segunda-feira, 22 de março de 2010

A internet não vai acabar com os jornais impressos

El País 19/03

Alguns preveem o fim da imprensa escrita por causa da explosão da internet. O verdadeiro dilema, no entanto, não está entre jornalismo impresso ou digital, mas, como sempre, entre bom ou mau jornalismo

Na rede já proliferavam as narrativas do terremoto, e também vídeos falsos como o que as televisões recolheram no YouTube, mas o mundo só fez uma ideia precisa da catástrofe do Haiti quando os enviados especiais puseram seus pés lá. Só então chegamos a ter uma medida da tragédia, a aspirar o odor adocicado da cadaverina, a sentir as mãos dos meninos perdidos que se agarravam às dos jornalistas.

Um sentimento de orgulho profissional percorreu as redações de meio mundo quando os "nossos" chegaram ao Haiti e começaram a cumprir seu ofício: descrever o que há, averiguar o que acontece, apalpar o sofrimento, remexer consciências e responsabilidades, desencadear a onda solidária. "Ei, companheiros, vejam: não estamos acabados, ainda podemos fazer bem as coisas", veio a ser essa mensagem. Orgulho, sim, porque o jornalismo anda com a moral deprimida. Muitos leitores, sobretudo jovens, já não visitam outro quiosque senão o totalmente grátis da rede, e sem negócio não há independência econômica nem informativa.

O panorama internacional projeta uma sombra preocupante: fechamento de veículos, redução de plantéis, migração de anunciantes para a web, previsões apocalípticas de que o jornalismo escrito tem os dias contados. "Outubro de 2044" - anote essa data porque, segundo as extrapolações do professor de jornalismo Philip Meyer, nessa data os jornais americanos perderão o último de seus leitores. No entanto, a análise das notícias divulgadas por 53 canais de informação de Baltimore mostrou que a imprensa generalista, seja em papel ou na web, produz 48% das notícias por elaboração própria; os jornais especializados, 13%; as televisões locais, 28% e as rádios, 7%, contra 4% das novas mídias: jornais digitais, blogs, sites locais, Twitter...

De acordo com esse estudo do gabinete de ideias Centro de Pesquisas Pew, os canais da internet, imbatíveis para dar a notícia em primeiro lugar, geralmente se limitam a reciclar as informações das mídias convencionais, sem dar maior valor agregado. Seria um triste paradoxo que a notícia verificada e contextualizada fosse engolida exatamente pela avalanche planetária atual de fontes emissoras e multiplicadoras de dados e opiniões. Que notícias (notícias, não comunicados de imprensa, destilações do marketing, doutrinas ou pregações) serão difundidas na internet quando esses "dinossauros" estiverem extintos? A eliminação da imprensa escrita acarretará o desaparecimento do jornalismo e dos jornalistas, pelo menos como os conhecemos até hoje?

No papel, o nascimento da internet - livre, gratuita, simultânea, horizontal, ilimitada - só poderia ser motivo de satisfação: chegou a mudança de paradigma, o novo vínculo entre imprensa e cidadania que permite transmitir todas as vozes, difundir as verdades que a mídia cala devido às pressões do poder. Acaba-se finalmente o oligopólio informativo que a elite profissional vinha exercendo sobre um público majoritariamente passivo. Está inaugurada a "democracia comunicativa".

Especialista dá soluções para crise no jornalismo impresso

À espera dos ajustes econômicos, jurídicos, técnicos e jornalísticos, o risco hoje consiste em jogar fora a água suja da banheira com a criança dentro. É essa a incerteza própria das situações em que o velho não acaba de morrer e o novo não acaba de nascer, ou simplesmente a angústia da adaptação forçada que o jornalismo escrito já conheceu com o surgimento do rádio e da televisão?

Além do anonimato, a internet deve ter algo para que, nestes primórdios, atraia tantos navegantes na intolerância que veem no bate-papo em grupo não um espaço para debater e rebater, mas um campo de batalha. Por que pululam aí pessoas inclinadas a denegrir ou vilipendiar, mentes preguiçosas que não leem o que desqualificam e soltam a primeira coisa que lhes passa pela cabeça? Não são só os "trolls", internautas especializados em provocar e irritar, que assaltam os fóruns e arrasam o diálogo racional comedido. São, sobretudo, internautas que veem sentido em arruinar o crédito e a reputação alheios, enquanto pontificam sobre o divino e o humano.

Em seu livrinho "Internet, o Êxtase Preocupante", Alain Finkielkraut escreveu que os cidadãos do ciberespaço comemoram como vitória da igualdade a liquefação do autor reconhecido. O filósofo francês acredita que o exercício irresponsável desse "direito a ser autor" que assiste a todo internauta e a possibilidade que oferece a mídia de agir sem compromisso, conduz a um modelo de "liberdade fatal". A escritora Rosa Pereda lembrou que o escândalo, a fraude, o insulto e a maledicência são as formas mais eficazes de controle social. Sua impressão é que na rede se reproduz o tom da discussão tabernal, com a diferença de que hoje estamos diante de uma taberna global permanente, onde tudo o que se diz, fica.

Segundo a Associação de Internautas, 70% dos espanhóis que navegam pela rede têm dificuldade para distinguir os boatos das notícias confiáveis. Embora a tese que nega fundamento à profissão de jornalista esteja no ambiente - "Por que não posso entrevistar Zapatero?", reclamava o orador de um debate universitário -, os internautas pensam que as versões online da imprensa convencional são, apesar de tudo, as fontes mais confiáveis.

É que o jornalismo se consagrou exatamente como filtro eficaz contra o boato. Equivocam-se os que acreditam que o jornalismo na rede pode prescindir da formação, do código deontológico, do estatuto de redação, da ética ou da vergonha mortal. "Ah, como se os jornalistas respeitassem seus códigos", dirão os que pregam o fim do jornalismo. Apesar de tudo, talvez os cínicos jornalistas retratados com maestria em "A Primeira Página", de Billy Wilder, sejam sujeitos simpáticos comparados com o que prolifera por aí. Melhor estar entre os três P's (putas, policiais, periodistas) do que se colocar nas mãos de grupos inescrupulosos ou de aficionados temerários atacados pela soberba.

Os que acreditam que podem suplantar o jornalista sem problemas poderiam fazer o simples exercício de elaborar uma notícia no tempo que os profissionais levam, para compreender que captar o significado, ordenar os dados com critério, contextualizá-los e redigi-los de forma compreensível e atraente é uma tarefa que exige conhecer o ofício. Não vimos escritores consagrados naufragar no gênero da reportagem, e intelectuais perder-se em entrevistas-rio, sem princípio nem fim? Com suas misérias e o pesado lastro de seus outros três P's domésticos - "paro" [desemprego, em espanhol], precariedade e pressões -, o jornalismo, onde o êxito é sempre efêmero e a reputação profissional caminha à beira do precipício, cumpre uma função imprescindível.

Apesar da qualidade indubitável de alguns espaços e do mérito pessoal dos que os animam, nosso universo digital está muito colorido por plataformas sectárias, "confidenciais" onde claudica a regra da verificação, fabulistas informativos que todos os dias rearmam a teoria da conspiração do 11 de Março, tertúlias de boca quente em disputa para ver quem diz a mais gorda. Mas a rede não inventou a mentira. A rentável escola da invectiva nacional já funcionava antes entre nós, como funcionavam os carniceiros que fazem espetáculo do mais sagrado.

Segundo isso, o problema não estaria entre o novo e o velho jornalismos, mas entre o bom e o mau, na urgência de restabelecer a relação perdida com o público.

"Enquanto muitos de nossos concorrentes se retiram, continuamos investindo em mais e melhor jornalismo, conscientes de que essa é a força de nossa marca. Acreditamos em um jornalismo de verificação e valorizamos mais a precisão que a velocidade ou a sensação. Ao contrário do que acontece em muitas redações, alçadas em guerra contra os que dirigem o negócio, em meu jornal nos organizamos para manter um sentimento de união objetiva", explicou Bill Keller, editor de "The New York Times". Ele está convencido de que sobreviverão "alguns dos melhores jornais" porque pensa que a sociedade exige um jornalismo sério. "Apesar de nossas desgraças, creio com todo o meu coração que os jornais, quer cheguem à porta de casa, a seu celular, a seu iPhone ou ao chip implantado em seu córtex cerebral, estarão conosco durante muito tempo", disse.

Portanto, asfixiados e desconcertados, mas ainda não acabados. Busca-se informação rigorosa e honesta sobre o que acontece na rua, ou seja, a receita clássica do jornalismo.

__ ♪ ­­­­_

__________________________________♫_______ ♪ ­­­­______

__ ♪ ­­­­_

__________________________________♫_______ ♪ ­­­­______

Ciência explica por que, no voto, emoção pesa mais que razão

FSP 22/03

Descoberta de pesquisas nos EUA de que escolha do candidato não é racional impõe questionamento sobre sentido da ideia de democracia representativa

Como o eleitor escolhe seus candidatos? A resposta, já há tempos intuída por políticos e marqueteiros e que agora ganha apoio da neurociência, é que, na definição do voto, emoções são significativamente mais importantes que a razão.
Experimentos conduzidos nos EUA pelo psicólogo Drew Westen mostram que, com base apenas em questionários de cinco minutos sobre os sentimentos das pessoas em relação a certos temas, é possível prever com 80% de acuidade a resposta que elas darão a perguntas bastante precisas, como "o presidente mentiu ou disse a verdade?", "a Constituição autoriza ou não a adoção da medida proposta pelo governo?".
Enriquecer esse modelo com conteúdos mais propriamente racionais, considerando também informações sobre a situação em que o presidente teria mentido, por exemplo, tem impacto negligenciável nas previsões, que ganham apenas entre 0,5 e 3 pontos percentuais de precisão. Em outras palavras, a realidade é só um detalhe para o eleitor, que raramente muda sua opinião em virtude de fatos que lhe sejam apresentados.
As implicações dessas descobertas, que vão ganhando atenção crescente dos departamentos de psicologia e ciência política nos Estados Unidos, não são triviais. Se o voto não é o resultado de uma escolha racional e ponderada do cidadão -e poderia, em princípio, ser substituído por um teste de personalidade-, a ideia da democracia representativa continua a fazer sentido?

Livros
Questões como essa estão bem sistematizadas em dois livros lançados nos EUA. Em "The Political Brain" (o cérebro político), de 2007, Westen, hoje na Universidade Emory, dedica 500 páginas a recapitular experimentos que esmiúçam o comportamento do eleitorado e a mostrar as estratégias que costuma dar certo em campanhas.
No outro, "The Political Mind" (a mente política), o linguista e cientista cognitivo George Lakoff usa 300 páginas para explicar por que os cérebros de conservadores e progressistas funcionam de forma diferente (e inconciliável).
Mirando alto, Lakoff, hoje na Universidade da Califórnia em Berkeley, aproveita o livro para advogar pela fundação de um "novo iluminismo", no qual a razão deixaria de ser idealizada como uma máquina de calcular objetiva e desapaixonada e passaria a ser considerada como o que de fato é: um processo bem menos razoável, no qual 98% das "decisões" ocorrem inconscientemente e sob influência de emoções que nem sequer desconfiamos possuir.

"Frames"
O cérebro político pensa em termos de "frames" (enquadramentos) e metáforas. Podemos chamar um grupo armado que lute por uma causa determinada de "terroristas" ou de "combatentes da liberdade". E isso faz toda a diferença.
"Frames" são mais que etiquetas ideológicas que pregamos a objetos. A capacidade dos neurônios de se conectar em redes que podem ser ativadas por contiguidade semântica faz com que as palavras escolhidas tenham o dom de comunicar sentimentos. Sem nos dar conta, sempre que lemos a palavra "terror", sensações de angústia e medo são acionadas. De modo análogo, a palavra "liberdade" dispara estímulos positivos.
Experimentos de Westen mostraram que a ativação dessas redes, embora inconsciente, influencia fortemente as nossas decisões.
Assim, os embates políticos não se resolvem tanto no plano das propostas, mas principalmente das narrativas que partidos e postulantes escolhem para contar suas histórias e transmitir seus valores. Devem constituir uma história fácil de contar e que fale ao cérebro emocional do eleitor.
Especialmente para Lakoff, metáforas são muito mais que um recurso linguístico para explicar ideias. Elas são a matéria-prima do pensamento e têm existência física no cérebro. Pares de ideias frequentemente disparadas juntas acabam se consolidando numa rede neuronal que se torna mais forte à medida em que vai sendo mais utilizada.
Sempre que uma conexão é ativada, ela inibe o acionamento de redes alternativas que possam existir. O viés do militante em favor de seu partido não é necessariamente mau-caratismo (veja quadro). Ele de fato percebe o mundo de forma menos objetiva.

Moderação
A questão que fica é: a democracia ainda para em pé? Num quadro em que as decisões dos eleitores são principalmente fruto de uma combinação de propaganda subliminar com estímulos consolidados ao longo dos primeiros anos de vida, faz sentido determinar o destino da nação através do voto?
A resposta é afirmativa. Antes de mais nada, nem todo mundo é um militante radical e nem todas as questões debatidas são politicamente explosivas. Um número significativo de pessoas não é tão veemente em suas convicções políticas e adota visões de mundo ora conservadoras, ora progressistas dependendo do assunto. É em geral esse contingente que acaba definindo o resultado de eleições. Não deixa de ser uma virtude da democracia que os destinos de um país sejam definidos pelos mais moderados.
Outro ponto é que, embora seja difícil contornar conexões neuronais já consolidadas, não é impossível. Discursos que ofereçam "frames" alternativos e explicitem os processos mentais em operação podem levar o eleitor a mudar de ideia, constituindo uma forma legítima de persuasão política.
Apesar de as democracias modernas terem sido concebidas por filósofos iluministas que as moldaram segundo uma concepção de razão que hoje sabemos falsa, o fato é que há mais de 200 anos elas vêm se mostrando um sistema bastante funcional, capaz na maioria das vezes de autocorrigir-se.

18/03/2010

Futuro da democracia no mundo dependerá em boa parte das classes médias chinesas, indianas e brasileiras

El País

São as classes médias que mandam. Pelo menos nos países democráticos, onde os governantes devem atender, sobretudo, a suas necessidades para ganhar eleições. São muito diferentes de um país para outro e mais ainda de um continente para outro, mas em toda parte querem finalmente o mesmo: paz, estabilidade e prosperidade, e traduzido para questões concretas: postos de trabalho, salários decentes, moradias dignas, educação de qualidade, aposentadorias razoáveis.

À diferença das classes dominantes em períodos anteriores da história da humanidade, estas são amplas e extensas. Nada a ver com a aristocracia do Antigo Regime nem com a alta burguesia do capitalismo clássico, elitistas e fechadas, com frequência condenadas ao isolamento e à decadência. Pode ocorrer que não sejam democráticas em seus valores ou pelo sistema político em que se enquadram, mas o são sociologicamente ali onde são hegemônicas.

São classes lutadoras, embora sua luta nada tenha a ver com a luta de classes. Lutam por existir e crescer: o Partido Comunista Chinês reivindica a maior contribuição para a história das classes médias. Afirma que tirou da pobreza 500 milhões de pessoas em uma geração, mais de um terço de sua população atual. E se seus dirigentes preferem não ouvir nem falar de abertura democrática e situam o cume de sua modernização para daqui a cem anos, é porque ainda contam com 150 milhões de pobres aos quais não chegaram os benefícios do capitalismo comunista, e estão firmemente convencidos de que não vão tirá-los da pobreza em um sistema descentralizado, pluralista e respeitoso com os direitos humanos como o que exigem os dissidentes e propõem os países ocidentais.

As classes médias crescerão na Ásia em um ritmo desenfreado nos próximos anos, mas estancarão ou só crescerão ligeiramente no resto do planeta e sobretudo onde já são o grosso da sociedade, como é o caso do que costumamos chamar de Ocidente. Embora a mutação seja pacífica, isto é, sem guerras entre as classes médias dos diversos países e regiões, sabemos que ocorrerá e já está ocorrendo em forma de uma intensa competição.

Mas as grandes mudanças econômicas e geopolíticas que nos esperam neste século 21, e que em boa medida já começaram, são produtos fundamentalmente da expansão das classes médias em todo o mundo. A globalização que promoveu o crescimento das classes médias tem duas faces: uma positiva, que distribui benefícios sinérgicos a todos; e outra negativa, na qual os efeitos são de soma zero. Exemplos: os empregos que se criam na China desaparecem dos EUA; e o petróleo que consomem os carros em Paris sobe de preço quando são muitos os que querem andar de carro em Mumbai; as emissões para a atmosfera dos países industrializados ao longo da história limitam as possibilidades de futuro desenvolvimento dos países emergentes e os obrigam a investir em tecnologias menos poluidoras.

Como em todo jogo de soma zero, o que os novos ganham os mais velhos perdem, na distribuição do poder mundial e no peso de cada um nas instituições internacionais. É a mutação do G8 para o G20 e inclusive a desenvoltura com que os dirigentes dessas novas potências do século 21 ousam enfrentar o presidente dos EUA.

Sem suas classes médias por trás, pressionando e exigindo, com um enorme potencial de consumo, um peso crescente na economia global e inclusive um novo orgulho nacional, não seriam possíveis essas novas atitudes que enlouquecem as diplomacias americana e europeia. As classes médias europeias e americanas demonstraram que onde crescem melhor é em regimes de liberdade e democracia. Mas não significa que a liberdade e a democracia sejam o abono imprescindível para sua expansão.

Na Espanha conhecemos de primeira mão a expansão das classes médias sob a ditadura. Graças à ditadura, dirão os céticos em matéria de liberdades. Apesar da ditadura, responderão os liberais. Não é uma reflexão historicista: vale para o maior viveiro de classes médias da história que é a China. E transcende o âmbito chinês. O mundo está se desocidentalizando em marcha forçada, segundo expressão de Javier Solano, utilizada há poucos dias em Barcelona, em sua primeira conferência como presidente do Centro para a Economia Global e a Geopolítica do Esade.

E já estamos nos conformando com o deslocamento de seu centro de gravidade. O problema é saber se vamos nos conformar também com que nossos valores fiquem diluídos ou desvalorizados. O futuro das liberdades e da democracia no mundo dependerá em boa parte de como as classes médias chinesas, indianas e brasileiras encarem sua relação com as liberdades individuais e a democracia parlamentar. Nada menos.

Nenhum comentário: