sábado, 8 de setembro de 2012
A voz poética de Bandeira
Estrela
da Vida Inteira condensa a obra de um autor que foi um arquiteto das palavras,
um mago da expressão
O
popular/GO 08.09
-
Diomício
Gomes
A
obra Estrela da Vida Inteira, de Manuel Bandeira, exige, sobretudo, um leitor
atento. E a razão deve-se, primeiramente, ao fato de se tratar de um conjunto
de vários livros, publicados todos, aproximadamente, entre 1917 e 1956. Versos
reunidos que marcam o ofício de uma vida inteira guiada pela arte da poesia,
mas que, em contrapartida, deixa-nos frente a um paradoxo. Ele se instaura
entre a orientação de que um poeta deva ter seu projeto literário compreendido
pelo conjunto de sua produção e, ao mesmo tempo, a dificuldade de se crer que,
ao longo de sua obra, um autor nunca deixara de ser o mesmo.
Em
outras palavras, pertenceriam A Cinza das Horas e Mafuá do Malungo a uma mesma
verve poética? Haveria uma única paisagem a marcar o conjunto de uma vida
inteira de escrita poética? De fato, é preciso ler a obra completa de um poeta
para melhor conhecer seu “projeto”, porém, em se tratando de Estrela da Vida
Inteira, o que encontramos é um conjunto de 11 livros, o que, para o
vestibulando, caso queira realmente se aproximar da obra poética de Bandeira
por inteiro, não deixa de constituir um grande desafio.
Tentando
assumir essa tarefa, o que nos propomos aqui é, primeiramente, a escuta da voz
poética de Bandeira, a fim de indicarmos, em seguida, algumas paisagens de sua
poética. O que seria essa voz poética? A voz de um poeta é o que constitui a
sua identidade, sendo, ao mesmo tempo, detentora de materialidade e sentido,
modalizando-se existencialmente, escrevendo-se e construindo-se como registro.
A voz é uma extensão do corpo, misteriosamente evanescente, híbrida e mágica. A
voz poética é um “gesto verbal” do poeta, continuidade de seu corpo, a sua
repercussão, consequentemente, carregada de paisagens, horizontes temáticos e
estruturados de sentido. A partir dessa dinâmica, como poderíamos compreender a
voz poética de Manuel Bandeira?
Certa
vez, dissera Bandeira que “poesia social não é para quem quer, mas para quem
pode, e quem pode é Éluard, é Aragon, é Neruda, Carlos Drummond de Andrade”.
Pensando em um poeta que, considerado como um dos alicerces do modernismo, não
deixara de escrever versos parnasianos e simbolistas, com traços de romantismo,
certamente, atentos a sua obra, não deixamos de nos encontrar em uma espécie de
labirinto. Como entendê-lo? Não haveria nos versos de O Bicho lampejos de uma
reflexão social? O fato é que Bandeira, como acontece aos grandes poetas, não
se deixa rotular, sua obra ultrapassa as honras e formas de qualquer “escola”
literária, sendo sua voz poética uma multiplicidade harmoniosa de sons e
tonalidades.
Conforme
salientou em Itinerário de Pasárgada, o poeta chegara à conclusão de que “em
literatura a poesia está nas palavras, se faz com palavras e não com ideias e
sentimentos, muito embora, bem entendido, seja pela força do sentimento ou pela
tensão do espírito que acodem ao poeta as combinações de palavras onde há carga
de poesia”. Em seu ofício de poeta, atento à técnica da palavra, a valorização
da palavra encontrando-se acima de regras esquemáticas, Bandeira compreendera
as lições de Poe, de Baudelaire e de Mallarmé, e isso antes mesmo que o próprio
simbolismo brasileiro fosse capaz de esgotar todas as possibilidades abertas
por esses poetas.
As
Cinzas das Horas, nesse sentido, marcaria o início de um poeta, cada vez mais,
consciente de sua própria técnica. Embora mantendo alguns versos puramente
parnasianos, é possível notar um destaque ao ritmo que se articula mediante os
recursos das aliterações, do paralelismo, da repetição, da enumeração e da
assonância. Resgatando o uso do octossílabo, ainda raro na poesia brasileira de
sua época, mas constante no simbolismo francês, aliado às metáforas e ao sóbrio
emprego da adjetivação, assumindo a poesia como necessidade, fazendo versos
“como quem morre”, Bandeira já demonstrava a sua preocupação em tornar o poema
uma expressão da sensibilidade de uma voz poética capaz de tornar lírico o que,
até então, era entendido geralmente apenas como recurso gramatical, atitude que
aprendera particularmente de Camões, poeta cuja leitura lhe acompanhava desde o
tempo do velho Ginásio Nacional.
