terça-feira, 30 de julho de 2013
MANCHETES DO EDU
"Ele é um poeta invulgar", define Cleo
Berardinelli sobre Fernando Pessoa.
CORREIO 30.07
"Ele criou, a partir dele mesmo, outras pessoas"
Ela prefere que a chamem de Dona Cleo. O apelido carinhoso
reflete a relação que Cleonice Berardinelli nutre com seus leitores. E eles são
muitos. Professora de carreira, Dona Cleo se tornou uma das mais lembradas
acadêmicas do país, principalmente entre as rodas de literatura, nas quais é
tratada como sumidade pelos discípulos e seguidores. Entre eles, Maria
Bethânia, com quem deverá gravar um disco declamando Fernando Pessoa, poeta
favorito. CORREIO 30.07
Desde a graduação, em 1938, as terras de Camões passaram a
pautar o magistério e os estudos de Dona Cleo. Dedicada e persistente, entregou
diversas obras sobre a literatura lusófona, pela qual passou a ser reconhecida.
O legado a levou à cadeira de número 8 na Academia Brasileira de Letras (cuja
presidente, Ana Maria Machado, foi aluna de Dona Cleo).
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Apesar da idade avançada, não pensa em parar (“sem
trabalho, seria uma espécie de deserto ao meu redor”). Em entrevista ao
Correio, Cleonice transborda vivacidade e, pelo ofício latente, leciona sem
perceber. A intimidade com Fernando Pessoa, a tornou a maior estudiosa no
Brasil do poeta português.
Por que Fernando Pessoa sobressai na literatura portuguesa?
Em primeiro lugar, a qualidade. Ele é um poeta invulgar. Um
grande apaixonado por Fernando Pessoa que escreveu um livro disse: “Pessoa é
singular, porque é múltiplo. É múltiplo, porque é singular”. Achei essa
definição perfeita.
Saiba mais...
Livro organizado por
Richard Zenith reúne cartas de Pessoa e Ofélia Queiroz
A história conta que o heterônimo favorito de Pessoa era
Alberto Caeiro…
O Fernando Pessoa diz em uma carta muito importante escrita
ao poeta e crítico literário (Adolfo) Casais Monteiro, que acabou conhecida
como “carta sobre a gênese dos heterônimos”, que o Alberto Caeiro nasceu
primeiro. Ele afirma: “Sinto que nascera em mim o meu mestre”. Então, Caeiro
será considerado por seu ortônimo (a própria pessoa) e pelos outros, como
mestre. É o único que morre. Em 1915, o Caeiro morre jovem, puro e inocente. Um
poeta especial. Diferente dos outros (Dona Cleo começa a declamar poesias de
Caeiro). Quando ele morre, Álvaro de Campos escreve uma página de prosa
lindíssima, bastante poética, em que diz: “Mestre, meu mestre querido, coração
de meu corpo…”. Há uma relação de reverência dos outros heterônimos para com
Caeiro, principalmente de Álvaro de Campos, que é o oposto dele. Campos é
torrencial, escreve poemas enormes, como a Ode marítima, com 940 versos.
A senhora consegue imaginar Fernando Pessoa na vida comum?
Longe do escritor, ele nunca andou. Pessoa dizia ser um
poeta dramático, que queria escrever dramas em personagens, mas que nunca
conseguiu. Ele escrevia drama em gente. Ele nunca escreveu um Hamlet, como
Shakespeare. Ele criou, a partir dele mesmo, outras pessoas. Sempre que
perguntavam a ele se tinha criado pseudônimos, ele esclarecia que pseudônimos
eram nomes falsos do próprio autor. O heterônimo é um outro nome. Ou seja, eram
todos na verdade ele próprio. Desdobramentos, diferenciações. Ele se qualifica,
em uma carta a dois médicos-neurologistas, como histero-neurastênico (que sofre
de transtornos de histeria).
