhar para fazer uma obra daquela para mim já ganhou. Eu não tenho olho para ser jurado. Acho todo o espetáculo maravilhoso.

As escolas têm sido muito criticadas pela escolha dos temas dos sambas-enredo ultimamente. Você vê isso como um problema?
Eu não frequento essa área. Eu nunca fui sambista de ir para escola de samba. A gente falava assim: o sambista de meio de ano. Sambista que gravava com Beth Carvalho, com Alcione, com Agepê, com Martinho. Sambista de meio de ano. Muitos deles, como eu, não se metiam em samba-enredo. Quando chegava a hora do samba-enredo, a gente tirava férias. Passava o Carnaval, a gente voltava. Ó, a Beth vai gravar, Alcione vai gravar, Mussum vai gravar. Nossa praia sempre foi essa. Mesmo porque antigamente eram 12 escolas. Cada uma com seus puxadores. Gente que tinha a característica da escola. Como o Neguinho da Beija Flor é Beija Flor até hoje. Antigamente você tinha Silvinho da Portela. Morreu na Portela. Aroldo? Da Ilha: Aroldo da Ilha. Então tocava um samba no rádio, conhecia mais pela voz do cara também. Gostava do samba, aprendia. Era mais fácil aprender 12 sambas.

Hoje as pessoas não conhecem. Por quê?
Porque não toca. Antigamente o samba começava a tocar em novembro. Dezembro a gente já sabia tudo. De Mangueira, de Portela, de Império. [Hoje] Não sabem nada. Não sabe o samba do ano passado. Eu sei o samba da década de 60, 70, eu conheço. Mas você não sabe o samba do ano passado. Muita coisa, e toca pouco.

Você vai desfilar neste ano?
Não. Meu Carnaval agora eu vou pra casa de um amigo em Xerém. Levo as crianças todas, amigas da minha filha, vai minha mãe. A gente vai para um sítio lá dentro, aí eu contrato uma bandinha, enfeito tudo como se fosse o carnaval antigo, e as crianças se fantasiam, mesma coisa: mamãe-eu-quero, índio-quer-apito. E a Mônica vai fazer pipoca, cachorro-quente, batata frita. Enfim, o Carnaval. Com confete, serpentina, tudo.

Do Carnaval de hoje você não gosta?
Não tem Carnaval. Vou gostar de quê? Não tem nada. Roubaram tudo, sumiram com tudo. Acabaram com tudo o que é da cultura. Tudo. Não sei que doideira deu nesse mundo aí.

Mas por que esse processo?
Também queria saber. Queria ler isso no jornal.

Desde quando?
Já de muito tempo. Vai muito tempo atrás. É a cultura do carioca, principalmente. Do brasileiro, mas mais do carioca. Antigamente o subúrbio era coisa enfeitada. Tinha coreto. Tinha baile infantil nos clubes. Também não tem mais clube, é um ou outro aqui.

Você acha que a violência teve algum papel?
Também. Não tem baile infantil pra você levar [as crianças]. Lá no meu condomínio tem, no prédio, mas eu não vou estar lá. Não sei o que aconteceu. As ruas não são mais enfeitadas. Também no meu bairro, em Del Castilho, tinha as cornetas. A gente ouvia as músicas de carnaval. Era um Carnaval. Não tem mais. Acho que Olinda que ainda tem. Carnaval. A Bahia tem, mas é axé, aquelas coisas assim. Estou falando de Carnaval, máscara, eu acho que é mais pro lado de Olinda.

No Rio você começou a notar esse declínio a partir de quando?
Há mais de 20 anos. Meu último filho nasceu no Carnaval. Ainda tinha Carnaval na Abolição. De lá pra cá...

E a relação do jogo do bicho com as escolas? Isso teve algum papel? É maléfico ou é benéfico?
Jogo, futebol, samba e feira é tudo igual. É todo mundo da mesma coisa. O cara que está vendendo maçã logo mais é o cara que está tocando ou cantando, e está no talão, e está jogando uma bola no domingo ou no sábado, ou é profissional. Sempre caminhou junto. Pelo que eu sei, as escolas cresceram por causa dos bicheiros, não foi mais por causa de ninguém. O jogo é que sempre bancava as escolas. Hoje em dia tem o governo, tem não sei quem, tem a prefeitura. Mas as escolas de samba sempre foram coisa do bicheiro, que levaram esse Carnaval até agora. Agora parece que vai mudar, não sei. Se até agora estava bom, meu medo é que mexa e...