O
aprendizado dos sonetos de Camões, contudo, encontrava-se presente, em
Bandeira, especialmente nos versos de Carnaval, ali o “Camões petrarquiano e
consciente de seu requinte”, para usar uma expressão de Augusto Meyer, levaria
o poeta a uma ruptura com a prática da sinérese e da sinalefa, ainda recorrente
nos versos dedicados ao poeta português em A Cinza das Horas. Ao contrário, o
que se percebe é a celebração do hiato – que, em métrica, seria o oposto da
sinalefa –, conscientemente em desacordo com os manuais parnasianos,
notadamente o Tratado de Versificação, de Olavo Bilac e Guimaraens Passos.
Particularmente de seus estudos de Camões, Bandeira assume a considerada “rima
pobre”, inovando suas rimas com o uso de “particípio passado”, de “particípio
com função adjetiva” e de “pretérito perfeito”, tais como nos versos dedicados
a Jaime Ovalle:
“Jaime
Ovalle, poeta, homem triste,
Faz
treze anos que tu partiste
Para
Londres imensa e triste.
Ora
partes de novo. Existe
Um
motivo a que não resiste
Tua
tristeza, poeta, homem triste?
Queira
Deus não voltes mais triste...”
Não
se esquecendo das aliterações e da preocupação com o ritmo, Bandeira fizera uso
da polimetria, muitas vezes, escolhendo a redondilha como recurso expressivo,
buscando uma vivacidade rítmica, uma ternura lírica, mesmo correndo o risco de
se imiscuir no prosaísmo. Daí sua coragem, em Carnaval, de abrir seu livro com
um poema em prosa. Alcançando já sua maturidade, o poeta chegava a descobrir o
metro curto, presente no verso de quatro sílabas, distanciando-se da lírica
portuguesa antiga. O ritmo se descobria no uso de formas paralelas, cheias de
hiatos e assonâncias, partindo-se do pressuposto de que a rima, na verdade,
seria apenas uma “igualdade de som”, liberta especialmente dos apoios
consonantais, o que levaria Mário de Andrade a considerar magnífico, em
Carnaval, “os trechos de verdadeiro verso livre”, elegendo o poema Os Sapos
como um dos “maiores de nossa poesia”, poema que marcaria, sem dúvida, o movimento
modernista, além dos versos de O Ritmo Dissoluto ou de Libertinagem. Estaria
aqui a libertação radical do parnasianismo ainda presente no poeta?
Em
se tratando de Bandeira, seria antes uma “afinação poética”, uma transição de
si para si, haja vista que, longe de ser um militante do modernismo, embora
dialogando com ele e enamorado de seu desejo de liberdade poética, será o
lirismo o que, sobretudo, desejava celebrar o poeta, o lirismo liberto,
construído com uma linguagem familiar, mas incapaz de desconsiderar seu papel
de ser, primeiramente, expressão poética. Daí a liberdade do poeta de,
paradoxalmente, romper com a tradição, mas resgatar o soneto; negar as formas
do parnasianismo, mas, enamorado com o modernismo - sem, contudo, compartilhar
de seus preconceitos -, percorrer as trilhas do verso metrificado ou rimado,
conduzido sempre por uma “transmutação de técnicas”. Esse é o espírito que
guiará a composição dos versos que constituem Estrela da Manhã, Lira dos
Cinquent’anos, Belo Belo, Opus 10, Estrela da Tarde, Mafuá do Malungo,
juntamente com seus Poemas Traduzidos.
Várias
são as paisagens que marcam a obra poética de Bandeira, destacando-se, em
especial, temas vinculados aos horizontes do cotidiano, do erotismo e da morte,
misturados, às vezes, a uma meditação sobre a própria criação poética, tais
como encontramos nos poemas Desencanto, Os Sapos, Poética, O Último Poema,
Sextilhas Românticas, Nova Poética, dentre outros. Em breves linhas, a poesia é
um jogo no qual a densidade poética e significativa das palavras nasce de uma
fala eminentemente prosaica, tornando-se não apenas o lugar da experiência do
sujeito, mas o lugar da experiência da verdade. E como entendemos a verdade? O
ponto de encontro do sujeito lírico com o outro, seja o mundo, sejam seus
companheiros de existência, seja si mesmo. A “voz dramatizada” na lírica de
Bandeira se torna, especialmente, a voz do poeta que deseja revelar a sua
experiência do mundo, as suas paixões, as reminiscências de sua infância e suas
alegrias em meio às nostalgias de uma “vida que poderia ter sido e que não
foi”.
