quarta-feira, 1 de junho de 2016
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OPINIÃO
Falta ao Poder Judiciário brasileiro o sentimento
de nação
REVISTA CONSULTOR JURÍDICO 31.05
Por Martonio Mont'Alverne Barreto Lima
João Mangabeira faleceu quase um mês após o golpe de
1964. Integrante do governo de João Goulart, bem sabia quem eram as instituições
brasileiras: “A história não se pode fazer com hipocrisias e mentiras. (...)
Foi esse órgão [Supremo Tribunal Federal] que, pela maioria de seus membros,
mais falhou a República, e em todos os momentos de sua angústia, de [18]92 até
[19]37”[1]. As palavras de João Mangabeira guardam vigorosa atualidade.
A discussão em torno da ausência de um sentimento de
nação no Brasil tem se envolvido muito entre duas grandes vertentes do
pensamento econômico: o dependencismo e desenvolvimentismo. Não se sabe ainda ao
certo se por comodismo ou por convicção ideológica a elite econômica do país
decidiu não seguir o exemplo comprovado da história do capitalismo, onde a
burguesia de outras sociedades garante o sucesso e lutam pelas empresas
nacionais, fazendo com o que o Estado defenda-as interna e externamente. Por
aqui, prefere liquidar a empresa e o avanço tecnológico nacionais,
entregando-se tudo o que temos ao mercado mundial, como se este mantivesse
preocupação com o nível de vida de nossa população. Em suma: falta-nos um
sentimento de nação. Pura “viralatice”! O desalentador é que ao Supremo
Tribunal Federal também falta este sentimento, o que o faz falhar à República
em 2016.
O STF acha-se tomado pela omissão na sua falha à
República. Composto por ministros abertamente parciais contra o governo;
obedientes às amizades; receosos das manchetes agressivas da imprensa
televisiva; demorados em proferirem decisões urgentes; complacentes com
inequívocos desvios de julgados das instâncias inferiores a atingirem direitos fundamentais;
recorrentes ao moralismo despolitizado e abstrato — onde cabe qualquer
argumento emotivo, ”com quem se o néscio povo engana” em plateias lotadas em
eventos ditos acadêmicos — acabam por permitir o que Baruch de Espinoza tanto
temia e advertia: a subida de homens e mulheres justos ao cadafalso: “Porque os
que sabem que são honestos não têm, como os criminosos, medo de morrer nem
imploram clemência; na medida em que não os angustia o remorso de nenhum feito
vergonhoso (...)”[2].
Assistiu-se a um processo de votação contra a
presidente da República comandado na Câmara dos Deputados — o começo de tudo —
por um deputado notoriamente envolvido em escândalos de corrupção de toda
ordem: Eduardo Cunha. Mais grave: repousava no STF a Ação Cautelar 4.070-DF
contra o então presidente da Câmara dos Deputados que manipulava, ainda, a
Comissão de Ética interna em seu favor, já que se processa contra o mesmo
presidente da Câmara pedido de perda de seu mandato. Nesta ação cautelar,
ajuizada em 16 de dezembro de 2015, o procurador-geral da República requereu o
afastamento da Presidência da Câmara dos Deputados de seu presidente, Eduardo
Cunha. A decisão do relator, ministro Teori Zavascki, veio somente em 4 de maio
de 2016. O STF referendou a decisão em 5 de maio de 2016, transcorridos quase
cinco meses de um pedido cautelar. Nesse período, o presidente da Câmara dos
Deputados, foi agora reconhecido pelo STF como “ (...) pejorativo que conspira
contra a própria dignidade da instituição por ele liderada. Nada, absolutamente
nada, se pode extrair da Constituição que possa, minimamente, justificar a sua
permanência no exercício dessas elevadas funções públicas”[3]. Nesta condição,
o STF permitiu que ele liderasse processo e votação de admissibilidade de
impeachment contra a presidente da República; votação que se realizou em 17 de
abril de 2016.
No Mandado de Segurança 34.193-DF, a presidente da
República, em 10 de maio de 2016, requereu a sustação da votação no Senado
Federal do processo que admitiria a denúncia contra crime de responsabilidade,
o que levou ao seu afastamento do cargo. No dia seguinte, o relator, ministro
Teori Zavascki denegou a segurança, recorrendo ao seguinte argumento, entre
outros: “O juiz constitucional dessa matéria é o Senado Federal, que, previamente
autorizado pela Câmara dos Deputados, assume o papel de tribunal de instância
definitiva, cuja decisão de mérito é insuscetível de reexame, mesmo pelo
Supremo Tribunal Federal. Admitir-se a possibilidade de controle judicial do
mérito da deliberação do Legislativo pelo Poder Judiciário significaria
transformar em letra morta o artigo 86 da Constituição Federal, que atribui,
não ao Supremo, mas ao Senado Federal, autorizado pela Câmara dos Deputados, a
competência para julgar o presidente da República nos crimes de
responsabilidade”[4].