E o Carnaval de rua aqui no Rio? Esse ano haverá quase 700 blocos.
É legal. A prefeitura deveria apoiar isso, dando mais banheiro, preparando a cidade para isso. Vem gente de fora. Não adianta botar dez banheiros para 200 mil pessoas. Não dá. E na hora de mijar nego não pensa em... Na hora que der vontade... Eu mesmo sou um, que tenho incontinência urinária, eu tomo remédio. Se puder eu vou mijar andando mesmo. Não quero saber não, fazer o quê?

Assessora - Você não tem incontinência urinária.

Zeca Pagodinho - Tenho. Eu tomo remédio para glicose. Aliás, eu não tenho paciência pra esperar, hahaha. É quase igual! Daí eu não saio, fico em casa, que meu banheiro é só meu, é pertinho, qualquer coisa eu saio correndo!

Mas você acha que dava para aproveitar esse movimento dos blocos para promover o samba mais?
Dá. Tem que ter. A televisão tinha que passar não só o Carnaval da avenida, mas o Carnaval da Rio Branco, se é que ainda tem, a grande sociedade, bloco, as crianças fantasiadas com o pai levando para ver os blocos, gente dançando frevo, aquela coisa, que era o Carnaval. Todo carnaval, a família inteira descia com a gente, para ver o Carnaval. Os tios, as tias levavam as crianças para a cidade, para ver o Carnaval. A escola de samba não, que era muito tarde. Se eu não me engano, nem passava na televisão naquele tempo.

Você ainda vai ao Cacique (de Ramos)?
De vez em quando eu vou. Vim pra cá. E a maioria dos amigos está viajando. Vamos fazer uma reunião com todo mundo. Aí liga para um, liga para outro, liga para outro.

O que você gosta de ouvir?
Tudo. Menos música internacional.

Nada internacional?
Não, não. Nem tenho. Minha filha que tem, meus filhos.

Mas você ouve rock brasileiro?
Não.

Sertanejo?
De vez em quando. Uma música ou outra.

Quais?
Ah, do Zezé, Leonardo, essa turma mais tradicional. Eu assisto àquele programa do Amado Batista, de vez em quando fico ali curtindo ele. Gosto muito das coisas assim bem da terra mesmo. Assim como o partido alto, que é do morro, da favela, do malandro esperto. Eu gosto dessas coisas, daqueles caras bem da roça mesmo, que cantam a moda de viola, que canta o-meu-boi-ficou-doente, aquelas histórias, o sertanejo.

Como você escolhe o que vai ouvir de samba?
Ah, eu tenho as minhas coisas já do lado, pertinho. Escuto muito Monarco, Paulinho da Viola, Chico Santana, sou assim, de antigo. Nelson Gonçalves. Agora eu estou ficando maluco. Silvio Caldas. Tem dia que eu pego tudo o que eu já gravei. Aí escuto o Mussum, Martinho.

Como você escolhe o que vai gravar?
O endereço vem certo. Em outubro... novembro... quando começamos a pensar nesse disco novo. que vai sair agora em abril, o papo era só música antiga. Lá do tempo do meu pai, do meu avô... canta: "Lata d'água na cabeeeça"... Esses negócios bem da antiga. Eles cantavam em casa depois do almoço, de domingo, meu tio pegava o violão e tal. Serginho Meriti, que é autor de "Deixa a Vida me Levar", "Iaiaiá", tem uma série de coisas do Serginho que eu já gravei, a gente estava numa parada ali onde estava a rapaziada, pessoal de escola de samba, onde a gente se reúne para falar disso. Aí o Serginho Meriti falou: "tu taí no Quebra Mar [lugar na Barra da Tijuca, no Rio]?" Eu falei: "tô". (Ele:) "Pô, vou aí contigo". Aí chegou Serginho Meriti. E falou: "Eu queria te mostrar um negócio. Posso mostrar?". Falou: "Eu não vou gravar este ano não. Só te mostrar." Eu: "Então vai". Ele cantou uma música que fala de superação, que fala da criança que nasce em lugar pobre, que pode ser um vencedor. Exatamente isso. Como é que o nome da música?

Assessora: "Vida que Segue"

"Vida que Segue", que dá o nome ao disco. Não tinha nada a ver com o projeto. Eu falei: "Não, não posso deixar essa música". Falei pra ele: "Já sei, vou gravar essa música com as crianças de Xerém". Você pode nascer na ralé, ser simplesmente um qualquer, mas não ser qualquer um. Você pode, sim, dar uma sorte, estudar, se formar. A música fala disso. E a gente já... Já botei voz. Xuxa me parece que vai gravar com a gente, porque ficou emocionadíssima com a música quando mostrei pra ela. Ela falou: "Zeca, eu vou com você, a gente vai fazer com as crianças de Xerém". Eu quero gravar com as crianças de Xerém. Não quero saber de "o projeto é outro". É uma música boa. É uma música que fala coisa boa.

O que é um bom samba?
É isso. Tem que ter uma melodia boa. Ou tem que ser divertido. Ou tem que dar uma mensagem bacana. Tem que falar do amor. Tem que ter um papo bacana. Um papo. Não um "aiaiai-oioioi-iuiuiuiu-aiaiaiai". Aí não vale.

Você não acha que as regras das escolas de samba podem contribuir contra a criação de bons sambas?
Eu posso te falar pouco disso. Não navego nessa área. Entendo muito pouco disso. Aliás, quanto menos eu entendo, acho melhor ainda.

Os compositores são sempre seus amigos ou você topa conhecer gente nova? Como você escolhe?
É que meus amigos... É gente forte, né. É um time complicado. Tem vez que eu tiro até música minha. A rapaziada vem com tudo. Eu já atuei como compositor e sei como é isso, você fica doido pra gravar com alguém que te dê um bom "advance" também, né?

E você compondo? Você está compondo menos ultimamente, não?
Bem menos. Porque a gente trabalha muito, né, cara? Tem muita coisa para viajar, para falar, pra fazer imprensa, não sei o quê. E neto que nasce, e filha que está crescendo. É muita coisa. E também a gente já não tem mais aquela inspiração. De vez em quando a gente faz um negócio. Com o Dudu, Aragão. Vamos fazer um samba? Vamolá, amanhã vou na tua casa. Amanhã não vai dar não, não sei o que, tenho que viajar.

E quando vocês compõem, como é?
Pode ser andando, pode ser bebendo, pode ser dentro do avião. Compor é qualquer lugar. Não tem essa onda não. Mas era nosso vício maior, era esse. Qualquer coisa: "aí, dá um samba, né". Mas depois a vida do Zeca Pagodinho, do intérprete, me deu uma birimbolada que, já chego em casa, só trocar a mala que a outra...

Tem alguma coisa que você gostaria de gravar e não gravou ainda?
Porra. Muita coisa.

Tem algum gênero diferente que gostaria de gravar?
Eu gosto de samba, só sei cantar samba. Nos outros posso até dar um enganada, pra fazer uma participação no disco de algum amigo, mas no samba eu faço gol.

Qual o segredo para ter uma carreira tão longa?
Não tem segredo nenhum, cara. Só aconteceu comigo. Pode acontecer com outro qualquer. Eu fui um dos escolhidos.

Você se vê cantando até a idade de Elza [Soares, 75 anos], Dona Ivone [Lara, 91], Riachão [91]?
Queria, né? Se tivesse bem bacana. Espero estar bem bacana pra isso. E vou estar, com fé em Deus.

Como está sua relação com a bebida?
Me dou muito bem com ela. Não tenho problema nenhum com ela. Nos damos muito bem. Nos encontramos sempre. Batemos um papo.

Ficaram folclóricos os pedidos da sua mulher pra você beber um pouco menos. Você tem escutado ela?
Eu é que peço. Para mim mesmo. Mas eu não me escuto... [chega mais um chope] Aí. Eu nem pedi, ó. E é pecado enjeitar...

Você falou numa entrevista lá atrás que tava começando a fazer uma dieta. Você continuou?
Continuei. Cortei tudo. Menos o meu chopinho. Brahma, de preferência. Não, de preferência não. Meu chope é Brahma.

Você bebe alguma coisa além de cerveja? Vinho?
Só se eu estiver doente. Ou numa gravação, para deixar a garganta aquecida. Porque geralmente na gravação eu estou nervoso. Para gravar eu tenho quase que me operar. Passa e estala a coluna. Vai chegando perto é um problema.

E uísque?
Deus me livre. Já bebi de tudo. Hoje meu fígado só aceita uma cervejinha geladinha.

Cachaça também não?
Nunca fui. Hoje até que eu... Quando eu estou com meu pai, assim, pra dar uma agradada nele. Falo para ele: "Pai, dois toques"! Ele está com 85 anos. Eu digo: "Pai, o sr. gostava de tomar sua cachacinha, toma aqui". Minha mãe fica olhando e eu, "Não, vamos nós dois". É para fazer aquele H assim. Mas meu negócio sempre foi cerveja. Por isso eu tenho essa barriguinha bonitinha assim. Graças a Deus.

A fama de bebum lhe incomoda?
Não. Eu tenho um lado muito maior e mais bonito do que esse lado pequeno, pobre. Meu outro lado é muito mais bonito e muito maior. Eu não posso me preocupar com quem me criticou. Então por que não foi para lá me ajudar? Me criticar é mole. Tinha que ir para lá, fazer alguma coisa. E o lado que ficou mais forte... você vê, com um apelo meu, o que aconteceu em Xerém, depois de um pedido que eu fiz. Eu sou um cara querido e todo mundo sabe que sou verdadeiro. Comigo não tem caô.

Aquele episódio da Brahma e da Schincariol. Você se arrependeu?
Eu não me arrependo de nada do que fiz.

Você errou em algum momento?
Não errei em nada.

Erraram com você?
Não sei. Aquilo foi uma jogada, entre três coisas grandes, três personalidades, todo mundo se deu bem, todo mundo ficou feliz, então esquece que eu nem me lembro mais disso.

Uma das vezes em que você foi visitar [o então presidente] Lula, você levou uma caixinha de Brahma. Como foi isso?
Ué, porque lá poderia não ter, e eu bebo a Brahma, ué.

E foi ideia sua mesmo?
Ué, ideia de quem, ô?

E o que o presidente falou?
Nada, ué. Falar o quê? "Já tinha aqui". Eu: "Ah, mas não sei, trouxe a minha". Claro que eu levo. Nem em todo lugar tem a minha cerveja. Festa que eu vou, eu sempre levo meu isopor com a minha Brahma. Vai que lá a cerveja é outra, não vou poder beber? Ou ver ter que sair para procurar em posto de gasolina? Então já levo a minha cervejinha no meu isopor.

Uma música sua ficou famosa no penta, e você cantou abraçado com Scolari na volta da seleção, em cima do trio. O que achou da volta dele?
É outra coisa que não me pergunta que eu nem leio.

Não gosta de futebol?
Não.

Não?!
Não. Acho muito chato aquele povo que corre pra lá, corre pra cá. 90 minutos. Não, deixa eu ficar na rua. Noventa minutos é uma eternidade. Eu faço tanta coisa em 90 minutos. Ficar parando, olhando, gritando, xingando? Ah não.

Nunca foi de ir ao Maracanã?
Não, tem muita coisa para fazer por aí...

Mas tem um time de preferência?
Botafogo. Mas porque meu irmão me ensinou a ser Botafogo. Não tenho paciência para acompanhar. Não conheço. Não sei. Conheço assim, Jairzinho, Paulo Cesar Caju, o capitão, aí eu conheço.

Mas Copa do Mundo você assiste?
Ah, claro, sou brasileiro. Assisto e faço a maior festa na minha casa. Todos os jogos, panelada de comida, rapaziada toda lá, bebida à vontade. Eu gosto de festa, meu negócio é festa. Nao quero tomar partido com nada. Quero saber de felicidade, de comemorar. É disso que eu quero saber.

Que legado você imagina deixar pra música brasileira? Daqui a cem anos vão falar: o Zeca era o cara que...
Fui fiel ao meu samba e à minha música. E ao meu país, musicalmente falando.

Quando você começou a carreira, lá atrás, o que imaginava fazer?
Não imaginava nada. Nada. Rapaz, o artista é complicado. Se você perguntar a qualquer um outro, ele vai responder a mesma coisa. Ninguém imagina nada. Eu imaginava ouvir minha música tocar no rádio. Eu trabalhava. Todo mundo trabalhava. Até hoje muitos sambistas que a gente conhece, um é do Correio, outro trabalha no sei o quê, Arlindo era da Caixa Econômica, acho que Luiz Carlos da Vila teve emprego também. Todo mundo tinha seu emprego. A gente fazia samba porque gostava. Inclusive nas horas do trabalho em que o patrão não estava olhando, fazia um samba. Eu fiz vários no escritório em que eu trabalhava, não fazia nada lá mesmo... Foi um primo meu que arrumou porque ele era o chefe, fazia porra nenhuma, só fazia samba, só ficava escrevendo.

Você se arrependeu de ter parado de estudar cedo?
Claro. Eu tenho pavor que meus filhos não estudem. Lá todo mundo tem que estudar.

Se você tivesse continuado estudando, acha que seria o Zeca hoje?
Não sei, isso aí a gente não sabe. Não pode prever essas coisas. É bom pra gente mesmo, ser culto, saber das coisas. Eu li bastante, ainda leio de vez em quando, estou sempre lendo.

O que você gosta de ler?
Cara, qualquer coisa. Jornal, livro, revista de avião, tô sempre procurando me informar, melhorar meu vocabulário --isso só com a leitura. Faço com a minha filha sempre. Está de bobeira? Passo na estante, pego um livro, leio dois três capítulos, daqui a uns meses, eu vejo esse livro aí, vou ler de novo um capítulo, e assim eu vou.

Cinema e televisão?
Não tenho paciência. Teatro? Pô...Só se for cinema que tiver bebida. Aí eu fico. Mas ficar parado olhando aí não dá. Se tiver uma mesinha pra você comer um pastelzinho, uma cervejinha, aí eu assisto qualquer coisa. Mas a seco não. Até show que as vezes eu vou de amigo, se eu não levar uma bebidinha escondida... Levo!

Você diz que era muito rebelde. Que fugia do Chacrinha. Como era isso?
Eu não estava acostumado. Eu não queria isso. Não sei como deu certo. Eu lutava contra isso. Eu ia embora. Eu fugia. Pulei muro da Manchete, lá em Vista Alegre. Pulei o muro e fui embora. Deixei a menina que trabalhava comigo com a roupa, ela já sabia que eu ia embora. Ela: "Tu não vai embora não"... Eu olhei uma casa assim, o cara "pô, é aniversário da minha filha, vai ser uma surpresa, corta um bolo com ela". Depois eu olhei e falei "posso sair por ali"? o cara "ué, pode". Eu era cria dali, pulei, tinha um ponto de táxi logo embaixo assim, os coroa que estavam acostumado a me "panhar", eles "Ô Zequinha". Eu não estava acostumado. Até hoje, é complicado você falar com um "negocião" daquele te filmando. Você tem que saber o que falar.

Isso te incomoda.
Eu sempre falo algum palavrão.

Outra frase sua, "o dinheiro sempre correu atrás de mim". Por que diz isso?
Rapaz, parece que tem coisa que se você não der bola... Eu nunca me preocupei com isso. Essas coisas não estão no meu mundo. Claro que a gente gosta de ganhar dinheiro, mas para seu filho ter uma boa escola, um alimento na sua casa, você ajudar os amigos, ajudar os parentes. Mas viver em função do dinheiro? Não faz minha cabeça. Ponho um bolo de dinheiro no bolso assim e saio... "Toma cem pra vc", está duro aí? Toma um galo para você. Depois que eu fiz 25 anos, eu fui trabalhar em jogo, daí para lá eu passei a não dar bola mais pra essas coisas. Aí passei a gravar, eu gravava com Alcione, com Beth, dava um dinheirinho bacana. Só que eu não tinha juízo, né, eu botava tudo no bolso. Chegava em casa e jogava tudo dentro do armário assim. Não queria saber, não tinha conta, não tinha nada. Foi em Xerém que conheci alguns amigos que me ensinaram a trabalhar, mexer com dinheiro, para poder ter uma estabilidade pra mim e pra minha família, fazer um investimento, um imóvel. Esses amigos que iam ver as coisas que eu ia comprar. Não, não, aqui não compra não, compra ali. Por isso eu sou grato, muito, a Xerém.

Não se vê voltando a morar em Xerém?
Queria, mas acho difícil. Até porque tudo meu está aqui [na Barra da Tijuca], escritório, estúdio, gravadora. Como toda hora tenho que estar resolvendo uma coisa ou outra. Tem também um selo meu, de vez em quando alguém grava, coloca no meu selo. A gente tem uma atividade de música, de falar de samba. Arlindo mora aqui, Dudu mora aqui, Aragão mora aqui, tem samba do quebra-mar, tem samba do barril, tem samba no terreirão, a gravação do Jorge Perlingeiro aqui no Baby Beef às terças-feiras. Então dá um movimento. E a garotada cresceu, meus filhos cresceram, estão na faculdade, está tudo por aqui. A pequenininha... Tem que ter escola. Xerém não tem escola... Escola boa tem, mas não tem cinema, teatro, tudo do que criança precisa.

E política, Zeca? Você acompanha?
Não. Não.

E sua relação com Lula?
O Lula foi um herói. Um exemplo. O que essa música do Serginho Meriti fala. O Lula é um desses. Veio lá do coisa e foi presidente da República. Então o cara virou um ídolo para a gente.

Você já falou dessa música pra ele?
Ainda não tive com ele. E aliás não tenho essa coisa de estar com ele toda hora. Tem gente que pensa que sou amigo do Lula. Eu não tenho essa amizade com Lula. Tem gente que acha que vivo na casa do Faustão, da falecida Hebe, que sou amicíssimo da Xuxa. Não é assim. A gente se conhece, se encontra, mas não tem essa coisa.

Julgamento do mensalão você não acompanhou então?
Acompanhei, claro. Foi uma vitória pro Brasil. Esse foi um cara de 2012, o Joaquim Barbosa. O cara.

Que é seu fã.
É, eu soube disso. Também sou fã dele. Gosto dele. Gosto de gente decente. Cara botou para moer mesmo. Saúde, seu Joaquim.

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Tesouros cravados em livros
Ex libris Eurico Gaspar Dutra: armadura simboliza coragem e nobreza
O maior ex libris é uma xilogravura de 22,3cm x 15cm: simplicidade. CORREIO BSB 04.02


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Ter é um verbo que se conjuga há milênios. E se pratica há mais tempo ainda. Desde que o homem se deu por consciente de si mesmo, precisou também ser proprietário. Nem sempre isso rendeu histórias bonitas, mas há uma que merece ser contada. Ela começa quando o homem finalmente conseguiu juntar a capacidade de registrar suas expressões e o fascínio pela permanência (e apropriação) do conhecimento. Os primeiros livros foram impressos no século 15. Os chineses haviam inventado o papel 600 anos antes e, em meados de 1800, quem gostava de livros se deu conta de que precisava dizer ao mundo que eles tinham dono. Surgiram então os primeiros ex libris, esses selinhos de papel gravados com monogramas, frases complexas, o nome do proprietário e desenhos invariavelmente feitos por artistas. Um pequenino alvo da cobiça de bibliófilos, colecionadores de arte e da artista Stella Maris de Figueiredo Bertinazzo, professora da Universidade de Brasília (UnB), morta em 2001, e autora de uma das mais extensas pesquisas sobre ex libris já realizadas no Brasil.

Desde 1998, Stella Maris planejava publicar o livro, mas somente no fim de 2012 o estudo ganhou capa e forma. Ex libris — Pequeno objeto do desejo, uma edição de capa dura, em papel reciclado e com reproduções dos vários ex libris pesquisados pela artista, inclusive aqueles catalogados na seção de Obras Raras da Biblioteca Central da UnB. “Hoje, essa coleção está, na medida do possível, estudada, catalogada, classificada, restaurada, tombada e acondicionada, enfim, salva”, escreveu a autora, na introdução do livro, antes de lamentar a preferência pelas novas tecnologias por parte dos estagiários. “Os bibliotecandos de hoje, futuros cientistas da informação, estão mais interessados no computador do que nas bibliotecas tradicionais, ao que me pareceu. São muitos os fatos da vida que destroem nossos planos e intenções”, lamenta a autora.

Dividida em capítulos que passeiam pela história do livro e da gravura para chegar aos ex libris, a publicação é tão preciosa quanto o objeto do qual trata. A apresentação do bibliófilo José Mindlin avisa sobre as “inúmeras revelações” trazidas pelo livro e lembra como o tema foi pouco estudado no Brasil. Mindlin, um confesso obcecado por tudo que cerca a história do livro, era também um antiquado: ganhou da filha o seu próprio ex libris em uma época em que livros são identificados, no máximo, com uma grosseira inscrição do nome nas primeiras páginas.

Campo virgem

Como escreveu Stella Maris, o estudo desses pequenos objetos de desejo no Brasil é um “campo virgem”, mas também fonte de vasta potencialidade. Em Brasília, onde a pesquisadora concentrou o projeto, as buscas foram frustradas. “Os museus e bibliotecas do Distrito Federal foram rastreados sem grande valia: um pequeno catálogo na Imprensa Nacional contendo ex libris assinados por seus titulares; no Museu da Imprensa, um outro título; um livro no Ibict e só. Curiosa e lastimavelmente, seus bibliotecários desconheciam o que fosse ex libris”, escreveu Stella Maris.

Boa parte dos ex libris catalogada pela professora está na Biblioteca da UnB. São cerca de 2 mil, todos pertencentes à coleção do crítico Homero Pires, doada à Seção de Obras Raras da instituição. “Ela não achou muitos no Brasil porque os maiores colecionadores são particulares. A gente tem uma grande coleção que foi do Barão do Rio Branco e está na Biblioteca Histórica do Itamarty, no Rio, mas não está catalogado”, explica a estudante Sara Seilert, que pesquisa ex libris na UnB e tocou o projeto de publicação do livro de Stella Maris graças à orientação de Fátima de Figueiredo, irmã da professora. Sara explica que o livro não é inédito — Manuel Esteves publicou Ex libris em 1954 — mas é o mais completo na literatura brasileira. “Não é apenas um catálogo, ela conseguiu fazer um apanhado crítico da produção de ex libris no Brasil e o livro expande para o colecionismo”, diz.

"O ex libris é a marca mais antiga do amor sincero dos homens por seus bens literários"
Henri Bouchot, historiador

           

EX LIBRIS — PEQUENO OBJETO DO DESEJO
De Stella Maris Bertinazzo. Editora UnB, 406 páginas.
R$ 139.

Para saber mais

Origem alemã
Ex libris eram feitos a partir da combinação de muitas técnicas, mas sem dúvida a mais importante e antiga foi a xilogravura. A colaboração entre o artista e o proprietário, autor da encomenda, também era intensa, já que o pequenino selo deveria conter o máximo de informações visuais sobre o dono do livro. Um ex libris deveria ser capaz de contar rapidamente a trajetória daquele volume, quem o leu, quando e de onde veio.

“A história do ex libris acompanha a história do livro e da gravura. Esse cunho artístico acaba despertando o desejo do colecionismo, transformando essas marcas numa forma independente de arte, fato contestado por ex libristas ortodoxos. Segundo eles, o ex libris nasceu agregado ao livro e não tem vida própria fora desse seu abrigo original”, ensinou Stella Maris.

A tradição desembarcou no Brasil com a Coroa Portuguesa, em 1808, mas, nos anos 1960, o hábito praticamente desapareceu. Não se sabe ao certo quem inventou a prática de marcar os livros com selos que eram verdadeiras obras de arte, mas pesquisadores constataram que foi na Alemanha do século 15 que nasceu a ideia.





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