terça-feira, 9 de julho de 2013
Notícias do Edu
A revolta que saiu das entrelinhas
.
Na Tenda dos Autores, William Waack foi o mediador
de debate entre o economista André Lara Resende e o filósofo Marcos Nobre sobre
a recente onda de manifestações. VALOR ECONˆMICO 08.07
.
A parafernália já estava montada quando uma senhora
de cabelos brancos subiu ao palco para saldar a plateia que se aglomerava dentro
e, principalmente, fora da tenda onde aconteceriam os shows da noite. Num
português claudicante, a inglesa Liz Calder, mentora da Flip, disse que
acompanhava de perto as revoltas. "É um grito contra a desigualdade e a
corrupção, mas devemos reconhecer que o país tem uma presidente que sabe
ouvir." A plateia demorou uns dez segundos para reagir. E metade desse
tempo a aplaudir.
Quando Gilberto Gil subiu ao palco, metade das
pistas, onde muitos entram com ingresso de cortesia, ainda estava desocupada.
Atrás do gradil a plateia era pelo menos três vezes maior. Uma moça que estava
do lado de fora interpelou um rapaz da organização. Estava possessa com a
qualidade do som, o preço e a limitação dos ingressos.
Mas as revoltas de Paraty só estavam no começo. Gil
cantou duas músicas antes da primeira das muitas pausas que faria ao longo do
show. Mal começou a falar e foi interrompido por gritos e assobios. Propôs uma
assembleia ali, no meio do show, para entender a razão dos protestos. Sua
audiência continuava a gritar, mas não se fazia entender. "É difícil saber
do que reclamam. É tão difuso quanto as manifestações." Mais uma vez, as
palmas foram breves.
Voltou a cantar com um som um pouco melhor e
inventou um gancho para retomar seu showmício. Achou que os 11 anos que se
completavam desde a primeira edição da festa e o mesmo número de jogadores dos
times de futebol lhe dariam salvo-conduto. Tinha oito anos de idade quando o
Brasil, na narração de Ary Barroso, perdeu a final de 1950 no Maracanã.
Quer a Copa e, do palco, distribuiu tarefas à
audiência. Que se organizassem em uma ONG para comprar ingressos e revendê-los
aos mais pobres. Ao fim do show, a plateia só pediu bis para suas músicas.
Plateia da mesa Narrar a rua, com Pablo Capilé,
Juan Arias, Marcus Faustini e Fabiano Calixto
As revoltas de junho invadiram o mais tradicional
evento literário do país. Das mesas de debate ao cais do Porto, não havia como
fugir dos arroubos nelas inspirados. À saída do show de Gil, já na madrugada,
um rap de jovens atravessou o caminho: "Se meus versos de amor não saem de
mim é porque estou preso na M'Boi Mirim". Nem por mar parecia haver saída.
Um barco oferecia passeio com recital de poesia e ainda cobrava R$ 30.
O curador da Flip, Miguel Conde, bem que tentou
formatar a invasão. Disse que literatura de elite só servia para reafirmar uma
estratificação social cujas desigualdades estavam agora sendo reclamadas nas
ruas. E que Graciliano Ramos, a quem foi dedicada a festa encerrada ontem,
veria com desconfiança um evento de iniciados.
Quem encarnou mais radicalmente a desconfiança do
escritor alagoano foi Pablo Capilé, um produtor cultural de 33 anos que, a
partir de Cuiabá, montou uma rede de produção e divulgação para músicos que não
tinham espaço no circuito das gravadoras e hoje exibe um portfólio de 40 mil
artistas e 300 festivais. Convidado de uma das mesas extras que a Flip montou
para debater as revoltas, Capilé esparramou-se na cadeira. Estendeu as pernas
para frente deixando a barra desfiada da calça jeans bem adiante da linha em
que se perfilavam seus companheiros de debate.
Dali explicou como tinha ido parar no jornalismo.
Viu que não bastava sangrar o circuito tradicional da música. Para "romper
a crise civilizatória de um sistema baseado na exploração" era preciso
mais. O Brasil quer mais.
A mediadora, entusiasmada, explicava à plateia que,
enquanto jornalistas famosos são expulsos das manifestações e as TVs são
obrigadas a cobri-las de helicóptero, o Ninja (Narrativas Independentes,
Jornalismo e Ação) tem reinado nas transmissões ao vivo a partir de celulares.
Capilé começou atirando: "Não existem mais os
de fora, só os de dentro". E abriu para a metralhadora de seu companheiro
de debate, o cineasta Marcus Faustini. O alvo foi o terceiro participante da
mesa, Juan Árias, correspondente do "El País" que se dizia orgulhoso
do Brasil adormecido que se levantara. "Não tinha essa de gigante
adormecido, tava todo mundo atuando nos seus coletivos", contestou
Faustini.