Muitos a celebram como a maior estudiosa de Fernando Pessoa
no mundo…
Que pretensão! Eu sou, pelo menos em data, a primeira. Eu
fiz a primeira tese brasileira sobre Fernando Pessoa.
Como tem sido a experiência ao lado da “aluna” Bethânia?
Estar com Bethânia é uma coisa boa. Que me faz bem ao
coração. Uma pessoa extraordinária. Ela se põe diante de mim como se eu fosse
superior, é muito engraçado (risos). Beija-me a mão como se fosse uma antiga
aluna. É uma relação encantadora.
Está confirmado o disco que reunirá vocês declamado
Fernando Pessoa?
Bethânia já disse: o disco está pronto. Claro que nós vamos
refazer alguma coisa, retocar.
Como é o dia a dia da senhora?
A minha vida, embora eu esteja na idade que estou e seja
aposentada da Faculdade de Letras (da Universidade Federal do Rio de Janeiro)
desde 1986, é recheada. Sempre convidada para conferências, congressos. E não
consigo atender nem metade. Acho muito bom. Enquanto estiver trabalhando, estou
viva. Só peço a Deus que quando o trabalho cessar, eu também cesse. Sem
trabalho, seria uma espécie de deserto ao meu redor.
O que a senhora lia na infância?
Eu comecei a ler versos aos quatro anos. Eu lia o que meu
pai punha na minha mão. Meu pai era um militar apaixonado por literatura. Minha
mãe adorava poesia. Então, tive um clima em casa. Quando penso nas coisas que
lia, lembro que não entendia muito, a não ser que papai tivesse paciência de me
explicar palavra por palavra. Vou te dizer o que me ficou de um quarteto do
primeiro soneto que aprendi, chamado O Cristo de marfim: “Essa que passa por aí
senhores/ de olhos castanhos e de altivo porte/ é a princesa ideal dos meus
amores/ a mais franzina pérola do Norte”. Veja lá, uma criança de 4 anos
saberia o que estava dizendo? (risos). Papai era um professor nato. Ajudava-nos
muito nos estudos. Presunçosamente, vou dizer que eu era a predileta dele. Uma
ligação imensa.
Como a literatura portuguesa apareceu em sua vida?
Meu pai era militar e morávamos em São Paulo. Entrei na
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da Universidade de São Paulo, que
estava começando. Isso foi em 1936. Faz tempo! Tive um professor de literatura
portuguesa que foi o grande mestre da minha vida. O curso era literatura luso-
brasileira. Lá fui eu ter a felicidade de ser aluna de Fidelino de Figueiredo.
Você não imagina como foi uma revelação de tudo. Desde Camões, quem conhecia
aos retalhos, mas de quem não sabia a importância. Ele me despertou um gosto
que não acaba nunca, que espero que continue me acompanhando até o fim. Todos
da família de Fidelino ficam gratíssimos a mim pela minha fidelidade, veja bem,
quase canina.
Quais nomes chamam a sua atenção na literatura nacional?
Gosto muito de Manoel de Barros. Também gosto de outros
dois poetas, que inclusive foram meus alunos: Antonio Carlos Secchin e Eucanaã
Ferraz. Lembro-me de uma redação de Antônio Carlos (Secchin), que deveria ter
no máximo 19 anos na época, que corrigi. Achei-a tão preciosa que escrevi:
“Auguro-lhe um belo futuro”. Quando ele fez concurso para titular da faculdade,
durante os cumprimentos, ele me entregou um envelope. Quando abri, era a cópia
daquela prova. Ficamos muito amigos. E vou lhe dizer: foi ele que me pôs na
Academia. Nem sonhava com essa pretensão. Ele me ligou e passou uma hora no
telefone me persuadindo. No fim, por cansaço, acabei cedendo e redigi a carta
me candidatando à cadeira. No dia seguinte, escrevi uma nova carta: “Desculpe-me.
Não sei se isso já aconteceu, mas estou me descandidatando”. Mas já era tarde
demais.
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