quinta-feira, 30 de abril de 2015

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Washington Novaes
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Quem quer de volta a censura?
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A ausência de propostas políticas abrangentes e viáveis para o País, a descrença nos aparatos institucionais, a desesperança que se vai instalando em tantas mentes, fazem ressurgir aqui e ali, na comunicação e/ou em manifestações de rua, apelos para a “volta dos militares ao poder”. É muito inquietador. Não se deveriam esquecer os muitos anos por que passou o País no longo tempo de arbítrio, o que ele significou para a comunicação – principalmente depois do Ato Institucional número 5 -, o vácuo em que se viu envolta a sociedade com as falta de informações e sem porta-vozes para seus desejos. E não podemos, agora, perder o que foi tão difícil reconquistar.

O autor destas linhas viveu em jornais, revistas e na televisão aqueles tempos sombrios. No Jornal Nacional da Rede Globo, por exemplo, onde foi editor de Economia, costumávamos dizer que “até porteiros de ministérios” telefonam para dizer eles, mesmos, que esta ou aquela notícia não deveria ser divulgada. E eram obedecidos, sob pena de riscos extremos para os desobedientes. No Globo Repórter, onde este escriba foi editor-chefe na segunda metade da década de 1970 e começo da década de 1980, as restrições eram tão fortes e absurdas quanto aquelas. Já levavam a que nem sequer se cogitasse de certas temas, quanto mais correr o risco de mobilizar jornalistas e técnicos e ver todo o esforço deles perdido.

Porque todas as semanas recebíamos dois censores federais que viam previamente o programa que seria exibido em seguida. E eles diziam que isto “´pode” ou “não pode”, que tais e tais sequências não poderiam ir ao ar. Em certos casos, chegavam a proibir um programa inteiro. Foi o caso, por exemplo, de um documentário sobre a invasão do Pontal do Paranapanema – última grande reserva de mata no Estado de São Paulo – por proprietários rurais, que sequer documentos legais comprobatórios de seus direitos tinham. Não foi mesmo ao ar. E hoje praticamente nada resta da reserva legal.

Também foi o caso de um documentário que tomou como ponto de partida competente pesquisa de uma televisão sueca, sobre os problemas da energia nuclear em muitos países – pois não havia solução, nem para eliminar os riscos de acidentes terríveis, nem para o lixo nuclear que produziam. Já havia no mundo centenas de usinas nucleares e todas mantinham os resíduos em “depósitos provisórios”. O Globo Repórter documentou a opção brasileira pela energia nuclear em Angra dos Reis – e para a mesma falta de soluções para os riscos de acidentes e para o lixo radiativo (que são os mesmos ainda hoje). Já havia “chamadas” no ar para o programa (achou-se que não haveria problemas com a censura) quando o chefe-geral da censura federal, por telefone, sem que sequer seus subordinados tenham visto o programa, proibiu sua exibição. Não havia a quem recorrer. Nunca foi exibido.

Também houve momentos tragicômicos. Um deles, quando duas censoras foram mandadas para ver e autorizar – ou não – a exibição de um programa que partira de segmentos de um documentário sueco sobre os dramas sociais da África – e era complementado por blocos locais que documentavam situações semelhantes de pobreza no Brasil. Mas as censoras nem precisaram chegar a essas partes. Já em cenas captadas pela televisão sueca havia momentos comoventes sobre o nascimento de um pigmeu africano, o momento em que saía do ventre da mãe. Sem esperar mais nada, uma das censoras decretou: “Toda essa parte precisa ser cortada.”

O editor-chefe, obrigado a acompanhar o processo da censura, tentou argumentar em sentido contrário. E o diálogo foi antológico. Editor: “Por que cortar todas essas cenas, tão bonitas, captadas com tanta competência?” Censora: “Porque é imoral”. Editor: “Mas como a senhora qualifica de imoral a documentação do momento mais bonito da vida de uma mulher, quando ela dá a luz a uma criança?” Censora: “Mas é imoral, não pode ser visto na televisão por uma criança.” Editor: “Mas como?” Censora: “Já está decidido. Corta tudo.” E cortado foi. Sem ter a quem apelar.

Em certos momentos, a redação era obrigada a malabarismos. Como na ocasião da morte do jornalista Vlado Herzog, em uma prisão do Doi-Codi, em São Paulo. Era proibido até mencionar o episódio. E o autor destas linhas teve de criar um texto final para um documentário sobre as maravilhas que já estavam no corpo humano na hora em que nascia uma criança – tudo o que esse corpo já era capaz de fazer, suas capacidades, metabolismos, tudo. E por isso mesmo, o corpo humano deveria “ser intocável do nascimento à morte, não sujeito a brutalidades nem arbitrariedades durante toda a sua vida” etc. E quem viu o programa, dentro ou fora da TV, soube imediatamente que, sem mencionar, tentava-se condenar as ilegalidades e violências que cercavam a morte do jornalista.

Tudo isso parece muito distante no tempo, 40 anos ou mais. Mas já está implícito em ameaças que nos cercam, de voltar a fórmulas do passado. E é preciso rejeitá-las, não aceitá-las de retorno. Melhor voltarmos nossa atenção para o exemplo admirável de contingentes militares atuarem no combate à epidemia da dengue em São Paulo, Goiás e outros lugares. Ou para sua atuação exemplar no socorro a vítimas de tornados em Santa Catarina. Teremos muito de que nos orgulhar por esses caminhos. Não precisamos trazer de volta um passado que precisa ser sepultado definitivamente.




Washington Novaes é jornalista

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