O Gil que resistira à pauta das manifestações foi
evocado como aliado. Capilé aludiu o estopim das ruas a retrocessos na política
cultural desde a saída do ex-ministro da Cultura. Via abertura da gestão Gil à
difusão cultural pela internet abrigada pela licença Creative Commons, sufocada
pelo projeto que acabou de ser aprovado no Congresso sobre direitos autorais.
O auditório estava mais vazio do que o das outras
mesas sobre as revoltas que aconteceriam dois dias depois, mas o debate foi um
dos mais aplaudidos do evento. A dupla Capilé e Faustini estava ali para
causar. O Ninja disse que estava tudo errado, a começar dos jornalistas
convidados a fazer a mediação dos debates da Flip. A provocação, como se
provaria dois dias depois, era premonitória.
Mas jornalistas e políticos não eram o alvo
primeiro dos ativistas. Faustini preferia mirar nos interesses por eles
mediados. Ao seu lado, Capilé falava sem alterar a pose de estudado desleixo:
"Caiu um monte de ficha ao mesmo tempo e tá todo mundo catando". Nada
do que ouve entre os analistas de plantão o sensibiliza. Espera que primeira
geração de intelectuais do Prouni o faça.
A dupla está fora do raio de alcance de Eduardo
Coutinho, autor de "Cabra Marcado para Morrer". O documentarista não
sabe ligar computador. Em uma entrevista, diz que a rebeldia ainda é movida
pela classe média, mas saúda a impertinência juvenil "Eles estão na idade
de ter certezas." A moçada ainda está para descobrir que não existe
paraíso e inferno, preto e branco: "A palavra mais importante da língua
portuguesa é a conjunção adversativa 'e'".
Apresentação do documentarista Eduardo Coutinho
Mas certezas precoces não são uma doença infantil.
Em uma mesa naquela noite sobre MPB, o cantor Lobão disse que vibrou com a explosão
do passe livre, mas, para fazer jus à rapidez com que costuma mudar de lugar,
acha que o movimento virou coisa de revista "Capricho": "Faça um
penteado para descolar seu manifestante gatinho". Três pessoas num
auditório com capacidade de cem pessoas lotado aplaudiram quando Lobão, depois
de historiar sua aproximação com o PT, acusou o partido de querer
"institucionalizar o socialismo bolivariano no país".
Entre as certezas juvenis de Capilé e o mau-humor
de Eduardo Coutinho, cabe a galáxia, mas, para consumo da Flip, confrontaram-se
ali o jornalismo engajado e a lente naturalista de "Cabra Marcado para
Morrer". Num trecho exibido durante a mesa com o documentarista, Coutinho
é mostrado no Engenho Galileia, em Pernambuco, entrevistando Mariano, o camponês
que participara das filmagens em 1964. Dezessete anos depois, conta que saiu do
movimento porque tinha virado crente e não queria que a igreja o associasse
"à revolução".
Ali estava mais do que um camponês explorado pela
monocultura da cana e dominado pela religião. Coutinho não exibia um camponês
desprovido de razão. Se fosse associado à revolução ele acreditava que não
entraria no céu. E isso bastava para que a câmera o deixasse em paz.
Na condução de Eduardo Escorel, os papeis de pai e
filho pareciam trocados. Aos 80 anos, Eduardo Coutinho parecia um rebelde
mimado que podia levantar daquela mesa a qualquer hora, incomodado que se dizia
em estar do outro lado da câmera.
Escorel o conduziu até o momento mais feliz da mesa
quando, revendo uma passagem de "Peões", Coutinho define sua lente.
Um metalúrgico de São Bernardo conta a aspereza da vida de soldador, que, por
estar com mais de 40 anos, já não conseguia emprego fixo. Ele se define como
peão, aquele que usa uniforme e trabalha no chão da fábrica com cartão de
ponto. Não queria legar a profissão ao filho. Silencia, mareja os olhos e
pergunta para seu entrevistador" Você já foi peão?". Com a negativa
de Coutinho, o metalúrgico mostrava que sua condição não apenas não podia ser
transmitida como não dependia de uma lente redentora.
Àquela altura, Coutinho, que iniciara a conversa
falando para dentro e emburrado, já tinha a plateia na mão. Contou da busca de
personagens em seus documentários. "Geralmente quem sabe contar uma
história não tem caráter. Quem tem é chato." Guardou um lugar no céu para
si na exceção. Relembrou a coluna de horóscopo que escreveu sob pseudônimo para
a "Piauí" ("leia Foucault pulando as páginas pares"),
justificou o cigarro que continua a acender mesmo depois de efisema
("fumar é uma atitude budista, de aceitação da vida") e alinhavou sua
proposta de reforma política "pra quando for eleito ditador".
Naquela sexta, a Flip parecia ter chegado ao pico
de lotação. Comerciantes reclamaram, mas a organização garantiu que o público
girava em torno dos 20 mil de todos os anos. No dia seguinte, a festa seria
invadida pelos paratienses que resolveram aproveitar a presença de jornalistas
para chamar a atenção ao lado B da cidade.
Manifestação de barqueiros que pediam mais
fiscalização no cais
A passagem de ônibus custa R$ 3,70, mais cara do
que na maior parte das capitais. O charme da cidade que o arquiteto português
Eduardo Souto de Moura disse ser mais portuguesa do que a maioria das cidades
do seu país, inflaciona o metro quadrado. Uma gari paga R$ 450 de aluguel por
um quarto com banheiro e cozinha. Vende latinhas e compra a atadura que falta
no hospital para a eripsela da sogra. Queixa-se da prefeitura, comandada pelo
PT, mas não da Flip. "Os do festival da cachaça fazem mais bagunça. Esses
aí até que são limpinhos."
Um barqueiro, que diz ter sido garçom de João de
Orleans de Bragança, o príncipe da cidade, reclama da falta de regulamentação
da atividade. As grandes escunas, que têm restaurante, levam turistas até de
graça, desde que façam refeição a bordo, e acabam com o movimento dos barcos
pequenos. A disputa bordeja os limites da guerra de facções das favelas locais,
dominadas pelo Comando Vermelho e Terceiro Comando.
Ouviam-se ruídos da manifestação na noite de sábado
quando o jornalista William Waack, apresentador do "Jornal da Globo",
entrou no palco da Tenda dos Autores para mediar o debate entre o economista
André Lara Resende, ex-presidente do BNDES e um dos formuladores do Plano Real,
e o filósofo da Unicamp Marcos Nobre, autor do e-book sobre as revoltas de
junho, "Choque de Democracia - As razões da Revolta".
O mediador pediu iluminação sobre a plateia para
que pudesse ver seu público, experiência revigorante e distinta daquela que
costuma ter na televisão. Ao final daquele debate, seria a vez de a audiência
iluminá-lo.
Waack anunciou que estava ali para falar pouco.
Esperava ter a oportunidade de mostrar como seriam mais produtivos os debates
eleitorais na televisão sem as odiosas regras de equidade de espaço impostas
pela legislação eleitoral.
Lara Resende expôs suas teses sobre as revoltas, a
maior parte das quais contidas em artigo publicado no Valor de sexta-feira, que
as relaciona a um Estado que arrecada mais de um terço da renda nacional e
investe apenas 3% dela. Em um argumento picotado pelas intervenções do
mediador, explicou as manifestações pelos limites de um modelo de
desenvolvimento que combina expansão da proteção social e industrialização
forçada.
O argumento chegou ao final com a tese de que, mais
do que consumo, as pessoas buscavam qualidade de vida bloqueada por um Estado
ineficiente.
Àquela altura, a plateia, acostumada ao padrão Flip
de mediação, que não faz interrupções sistemáticas ao entrevistado, já havia se
manifestado várias vezes por argumentos com começo, meio e fim.
Também foi neste atribulado percurso que Marcos
Nobre chegou lá. Sua tese é que as revoltas de junho expuseram a recusa dos
brasileiros à acomodação do sistema político a supermaiorias impermeáveis a
demandas populares.
Foi sob essa acomodação, que Nobre chama de
pemedebismo, que a geração dos manifestantes debutou na política. O que vê
agora é um choque de democracia a reivindicar legitimidade para canais de
expressão política que extrapolam as instituições.
Divergiram quando o debate margeou o confronto
entre as políticas dos governos tucano e petista, mas o principal embate não se
deu no palco. Quando a mesa se aproximava do fim, um rapaz entrou gritando na
tenda. Protestava contra a condução do debate. Foi contido pelos seguranças do
evento, que, sob a inspiração dos PMs paulistas, o tiraram de lá com uma chave
de braço.
Diante de ruído crescente numa plateia grisalha e
pagante de ingressos de R$ 46, o mediador, em tom de advertência, disse que
manifestações difusas não levam a mudança. O ruído só aumentou.
Nobre concluiu que vira na plateia o que estava nas
ruas. Lara Resende concordou integralmente. E o debate acabou. Capilé tinha
avisado que podia dar encrenca.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário