quarta-feira, 29 de maio de 2013
Justiça pela qualidade
na educação.
Autor(es): Priscila Cruz
O Estado de S. Paulo - 29/05/2013
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Em qualquer sociedade do século 21, são inúmeras as
demandas sociais, econômicas e culturais. Aqui, no Brasil, não é diferente.
Apesar de muitos progressos, ainda temos enormes desafios pela frente.
De fato, é muito difícil falar em prioridade. Entretanto,
não há estratégia mais vigorosa e sustentável para melhorar a vida dos
brasileiros e elevar o patamar do País em diversas áreas do que garantir o
direito da população a uma educação pública de qualidade.
Se existe uma área capaz de ir muito além de seus
resultados diretos, essa área é a educação. Seu impacto na saúde, na segurança,
no crescimento econômico, na redução da pobreza e das desigualdades e até na
felicidade das pessoas está consagrado nas mais recentes e robustas pesquisas
nacionais e internacionais.
Esse entendimento, aliás, existe há muito tempo em nosso
país. Mais de 80 anos atrás, os chamados "Pioneiros da Educação Nova"
assim abriram o seu Manifesto, de 1932: "Na hierarquia dos problemas
nacionais, nenhum sobreleva em importância e gravidade ao da educação".
Além de entendermos todos os bons impactos da educação de
qualidade na nossa vida, é preciso reconhecer que a educação básica é um direito
constitucional - e que, portanto, se devem assumir claramente o dever e a
responsabilidade de fazer com que esse direito seja cumprido.
Pois bem, então, de quem é a responsabilidade pela educação
no País?
A nossa Constituição federal diz que é um dever do Estado e
da família, com a colaboração da sociedade. Ao Estado cabe garantir o direito
dos alunos ao acesso, à permanência e à conclusão dos estudos, em sistema
público gratuito, com equidade e qualidade.
Os três Poderes fazem parte do Estado. No entanto, o
primeiro que vem à mente do cidadão é o Poder Executivo (principalmente o
Executivo federal). Depois, o Poder Legislativo e, com sorte, o Poder
Judiciário. Porém todos os três Poderes têm o dever constitucional de garantir
o direito à educação.
O Sistema de Justiça é espaço essencial para garantirmos
condições mais justas de vida e de desenvolvimento dos brasileiros e do Brasil.
Seus operadores - juízes, promotores, defensores públicos - são a chave para a
garantia do direito à educação de qualidade para todos os brasileiros, tanto
por se tratar de um direito humano fundamental quanto por ser essencial ao
exercício dos demais direitos.
Ao lado do Executivo e do Legislativo, o Sistema de Justiça
tem, portanto, a missão contemporânea de combater o maior erro histórico do
nosso país: o descaso para com a educação. Por séculos, milhões de pessoas
tiveram sua realização pessoal e sua capacidade de contribuir para uma
sociedade melhor sacrificadas.
Em recente lançamento do livro Justiça pela Qualidade na
Educação, publicação organizada pelo Movimento Todos Pela Educação e pela
Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores
Públicos da Infância e da Juventude (ABMP), o relator especial da Organização
das Nações Unidas para o Direito à Educação, dr. Kishore Singh, observou, de forma iluminada, que "o
direito à educação não é um ideal ou uma aspiração, mas um direito legalmente
executável".
O trabalho da Justiça, portanto, deve ser o de garantir que
o direito à educação seja efetivado em suas diversas dimensões, com foco em
soluções estruturantes - ainda que os pleitos específicos ou individuais também
mereçam atenção. É preciso que o mundo jurídico e o educacional se encontrem e
se articulem com o propósito de elevar a qualidade da educação para o aluno,
pois ainda é muito comum que o desconhecimento mútuo leve a decisões judiciais
que prejudicam a educação e ações educacionais fora dos limites legais.
Em 2001, o Sistema de Justiça mobilizou-se em torno da
Justiça pela Educação, um apoio sem o qual o Brasil não teria dado o grande
salto rumo à universalização do ensino fundamental, a etapa obrigatória na
época. E isso significou um avanço importante: em 2012, chegamos a 98,2% de
crianças e jovens de 6 anos a 14 anos na escola.
Não há dúvida, no entanto, de que a mobilização pela
qualidade da educação é a maior necessidade contemporânea brasileira, uma vez
que, mesmo tendo avançado nesse sentido nos últimos anos, esse avanço ainda é
lento.
Portanto, a ideia de aproximar mais as duas áreas - a da
educação e a do Direito - para buscar ajudar o Brasil a dar esse imprescindível
novo salto educacional não significa a judicialização da educação. Ao
contrário, a ideia é fazer com que, juntas, essas áreas possam ajudar-se no
entendimento sobre a questão da qualidade da educação, mais especificamente da
garantia da aprendizagem dos alunos, e assim fazer com que a área educacional
avance de maneira mais acelerada e persistente nos próximos anos.
O Poder Executivo, o Legislativo e o Sistema de Justiça
podem, juntos, estabelecer uma estrutura de ações e articulações necessárias
para a obtenção de resultados, com responsabilidades bem definidas de cada um
dos entes envolvidos, buscando a efetivação do direito à educação de qualidade
para todos.
A questão não é simples. Existem muitos consensos na área
educacional, mas também muitas divergências. A aprendizagem dos alunos desde os
primeiros anos na escola," no entanto, é um consenso e um direito deles,
que deve ser assegurado.
Devemos ter em mente que não será qualquer educação que
efetivará os direitos das crianças e dos jovens. Nem garantirá a
sustentabilidade social e econômica do Brasil./ Diretora executiva do Movimento
Todos Pela Educação
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Dicas de português
por Dad Squarisi .
dadsquarisi.df@dabr.com.br.
CORREIO BSB 29.05
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Recado
“Quem cala consente.”
Povo sabido
Língua afiada
Nossa Senhora! Apesar da pane no site do MEC, o Enem bateu
recorde. Mais de 7 milhões de estudantes se inscreveram no novo jeito de entrar
na universidade. Com o sucesso, uma condição se impõe — pronunciar a palavra
com respeito aos ouvidos. Recorde joga no time de concorde e acorde. São todas
paroxítonas. A sílaba tônica é cor sim, senhores.
Sem limite
A tecnologia avança. Sofisticação e perfeição se dão as
mãos e apresentam criações até há pouco inimagináveis. É o caso da tevê. Depois
de LCD, LED e 3D, pinta novidade na praça. Trata-se de aparelhos com
ultradefinição. A imagem por eles transmitida ultrapassa a perfeição. Ufa! A
notícia despertou a curiosidade de gregos e troianos.
Questões pipocaram a torto e a direito. Uma delas: a grafia
do mais recente objeto de desejo. Com hífen? Sem hífen? Ulta- obedece à regra
que abarca a maior parte dos prefixos. Pede o tracinho quando seguido de h ou
de a (letras iguais se rejeitam). No mais, é tudo coladinho como unha e carne:
ultra-humano, ultra-avançado, ultradefinição, ultrarregrado, ultrassatisfeito.
Manhas latinas
Guarde isto: o latim dispensa hifens e acentos. Por isso,
Corpus Christi se escreve assim — latinamente.
Em tempo
A maior dor de cabeça do governo? É a dor no bolso dos
brasileiros. Trata-se da inflação. O preço dos alimentos está pela hora da
morte. Com os mesmos reaizinhos, compra-se cada vez menos. Tão grave situação
levou muitos a tomar decisão inédita — parcelar o valor registrado pelo caixa
do supermercado.
E daí? Alexandre Tombini, presidente do Banco Central,
anunciou medidas. “Vamos agir tempestivamente”, disse diante de câmeras e
microfones. Viva! O homem pode estar perdido na busca de saídas para a rebeldia
dos preços. Mas sabe o significado de palavras. Tempestivamente pertence à família
de tempo. Quer dizer em tempo, dentro do prazo.
Muitos confundem o vocábulo com temperança. Aí, metem os
pés pelas mãos. Falam em “pessoa intempestiva” para classificar a criatura de
pavio curto. Bobeiam. O adjetivo não tem relação com temperamento. Tem, isto
sim, com oportunidade, prazo. Ação intempestiva quer dizer fora do tempo
próprio, inoportuna.
Dizem por aí
Dilma chamou a trapalhada com o Bolsa Família de “boato
falso”. Ouvintes ficaram intrigados. A questão: boato falso é pleonasmo? Não.
Boato, segundo o Aurélio, é “notícia anônima que corre publicamente sem
confirmação”. Pode ser falsa ou não.
Que vista!
Os brasilienses dizem que têm o céu mais bonito do mundo.
Os nova-iorquinos são mais modestos. Afirmam que, em cinco dias, têm o pôr do
sol mais bacana de Europa, França e Bahia. Entre 26 e 30 de maio, bola de fogo
se vislumbra entre edifícios e… deslumbra. Ao divulgar o fato, o repórter
vacilou na hora do plural. Como é mesmo? É assim: pores do sol.
Por falar nisso…
Pôr do sol ensina ensina duas lições. Ambas remetem à
reforma ortográfica:
1. Pôr e pôde (passado do verbo poder) são as únicas
palavras que conservam o acento diferencial. As demais ficaram livres e soltas
— sem lenço, sem documento, sem agudos e sem circunflexos: Ontem ele não pôde
pôr os livros na estante. Hoje pode.
2. Compostos com mais de duas palavras (ligadas por
conjunção, preposição, pronome) perderam o hífen: pôr do sol, pé de moleque,
tomara que caia, bicho de sete cabeças, maria vai com as outras e por aí vai.
A regra tem duas exceções. Uma: não abrange vocábulos
pertencentes aos reinos animal e vegetal (joão-de-barro, cana-de-açúcar,
castanha-do-brasil, castanha-do-pará). A outra: manteve o tracinho em
pé-de-meia, água-de-colônia, cor-de-rosa.
Leitor pergunta
Quando posso usar o pra?
Anamaria Leopoldo, BH
A preposição pra — assim, sem acento — é forma descontraída
de para. Abuse dela em textos informais — os que usam sandálias, camiseta e
bermuda. Em textos formais, os que vestem terno e gravata, deixe-a pra lá.
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Por que produtividade
baixa?
Diferentes indicadores revelam que o nível e a taxa de
crescimento da produtividade brasileira são modestos para padrões
internacionais e avançaram pouco nas últimas décadas. Esse padrão está por trás
do crescimento médio anual do PIB per capita de 1,2% entre 1980 e 2012. VALOR
ECONÔMICO 29.05
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Por que a produtividade é baixa? Ao menos seis explicações
complementares nos ajudam a compreender o porquê. A primeira está associada às
limitações internas das empresas, ou aos constrangimentos à produtividade
relativos ao "chão de fábrica". Trata-se de restrições ao desempenho
decorrentes, dentre outras, de gestão deficiente, pequeno engajamento em
pesquisa, desenvolvimento e inovação, acanhados investimentos em tecnologias da
informação, novas tecnologias e treinamento profissional, e baixa qualificação
da força de trabalho - nada menos que 27% da população em idade para trabalhar
é analfabeta ou analfabeta funcional.
A segunda explicação está associada aos constrangimentos à
produtividade relativos àquilo que fica do lado de fora do "chão de
fábrica", ou produtividade sistêmica. Referem-se aos problemas externos às
empresas que interferem, direta ou indiretamente, no desempenho individual e
coletivo e nos retornos dos investimentos. Incluem-se nessa categoria, os
elevados custos e restrições associados aos impostos, burocracia e juros e às
deficiências dos serviços públicos e das infraestruturas. Instabilidade
macroeconômica, insegurança jurídica, problemas de coordenação entre esferas de
governo e internas aos próprios governos, legislações que desestimulam a
competição, elevada presença de oligopólios e monopólios em vários setores,
cultura que desencoraja a meritocracia e limitada abertura da economia para o
resto do mundo também contribuem para constranger a produtividade sistêmica.
A terceira explicação é a contínua transferência de
recursos de setores de produtividade mais alta para setores de produtividade
mais baixa. Enquanto a participação da indústria no PIB passou de 33,4% para
14,4% entre 1980 e 2011, a participação dos serviços passou de 45,2% para
67,1%. O problema é que a produtividade média na indústria é 36% maior que nos
serviços. No comércio, hotéis e restaurantes, o maior segmento do setor de
serviços em termos de emprego, o hiato de produtividade em relação à indústria
passa de 500%. Muito além da realocação de emprego entre setores, a maioria dos
novos empregos gerados na economia está concentrada em setores de baixa
produtividade. De fato, no início da década de 2000, o setor de serviços
respondia por 26,6% dos novos postos formais de trabalho criados no setor
privado. Em 2012, aquela participação já havia passado de 74%.
A quarta explicação é a baixa produtividade média das micro
e pequenas empresas. A produtividade dessas empresas é substancialmente menor
que a de congêneres do mesmo ramo, mas que operam em escalas produtivas
maiores. O problema é que nada menos que 99% do total de empresas formais são
micro e pequenas e 76% delas estão no setor de serviços.
A quinta explicação está associada à pobreza e à desigualdade
de renda. Evidências empíricas mostram que pobreza e má distribuição de renda
explicam baixa produtividade por meio de diversos canais de transmissão,
incluindo limitado acesso dos pobres a crédito, tecnologias, mercados, educação
de qualidade e qualificação profissional, e limitada ou nenhuma participação
das atividades econômicas da população pobre em cadeias produtivas e nas
exportações. Evidências empíricas também mostram que a melhoria da distribuição
de renda tende a ser acompanhada por mudanças na composição da demanda por
consumo e pela maior probabilidade de obtenção de consensos em torno de agendas
de políticas públicas mais sustentáveis, que são críticas para o aumento dos
investimentos e da produtividade.
Por fim, a sexta explicação está associada às elevadíssimas
discrepâncias de produtividade entre as empresas e entre setores de atividade.
O problema é que a interdependência entre as empresas só faz crescer através de
cadeias de produção, terceirização e aquisição de toda sorte de serviços e
infraestruturas, de forma que o desempenho de um fornecedor ou componente de
uma determinada cadeia produtiva impacta, direta ou indiretamente, o desempenho
dos demais componentes daquela cadeia de produção. Por isso, a elevada
discrepância de produtividade individual não é neutra do ponto de vista
coletivo. Empresas mais dependentes de cadeias produtivas, como é o caso
daquelas da indústria manufatureira em geral, estão mais expostas às
produtividades de terceiros que empresas da área de mineração, por exemplo, o
que ajuda a explicar as diferenças de remuneração do capital e de
competitividade entre os setores.
Como as causas da baixa produtividade do Brasil são
variadas e complexas e as soluções requerem a participação de todos, para se
avançar será necessária a construção de uma agenda concreta de ações, além de
muita coordenação entre os envolvidos para implementá-la com sucesso. Na medida
que o avanço da produtividade pode proporcionar enormes benefícios em termos de
crescimento econômico sustentado, competitividade internacional e geração de
bons empregos e renda, parece-nos razoável sugerir que essa agenda deveria ser
elevada à condição de prioridade nacional.
Jorge Arbache é assessor da presidência do BNDES e
professor da Universidade de Brasília. Este artigo não representa
necessariamente as visões do BNDES e de sua diretoria. jarbache@gmail.com.
segunda-feira, 27 de maio de 2013
Millôr desenhista, por ruy castro
RIO DE JANEIRO - Um dia perguntei a Millôr Fernandes quem viera primeiro,
o escritor ou o desenhista, ou qual nele se revelara mais cedo. Ele disse: o
desenhista. Fiquei surpreso porque, para mim, se Millôr nascera para escrever,
o desenho parecia algo que ele tivera de aprender. Eu ainda não sabia o
suficiente de André François, James Thurber e Saul Steinberg para entender que
gênios do desenho, como eles, dispensam a linha reta, a limpeza, o retoque. FOLHA SP 27.05
Millôr me contou que, em sua memória mais remota,
nunca se viu sem desenhar, ao passo que se lembrava de quando começara a ler e
a escrever. Donde seu instrumento primordial era o lápis, não a caneta. Não
será surpresa se o mergulho em seu acervo gráfico, a cargo de Ivan Fernandes,
revelar que o artista Millôr foi tão grande ou maior que o escritor.
Seja como for, é esta última faceta que estará no
monumento em sua homenagem a se inaugurar hoje no Rio, a um ano de sua morte:
um banco de calçada, projetado pelo arquiteto Jaime Lerner, em que a silhueta
recortada de Millôr, traçada por Chico Caruso para lembrar "O
Pensador" de Rodin, atravessa uma placa de aço e permite ver o mar e o pôr
do sol.
O banco fica no recém-batizado largo do Millôr,
junto à pedra do Arpoador, um espaço que ele pisou todos os dias, em seus 58
anos de Ipanema, depois de correr ou caminhar em marcha acelerada pela areia
dura, como o atleta que também era.
Desenhista, pensador, atleta. Mas só agora percebo
que dois presentes com que me honrou tinham a ver com desenho: uma coleção de
sua revista "Pif-Paf" (os oito números originais, de 1964, não a
edição fac-símile, de 2008) e o guache com que ilustrou um artigo que escreveu
em 1999 sobre meu livro "Ela é Carioca - Uma Enciclopédia de
Ipanema", no qual seu verbete foi o mais difícil de fazer. Ele não cabia
em verbetes.
terça-feira, 21 de maio de 2013
LRF, três letras e suas várias lições
Votação da lei, em
2000: até mesmo políticos que votaram contra, hoje no poder, temem qualquer
mudança na lei, mesmo aquelas que possam aperfeiçoá-la. "Curso de
Responsabilidade Fiscal - Direito, Orçamento e Finanças Públicas"
Weder de Oliveira.
Editora: Forum. 1.175 págs., R$ 196,00. VALOR ECONÔMICO 21.05
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A maioria dos
brasileiros habituou-se, nos últimos anos, a ouvir e a ler notícias sobre o
superávit primário registrado nas contas públicas. Foram informados numerosas
vezes que esse superávit é uma espécie de poupança que os governos fazem para
pagar uma parcela dos juros de suas dívidas. Mas é quase certo que poucos sabem
que até hoje não existe uma metodologia de apuração dos resultados primário e
nominal definida pelo Congresso Nacional, como exige a Lei de Responsabilidade
Fiscal (LRF). Uma mensagem da Presidência da República propondo essa
metodologia dorme nas gavetas do Senado desde agosto de 2000.
Mesmo sem competência
legal para isso, foi a Secretaria do Tesouro Nacional quem fixou, por meio de
portaria, uma metodologia de apuração do resultado primário a ser seguida por
Estados e municípios. E o mais inusitado: o modelo utilizado para os governos
estaduais e prefeituras é diferente daquele adotado para a União. Para o
primeiro caso, o resultado primário é apurado considerando-se a despesa
liquidada. Para o governo federal, o resultado primário é calculado
utilizando-se a despesa paga.
A diferença entre os
dois regimes é enorme, pois uma despesa liquidada pode ou não ser paga no
exercício em que foi realizada. O pagamento pode ser transferido para o ano
seguinte, sob a forma de restos a pagar. Assim, quem apura o resultado primário
pelo critério de despesa paga tem muito mais margem de manobra.
Essas são algumas das
lições do "Curso de Responsabilidade Fiscal", lançado pela Editora
Fórum na semana passada. O autor do livro é Weder de Oliveira,
ministro-substituto do Tribunal de Contas da União (TCU), com prefácio do
ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
O livro faz uma
análise detalhada da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que entrou em vigor
em 2000, relatando as circunstâncias em que foi discutida e votada, o debate
ideológico que provocou, acusada por algumas correntes políticas de ser uma
espécie de ponta de lança do projeto neoliberal no país e uma imposição do
Fundo Monetário Internacional (FMI) ao governo brasileiro. Essa discussão hoje
perdeu o sentido e até mesmo aqueles políticos que votaram contra, atualmente
no poder, temem qualquer mudança na lei, mesmo aquelas que possam
aperfeiçoá-la.
A LRF tornou-se uma
espécie de unanimidade nacional. Mas nem sempre é aquilo que as pessoas acham
que é. O livro comenta cada uma das percepções que o público tem da LRF. Muitos
garantem, por exemplo, que a lei impede que os governos gastem mais do que
arrecadam. Outros acham que foi ela que definiu, pela primeira vez, limites
para os gastos com o funcionalismo da União, dos Estados e dos municípios.
Outros acreditam que estabelece limites para o endividamento público. Há também
aqueles que dizem que a LRF obriga os governantes a prestar contas sobre quanto
arrecadam e como gastam, além de resgatar o orçamento público como peça de
planejamento e controle.
O livro demonstra os
equívocos dessas percepções, que, no entanto, já foram incorporadas como
"verdades" naquilo que se poderia chamar de "cultura da
responsabilidade fiscal" no Brasil. A LRF, ensina o livro, aprimorou e
consolidou normas fiscais já existentes e instituiu outras, para obter o
equilíbrio intertemporal das contas públicas. Os objetivos eram reduzir
rapidamente o déficit público, assegurar uma disciplina fiscal que evitasse
déficits recorrentes e imoderados e estabilizar a relação dívida pública
líquida/PIB. Na avaliação da equipe econômica que propôs a LRF, essas eram
condições necessárias para consolidar a estabilidade de preços e permitir a
retomada do desenvolvimento sustentável.
Como assessor do
deputado Pedro Novais, relator do projeto da lei de responsabilidade na Câmara,
Oliveira participou das discussões de cada aspecto da LRF. "Lembro-me que
o autor era o mais novo dos consultores e logo lhe foi atribuída a tarefa de
sistematizar sugestões de emendas e redações, operacionalizar as reuniões
técnicas, preparar material legislativo para as audiências públicas e atualizar
as sucessivas versões do texto", recorda Pedro Novais, na apresentação que
faz do livro. Ao longo dos últimos 12 anos, Oliveira recolheu informações,
documentos e acompanhou todas as polêmicas em torno da LRF.
O autor diz, no livro,
que pretendeu apresentar a LRF "como foi pensada, discutida e aprovada
pelo Congresso Nacional e pelo presidente da República". Sua intenção foi
"perscrutar como está sendo aplicada e examinar a complexidade de
implementação eficaz de seus artigos". E, sempre que possível, examinar
casos concretos.
O livro é também um
curso sobre o processo orçamentário brasileiro, apresentando em detalhes todas
as normas legais que regem os três instrumentos básicos do peculiar arranjo
institucional brasileiro sobre esse tema, no qual convivem, de forma não muito
harmoniosa, o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e
a Lei Orçamentária Anual (LOA). O constituinte de 1988 estabeleceu uma
intricada relação entre essas três leis orçamentárias que, até agora, os
administradores públicos não conseguiram levar a bom termo na prática.
Oliveira trata ainda
de previsão e arrecadação de receitas, renúncia de receitas, geração de
despesas, despesa obrigatória de caráter continuado, além da execução
orçamentária, com destaque para o contingenciamento das despesas. Mostra que
não há divulgação de informações sobre as programações que foram
contingenciadas e diz que nem o Congresso nem a sociedade têm como saber, sem
um exame profundo, demorado e especializado de documentos e informações de
sistemas de execução orçamentária, qual é a programação que está sendo posta em
execução e a que não está. "A publicidade dada na discussão e sanção da
lei desaparece durante a execução", constata.
A peculiaridade deste
livro reside no fato de que as normas legais e os conceitos fiscais são
apresentados, analisados em detalhes, criticados e confrontados com suas
aplicações práticas. O autor ainda aponta sugestões de aperfeiçoamento. O livro
é imprescindível para estudantes, especialistas e para aqueles que desejam
conhecer o processo orçamentário brasileiro.
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Cidadania não é consumo
José Garcez Ghirardi é
professor da Direito FGV/SP VALOR ECONÔMICO 21.05
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Os sorrisos de Camila
Pitanga e de Ronaldo Gianecchini nos comerciais da Caixa e do Banco do Brasil,
respectivamente, abriram caminho para a notícia de que os dois bancos
superaram, com lucros recordes, seus rivais privados em 2012. A conjunção de apelo
popular e dirigismo econômico não é acidente e ilustra uma das escolhas
políticas mais decisivas da gestão da presidente Dilma Rousseff.
Acreditando que a
fórmula para avançar na agenda social sem desagradar os mercados é criar um
país de classe média ("no mínimo", para usarmos os termos da
presidente), o governo tem abraçado a ideia de inclusão via consumo. Críticas a
esse modelo são sumariamente rechaçadas como fruto de ressentimento ou de
má-vontade. Mas é preciso ter a coragem de fazê-las porque as contradições
entre as demandas muitas diversas de inclusão e consumo, silenciadas neste
momento, ameaçam a qualidade de vida futura de todos os brasileiros. E o que é
pior: arriscam fragilizar, de modo particularmente cruel, justamente aqueles
grupos mais vulneráveis, tornando efêmeras as conquistas atuais.
É preciso deixar
claro, em primeiro lugar, que há vários modelos de países de classe média - a
Suécia, a Austrália e o Canadá, são exemplos dessas diferentes versões - e
várias formas de se pensar a relação entre consumo e bem estar social, assim
como há vários modos de construir a regulação que tal relação solicita do
Estado. Dizer "país de classe média" não significa dizer, portanto,
sociedade justa ou funcional, nem tampouco primazia do interesse coletivo.
Agressiva ação para a
compra de carro contrasta com as poucas iniciativas para melhorar o transporte
público
No que tange aos
pressupostos dessa premissa, não está dado que a expansão do consumo leve
necessariamente à inclusão - a história recente dos Estados Unidos tem algo a
nos ensinar nesse ponto. No que tange a questões mais diretamente econômicas -
a pressão inflacionária, o crescente endividamento familiar, a fragilização
estrutural do setor produtivo, apenas para citarmos alguns exemplos - não está
dado que o modelo atual seja sustentável.
Além disso, e de modo
mais grave, há uma diferença crucial entre estimular o consumo e referendar a
lógica do consumismo - diferença que o atual paradigma de gestão parece
desconsiderar. No primeiro caso, a ampliação do poder aquisitivo é objetivo
atrelado à consolidação e melhoria dos bens coletivos. No segundo, há um
sucateamento desses mesmos bens e uma ampliação dos espaços privados e
individuais de consumo.
A recente opção do
governo em relação à industria automotiva ilustra bem as implicações que resultam
de uma escolha pelo segundo modelo. A agressiva ação governamental para que
cada um adquirisse seu carro - por meio da longa e repetida redução de IPI e
pela expansão do crédito- tornou mais evidente, pelo contraste, a timidez das
iniciativas para efetivamente melhorar e ampliar a qualidade do transporte
público.
A mensagem implícita é
a de que o transporte é, em primeiro lugar, um problema individual e apenas
residualmente um problema coletivo. Dentro dessa lógica, o melhor modo de
saná-lo é transferir recursos (via crédito mais barato ou renúncia fiscal, por
exemplo) para que cada um cuide do seu. O uso de ônibus, metrô e trem vai se
tornando índice de falta de opção e não do seu oposto.
Esses meios coletivos
de transporte atendem, em regra, àqueles que não podem adquirir seu veículo e,
assim, livrar-se do desrespeito quotidiano de ter que submeter-se a condições
muitas vezes desumanas para chegar ao trabalho e à casa. No processo, a
qualidade geral de vida decai, e a locomoção nas cidades se torna cada vez mais
lenta e cada vez mais desgastante.
O argumento do emprego
que é tantas vezes utilizado para justificar tal opção, apenas confirma a
tendência do consumismo de remediar o presente às custas do futuro. A
manutenção e a ampliação sustentável do emprego, em médio e longo prazo,
solicitam políticas mais complexas de inovação tecnológica e de qualificação
profissional que não combinam com o afã imediatista do consumismo e do ganho
político - sobretudo quando os próprios governantes tendem a absolutizar o hoje
e a minimizar a importância de ajustes estruturais pregressos. Para quem
promove esta agenda, a deterioração das cidades, o aumento dos custos mais
básicos do dia a dia e o ataque ao meio-ambiente são secundários ao apoio
político passageiro e ao fetiche da propriedade individual, em um movimento que
revela o quanto têm em comum os imediatismos gêmeos do populismo e do lucro.
O trânsito, como já se
apontou, é uma dos indicadores mais precisos para revelar as opções de fundo
feitas pelas sociedades e seus governantes. A dinâmica quotidiana do transporte
público espelha, sem disfarces, o desenho e a qualidade da convivência
democrática nos espaços político e social. Viajando lado a lado, indivíduos com
histórias, condições e interesses divergentes percebem que têm que saber
construir juntos algo que sirva efetivamente a todos. Percebem que esta opção
prevê regras de conduta e de cooperação, de respeito à diferença, de busca de
aperfeiçoamento do que é coletivo, de zelo pelo que é patrimônio comum. Eles
podem optar pela tarefa difícil de construir este espaço comum ou podem
priorizar resoluções de cunho individual.
Se a alegoria do
trânsito nos ajuda a refletir sobre questões mais amplas, a imagem que temos do
país a partir da circulação nas ruas preocupa, e muito. Ela indica uma
sociedade em que o individualismo consumista ganha força, em que o diálogo
democrático se empobrece e em que grupos específicos têm excessiva capacidade
de pressão junto ao governo, sendo capazes de impor agendas corporativas e de
retardar agendas genuinamente coletivas. O legítimo desejo do país de ser uma
nova potência, deve começar pela opção de ser uma potência nova. Isto requer
criatividade e coragem para contrapor-se à lógica reinante que fomenta o
reducionismo perverso de confundir consumo e cidadania.
José Garcez Ghirardi é
professor da Direito FGV/SP VALOR ECONÔMICO 21.05
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Escritor Paul Theroux dá seu adeus literário à
África
"Acho que escrevi
tudo o que posso escrever de útil", afirma Theroux. VALOR ECONÔMICO 21.05
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Paul Theroux deu seu
adeus literário à África numa estação de trem em Luanda, Angola, cinco décadas
após visitar o continente pela primeira vez como voluntário do Corpo da Paz. Em
seu novo livro, "The Last Train to Zona Verde: My Ultimate African Safari"
(O Último Trem para Zona Verde: Meu Derradeiro Safári na África, em tradução
livre; ed. Houghton Mifflin Harcourt; importado), Theroux descreve uma viagem
pela África do Sul, por Botswana, Namíbia e Angola que acabou na estação,
quando ele não sentiu mais necessidade de prosseguir.
O livro, diz ele,
representa o capítulo final de suas viagens na África. Seu primeiro livro sobre
a África foi um romance. O autor se tornou um dos escritores de literatura de
viagem mais influentes de sua era e relatou viagens pelo mundo em livros como
"O Grande Bazar Ferroviário" (1975; ed. Objetiva), "The Old
Patagonian Express" (O Velho Expresso da Patagônia; 1979) e "Dark
Star Safari" (O Safári da Estrela Negra; 2002). Entre seus romances estão
"Saint Jack" (1973) e "A Costa do Mosquito" (1981; ed.
Alfaguara). Nesta entrevista, Theroux, que mora no Havaí e em Cape Cod,
Massachusetts, fala sobre o papel do escritor de livros de viagem, perspectivas
incertas da África e sobre como seria morrer fazendo o que gosta.
Fiquei na dúvida,
quando li seu livro, se o senhor deu suas viagens por encerradas.
Paul Theroux: É um
transtorno bastante grande tomar ônibus e trens, vans, táxis etc. para
percorrer a África por terra. Quando, em Angola, cheguei ao ponto em que pensei
que, na verdade, não vale muito a pena sofrer se você não está aprendendo
alguma coisa, disse a mim mesmo 'Bom, este é o fim da linha'. Sempre viajarei
pela África, mas acho que escrevi tudo o que posso escrever de útil.
Nas viagens
ferroviárias, o que o faz dizer que poucas vezes ouviu um trem passar sem
desejar estar a bordo dele?
Theroux: O prazer que
elas proporcionam é indescritível. Você pode dormir, pode escrever, pode dar
uma volta. São muito confortáveis, muito tranquilizadoras e, para um escritor,
verdadeiramente maravilhosas.
O senhor descreve
cidades sórdidas em seus relatos, mas também diz não ser pessimista em relação
à África.
Theroux: Não sei o que
vai acontecer com a África. A infraestrutura é muito pobre. É um castelo de
cartas. Os governos são frágeis. Em geral, são corruptos. As cidades são
grandes e horrorosas, mas o interior, a savana, está mais desabitada do que
nunca. Ainda é cheia de possibilidades.
Que evolução o senhor
notou nas viagens ao longo de sua carreira?
Theroux: Quando
comecei a viajar havia muitos problemas para resolver. Agora não é muito
difícil pegar um avião. O outro é a americanização do mundo. Todo mundo se
veste igual. As pessoas usam camiseta e bermuda. O mundo inteiro usa boné.
Quando eu viajava 50 anos atrás não se viam bonés na Índia. Nem na África.
Os escritores de
livros de viagem ainda são importantes?
Theroux: O papel de um
escritor de livros de viagem é revelar o mundo, conferir o que há por aí. É
mais necessário do que nunca, porque a internet faz as pessoas acharem que
podem conhecer tudo sem sair de casa. Mas elas não percebem como é o mundo na
realidade: o quanto ele é pobre, como é maravilhoso [estar] em outros lugares,
e quanto há para descobrir.
O senhor tem um
procedimento de praxe para se preparar para as viagens?
Theroux: A pessoa tem
que ser forte, otimista e conseguir cumprir as exigências de estar sozinha.
Leio coisas práticas. Compro muitos mapas detalhados. Falo com as pessoas.
Tento ler o mais possível sobre o lugar, não necessariamente antes de ir, mas
depois. Quero descobrir coisas por mim mesmo. Não faço listas de pessoas para
visitar. Prefiro ficar no hotel mais simples. Não gosto da obrigação social que
ficar com pessoas me impõe.
O que o senhor lê em
viagem?
Theroux: Livros que
não têm nada a ver com o lugar em que estou. Ultimamente, tenho lido muita
coisa de D. H. Lawrence. Faço um pequeno estudo de um escritor - leio os
livros, os artigos sobre ele, e depois uma biografia, para conhecer o autor.
Viajar pode parecer
corajoso, mas ao mesmo tempo é uma prática rotineira para a população local,
pelos mesmos caminhos.
Theroux: Eles sabem
para onde estão indo. Eu estou indo para um lugar que tenho de descobrir. Na
minha idade [72 anos], assumo cada vez menos riscos. Mas é preciso ter certo
grau de confiança. Os ônibus são velhos, a comida é ruim, o clima é terrível.
Pode ser que você chegue ao destino e não encontre nada de novo.
Três pessoas sobre as
quais o senhor escreveu no livro morreram logo depois. Qual foi o impacto
disso?
Theroux: Foi um grande
choque. Fez com que eu examinasse meus fatores motivadores e pensasse
"Bem, e se eu morrer, será que estou fazendo o que eu gosto? Será que o
que faço vale pôr minha vida em risco?". Morrer fazendo o que gosto seria
estar tomando um [coquetel] "mai tai" na praia no Havaí e ser colhido
por uma onda. Estaria fazendo o que adoro, apenas tomando um drinque com a
minha mulher. Não seria num ônibus em Angola. (Tradução de Rachel Warszawski)
>>>
Redescobrindo Aldir
Blanc
Em Resposta ao tempo,
o jornalista Luiz Fernando Vianna escaneia a vida e a obra do compositor e
reveladetalhes de uma producente jornada atormentada. CORREIO BSB 21.05
“Mesmo que as pessoas
não reconheçam o nome do Aldir Blanc, à primeira vista, é difícil encontrar
alguém que não conheça O bêbado e o equilibrista, Mestre sala dos mares, De
frente pro crime. São músicas que estão na memória coletiva de todos”. Quem
afirma conhece. Luiz Fernando Vianna goza de uma amizade com o compositor
carioca há exatos 20 anos.
Talvez, por isso, o
recluso Aldir tenha ficado tão à vontade para abrir as portas e deixar o
jornalista destrinchar os pormenores que permeiam sua turbulenta trajetória.
Uma das filhas, Patrícia Ferreira, ficou incumbida da pesquisa e teve acesso
irrestrito ao acervo do pai. O resultado, recheado de material inédito, aparece
em Resposta ao tempo, recém-lançado.
A conduta informal na
realização do livro foi fundamental para a extração de histórias pouco
conhecidas e jamais esclarecidas. A ideia partiu de Patrícia e de um amigo do
pai, que logo receberam impulso da editora. A escolha de Vianna foi intrínseca:
“Eles são amigos desde 1993. Quando informei a Aldir quem faria o texto, ele
vibrou. O processo foi muito mais confortável”, revelou Patrícia.
Conforto social é
tarefa árdua para o letrista. Conhecido pela reclusão joão gilbertiana, Aldir
Blanc quase não sai de casa ou concede entrevistas. Escreve eventualmente um
artigo e vive, muito mal, à custa dos direitos autorais, que pouco lhe rendem.
“Ele sonha com um ‘mensalão 3’ dentro do Escritório Central de Arrecadação e
Distribuição (Ecad). Concorda com a manutenção do órgão, mas de uma forma mais
transparente”, observou Vianna.
Trauma
Uma das respostas
apontadas para a personalidade comedida de Aldir é um fatídico evento ocorrido
em 1974 que o marcou de maneira irreparável. Naquele ano, as duas filhas gêmeas
do compositor, nascidas prematuras, morreram. “A partir dali, ele larga a
psiquiatria (era médico de formação) e se dedica somente à música. Somado a
outros eventos — a mãe quase morre no parto dele, a adolescência conturbada —,
tudo isso gerou um caldo de sofrimento e um olhar amargo sobre a vida que,
junto ao humor inerente a ele, tornam-no o letrista peculiar que se tornou”,
argumenta Vianna, que acredita que o episódio foi divisor de águas na carreira
do autor.
Nem o acidente de
carro, que lhe tirou parte do movimento de uma das pernas, em 1990, e rendeu 13
pinos no corpo contribuiu tanto para a faceta melancólica de Aldir Blanc. “Ele
mesmo afirma que, depois da morte das gêmeas, as fobias cresceram
amazonicamente”, conta o jornalista.
Apesar de trágico, o período foi fértil. Os anos
seguintes ao evento renderam clássicos da música brasileira e as celebradas
parcerias com João Bosco e, posteriormente, com Guinga. Atualmente, Aldir Blanc
dedica o cotidiano às amizades, à família, e, claro, às letras, embora em uma
escala menos producente, devido aos 66 anos e à interrupção de uma das
“terapias” favoritas: a bebida. Diagnosticado com diabetes, em 2010, o letrista
foi obrigado a abandonar o hábito. A seu modo, talvez seja ele próprio a
resposta ao tempo.
"Se Aldir Blanc
não tivesse tido sofrimentos tão pesados e um humor tão forte, não conseguiria
ser o letrista tão peculiar que ele é”
Luis Fernando Vianna,
jornalista e escritor
650
Número provável de
letras de Aldir Blanc
1946
Ano de nascimento do
compositor
100
Letras inéditas
publicadas no livro
Parcerias
A amizade de Aldir
Blanc com João Bosco rendeu uma das mais exitosas parcerias da música
brasileira. O bêbado e o equilibrista, Mestre sala dos mares, De frente pro
crime, são todas da festejada dupla. Quando Aldir apareceu de Kombi, em Ponte
Nova, município de Minas Gerais e cidade natal de Bosco, ainda não desconfiava
que encontraria por ali seu mais fiel companheiro musical. Nos anos 1980,
porém, especulações indicavam que brigas teriam afastado os compositores. “Não
teve desentendimentos, nem traumas. Apenas interesses diferentes”, desmente
Viana. A relação foi reatada posteriormente e, hoje, os dois “conversam
diariamente pelo telefone”.
Outro expoente da obra
de Aldir Blanc foi o carioca Carlos Althier de Sousa Lemos Escobar, mais
conhecido como Guinga. Juntos compuseram clássicos modernos como Catavento e
girassol e Nítido e obscuro. Mais uma vez, há quem jure que os dois romperam.
Para não restar dúvidas, Vianna eslarece: “Eles não compõem juntos há cinco
anos. Não houve uma briga, e sim um afastamento. Guinga começou a não gravar
algumas músicas dele. Aldir segurou um pouco a parceria com o Guinga”. A
produção, que era intensa, minguou. E nada mais. Assim parece já que, no
lançamento do livro no Rio, Guinga deu as caras. João Bosco também e, mais impressionantemente,
o próprio Aldir Blanc surgiu em carne e osso.
Quatro perguntas //
Patrícia Ferreira (pesquisadora e filha de Aldir Blanc)
Ainda há muito
material inédito do seu pai?
Tem muita coisa ainda
que não veio à tona. Muitas composições ele mesmo cortou. Da parceria com o
Guinga, por exemplo, faltam muitas músicas que se perderam. Letras que não
foram publicadas nos discos principais de Guinga ou que foram gravadas por
cantores que ficaram sem registro. Acho que o acervo de Aldir merece um tratamento
ainda maior. Pensei em um site, mais para frente. O livro traz material
valioso, mas é enorme a quantidade de coisas que ficou de fora. Precisaríamos
de muito tempo para tentar rastrear tudo.
Ele chegou a se
surpreender com a pesquisa?
Tivemos uns momentos
ótimos. Ele pegava os manuscritos e páginas datilografadas e dizia: “Eu escrevi
isso?” Até porque muitas letras não foram musicadas e acabaram ficando só no
papel. Ele não lembrava. Tive que mostrar a assinatura dele em algumas para ele
acreditar (risos). Isso aconteceu com algumas parcerias com o Luiz Cláudio
Ramos e com a Sueli Costa.
O fato de ser filha
dele não influenciou no resultado?
Poderia, mas não. Sou
pesquisadora há muitos anos. É o meu trabalho. Conversei com meu pai sobre isso,
para deixar claro que quando uma biografia é feita a vida inteira emerge.
Disse: “Prepara-se porque as coisas vão aparecer”. Afinal, não haveria como
editar fatos. A pesquisa precisava ser transparente. Ele entendeu e me deixou
bem à vontade. Fiquei sozinha com o material, no meio daquele monte de fotos,
manuscritos e documentos. Não poderia ser diferente já que o livro passa a ser
uma referência para pesquisadores, especialistas. Aqueles que se debruçam sobre
a obra de Aldir. Em se tratando dele, em especial, se fosse um outro
pesquisador talvez não conseguisse cavar tanto, vide a personalidade reclusa e
o jeito mais fechado do meu pai.
O convívio com seu pai
oportunou encontro com personalidades da música?
Ah sim! Moacyr Luz,
Nei Lopes, Leila Pinheiro, todo mundo. Já passei mal! (risos). João Nogueira,
gente! Meu Deus! Aquele dia falei: “Dá para avisar que é o João Nogueira?”
(risos). E eu com uma roupa de dormir. O Hermínio Bello de Carvalho, que é um
querido de Aldir, foi várias vezes. Eu ficava meio de tiete atrás deles, sem
conseguir falar, achando o máximo de eles estarem ali. Minha mãe me apresentava
e eu gaguejava! Mas, depois aproveitei. Fui a todos os shows. Andei com toda
essa boemia.
Resposta ao tempo
De Luiz Fernando
Vianna. Editora Casa da Palavra. Páginas: 352. Preço médio: R$ 55.
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