Com este entendimento, afirmou o STF que não “ (...)
não há base constitucional para qualquer intervenção do Poder Judiciário que,
direta ou indiretamente, importe juízo de mérito sobre a ocorrência ou não dos
fatos ou sobre a procedência ou não da acusação”[5].
Como a história não admite hipocrisias, nada como um
exame do comportamento do STF no único caso precedente que se tem após 1988: o
impeachment do presidente Fernando Collor de Mello. No Mandado de Segurança 21.689,
impetrado pelo então presidente Collor de Mello, requereu-se a anulação da
aplicação de sua pena de oito anos para exercício de cargo ou função pública,
em vista da renúncia do então presidente, antes do julgamento do Senado
Federal. Neste processo, o STF contou com apenas oito de seus ministros, já que
três de seus membros deram-se por impedido e suspeitos[6]: A votação empatou e
foram recrutados três ministros do Superior Tribunal de Justiça[7], os quais
desempataram a questão no sentido de manter a Resolução 101, de 1992, do Senado
Federal que julgou procedente a denúncia por crime de responsabilidade, com
aplicação da pena de vedação do exercício de cargo ou função pública por oito
anos ao então presidente Collor de Mello.
O que se depreende desta decisão do STF? 1) Que
quatro votos do STF deliberaram ser possível indiretamente a desconstituição da
decisão do Senado Federal, sob a alegativa de inobservância de requisito
formal; 2) neste caso, o STF manteve a decisão do Senado Federal; porém não
deixou dúvidas que, ao conhecer e julgar a questão, poderá interferir e
modificar a decisão do Senado; 3) que o STF de 2016, ao referendar a decisão no
MS 34.193-DF aqui mencionado, simplesmente ignorou sua única jurisprudência de
precedente sobre o assunto. Pode-se, claro, exercer a crítica sobre este
entendimento do STF a respeito de controle judicial sobre julgamento de crimes
de responsabilidade. O que chama a atenção, porém, é a evidente sinalização que
o STF expede quando rompe com sua própria tradição jurisprudencial, sem
qualquer fundamentação sobre as razões de sua mudança de orientação. Há ainda
mais a ser dito neste caso.
Não somente neste MS 21.689, mas durante todas as
ações do então presidente Collor de Mello que foram analisadas no STF, houve
sempre uma voz pelo não conhecimento de tais pedidos, em razão de sua natureza
política: eram os votos do ministro Paulo Brossard. Em todos os processos, foi
o ministro Paulo Brossard vencido. Num primeiro momento, acompanhado pelo ministro
Sepúlveda Pertence, que mudou sua orientação para acompanhar a maioria do
STF[8]. Veja-se as palavras de Paulo Brossard, onde foi vencido: “O meu
entendimento se funda no fato de a Constituição haver reservado ao Senado toda
a jurisdição a respeito da matéria, e excluído, por conseguinte, a
interferência do Poder Judiciário”[9]. O que se pode concluir? Que o mesmo
argumento do STF serviu para todos os lados: ontem, para afirmar que o Poder
Judiciário pode e deve interferir nas questões relativas ao processo de
impeachment no Senado Federal; hoje para dizer que não há como o Poder
Judiciário interferir nesses casos. Repita-se: tudo isso recorrendo ao mesmo
entendimento, sem que se fundamentassem as razões de abandono do precedente do
próprio STF.
Como uma República chega a tal ponto de indigência
de suas instituições? Novamente a história acode-nos. Na esteira das
advertências da história, é inspiradora a reflexão de Georg W. F. Hegel sobre a
A Constituição da Alemanha. Ao iniciar a obra com proféticas palavras de que a
“A Alemanha não é mais um Estado”[10], Hegel explica como a degenerescência de
um sistema político redunda em completo caos, ao faltar a noção de Estado para
as instituições que integrariam o poder deste mesmo Estado.
Quando se perde esta noção, e os homens e mulheres
que o integram abandonam-se no complexo da política e da economia,
completamente inertes e passivos, exatamente quando deveriam agir em nome da
preservação mínima da “estatalidade” (Staatlichkeit), não o fazem; sucumbindo à
desingênua racionalidade dos que almejam a fraqueza do mesmo Estado para
satisfação de interesses privados — econômicos e políticos — atinge-se o ponto
de não mais se ter constituição alguma. Desta forma é que “as partes do poder
geral do Estado consistem numa multiplicidade de propriedades exclusivas,
independentes do mesmo Estado, divididas sem qualquer critério ou regra.
Referida multiplicidade de unidades patrimoniais não constitui um sistema de
direitos, mas uma mera coleção sem princípios racionais que os unifique, onde
suas inconsequências e confusão necessitarão de ajudar superior para
resgatá-las (...)”[11]. Na linhas que se seguem, Hegel identifica a ausência do
poder do Estado, onde cada um, privadamente, realiza o que bem entende, como os
“integrantes da hierarquia política, das casas principescas”[12] etc. Não há
Estado possível porque faltam instituições que o garantam. Evidente que tal
quadro não é produto da irracionalidade, porém de uma racionalidade que assim
deseja um quadro de enfraquecimento generalizado do poder estatal.
Na situação constitucional e política brasileira, o
que restou desde 1988? Muito pouco. A separação de poderes da Constituição
Federal acha-se espatifada: juízes e tribunais fazem o que bem entendem, não
mais vinculam suas decisões às claras regras constitucionais; porém na
incerteza extrema da avaliação meramente principiológica, a permitirem que
juízes decidam "conforme sua consciência", e não conforme a
Constituição e as leis. Mais: a permitir também que juízes de instâncias
superiores — como aqueles do Supremo Tribunal Federal — decidam não decidir,
como se não fosse este também um tribunal da política constitucional
democrática, como se assim não se tivesse definido este mesmo tribunal.
Por outro lado, a confirmar as partes do poder geral
do Estado que se perde, o Poder Legislativo entende não mais precisar
submeter-se às regras constitucionais, sob o astuto argumento de que é um poder
político, como se na política democrática tudo fosse permitido, deixando com
que o processo de crime de responsabilidade contra a atual presidente da
República resolva-se com toda sorte de abusos e ilegalidades, materializando as
“inconsequência e confusão” da falta de uma noção de Estado. Neste panorama,
garantias tão preciosas, como a presunção de inocência, desceram aos infernos
por decisão do próprio Supremo Tribunal Federal, em nome do vazio moralismo,
apenas para simbolicamente oferecem a noção de que o combate à corrupção é
efetivo.
A crise política brasileira arrasta-se desde 2014,
quando a oposição e o poder midiático não aceitaram uma quarta vitória
consecutiva do Partido dos Trabalhadores. Esta não aceitação inclui a recusa
clara à política externa brasileira, ao tratamento da riqueza natural do
petróleo, ao protagonismo dos setores baixos e médios da sociedade, e à
ampliação do acesso a todos os níveis de educação dos setores baixos e médios
da população, além do que seu humano esforço poderia prometer. Mais uma vez,
confirma-se a tese de que, no Brasil, o Poder Executivo é que transforma o
Estado brasileiro nos momentos de mudança política e econômica. O golpe de 2016
apenas confirmou que o Poder Judiciário e o STF continuam faltando à República.
Pouco aprenderam com a história, e não há sinais de que aprenderão desta vez; todos
a confirmarem, com Montaigne, que “a covardia é a mãe da crueldade”[13].
[1]Mangabeira, João: Rui: O Estadista da República.
Brasília: Senado Federal: 1999, p. 85.
[2]Espinoza, Baruch de: Tratado Teológico-Político.
Martins Fontes: São Paulo, 2003, p. 307.
[3]Ação Cautelar nº 4070, p. 71 do voto Relator.
[4]Mandado de Segurança nº 34.193-DF, p. 7.
[5]Id. ib., p. 6. Destaquei.
[6]Sidney Sanchez presidiu o julgamento do então
Presidente Collor de Mello no Senado Federal. Deu-se por impedido. Francisco
Rezek fora Ministro das Relações Exteriores de Collor de Mello, e Marco Aurélio
havia sido nomeado pelo mesmo Presidente, além de ser seu parente. Estes
deram-se por suspeitos (MS 21.689-DF., pp. 333/394. In; Impeachment. Supremo
Tribunal Federal: Brasília, 1996).
[7]Ministros José Dantas, Torreão Braz e William
Patterson. Id. ib., p. 394.
[8]Id. ib., p. 82.
[9]Id. IB., p. 367.
[10]Hegel, G. W. F.: Die Verfassung Deutschlands.
Suhrkamp: Frankfurt/M., 1986, p. 461.
[11] Id. ib, p. 467.
[12]Id.ib, p. 467.
[13]Montaigne, Michel de. Ensaios, Livro II. Nova
Cultural: São Paulo, 1996, p. 68.
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Martonio Mont'Alverne Barreto Lima é professor
titular da Universidade de Fortaleza (Unifor), doutor em Direito pela
Universidade de Frankfurt. Procurador do município de Fortaleza.
Revista Consultor Jurídico, 31 de maio de 2016,
15h51
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