É
assim que, ao tecer essa linguagem poética, revelando paisagens, não raro,
soturnas e tétricas, “paisagens noturnas”, a sensibilidade poética de Bandeira
conduz o leitor a uma reflexão sobre a efemeridade da vida, cujos elementos
mais simples não deixam de adquirir cidadania em seus versos. Tal simplicidade
é a que bem ilustra o poema Versos Escritos n’Água, cujos quartetos
octossilábicos, carregados de afeto, nascendo talvez da situação fugaz de quem,
enamorado, põe-se a escrever versos na água, atitude quase onírica, encontram
seu cerne antes na simplicidade presente nas estruturas significativas do
poema, na enunciação que se instaura, do que única e necessariamente em sua
variação rítmica:
“Os
poucos versos que aí vão,
Em
lugar de outros é que os ponho.
Tu
que me lês, deixo ao teu sonho
Imaginar
como serão.
Neles
porás tua tristeza
Ou
bem teu júbilo, e, talvez,
Lhes
acharás, tudo que me lês,
Alguma
sombra de beleza...
Quem
os ouviu não os amou.
Meus
pobres versos comovidos!
Por
isso fiquem esquecidos
Onde
o mau vento os atirou.”
Desvelando
a transcendência secreta presente na simplicidade do quotidiano, antes
naturalizando a morte e as “paisagens noturnas” da vida do que as transformando
em especulação ou tema metafísico, ao longo de uma “vida inteira” de poesia,
cada vez mais se sentindo livre em relação aos esquemas preestabelecidos da
estética e da poética de seu tempo, Bandeira aproximava-se do verso folclórico,
da linguagem popular, da variação de ritmos e do emprego das onomatopeias, além
do poema em prosa, em meio as suas corajosas e inovadoras experimentações,
mescladas, muitas vezes, de simbolismo e hermetismo.
Por
conseguinte, não havendo o desejo de “destruir” a tradição, mantendo com ela
ainda alguns laços, o que encontramos em seus versos é a tarefa de um poeta
que, tendo compreendido o simbolismo, não hesitou em deixar de lado as
preocupações parnasianas, especialmente quando se tornavam um obstáculo à
criação poética. Poeta urbano, trabalhando as antíteses e o jogo das imagens,
não temendo tocar, em seu “alumbramento”, as raias dos devaneios, dos sonhos e
da fantasia, podemos melhor compreender Bandeira levando em consideração a
estrela que, durante toda a sua vida, fora a sua guia, a saber, a própria arte
poética, o próprio ofício do verso. Antes de ser um escritor assombrado pela
morte, preso nos temas do pessimismo e nas antíteses nascidas de uma vida
infeliz e tuberculosa, sobretudo, fora um poeta, um arquiteto das palavras, um
mago da expressão.
Rodrigo
Vieira Marques é doutor em Filosofia e Metodologia das Ciências pela
Universidade Federal de São Carlos e professor da Faculdade de Letras da UFG
Nascido
em Recife em 1886, Manuel Bandeira morreu no Rio de Janeiro, em 1968. Foi
poeta, crítico literário e de arte, professor de literatura e tradutor. Fez
parte da famosa geração de artistas e intelectuais brasileiras que participaram
da Semana de Arte de 1922. Uma certa melancolia, associada a um sentimento de
angústia, permeia toda a sua obra.
Estrela
da Vida Inteira é a reunião das poesias completas de Manuel Bandeira, desde A
Cinza das Horas, publicado em 1917. Na obra, é possível conhecer a riqueza da
poesia desse autor, que foi um dos mais criativos e inovadores da literatura
contemporânea. Seus poemas, sempre atuais, são líricos e ao mesmo tempo
bem-humorados, com um estilo que consegue ser singelo e sarcástico.
Livro:
Estrela da Vida Inteira
Autor:
Manuel Bandeira
Editora:
Nova Fronteira
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LITERATURA
Ensaísta Roberto Ventura, morto há 10 anos, ganha homenagem
DE
SÃO PAULO - O Instituto Moreira Salles realiza na próxima segunda o evento
"Roberto Ventura: Uma Homenagem", no teatro Eva Herz, na Livraria
Cultura (av. Paulista, 2.073; às 19h30; entrada franca). FOLHA SP 08.09
-
O
bate-papo vai reunir três amigos do ensaísta, que foi um dos principais
estudiosos da obra de Euclydes da Cunha no Brasil: o jornalista da Folha Mario
Cesar Carvalho, a antropóloga Lilia Schwarcz e o crítico Francisco Foot
Hardman.
Ventura
morreu em agosto de 2002, aos 45 anos, em um acidente de carro. Ele dirigia de
São José do Rio Pardo para São Paulo quando seu carro colidiu com um caminhão.
Professor
de literatura da USP, ele também teve destacada atuação na imprensa. Foi
articulista da Folha entre 1988 e 1990, colaborador do extinto caderno
"Mais!" e do jornal "O Estado de S. Paulo".
Ele
deixou inacabada uma biografia sobre o autor de "Os Sertões", projeto
ao qual se dedicou durante dez anos. O material foi reunido em "Retrato
Interrompido da Vida de Euclydes da Cunha", publicado pela Companhia das
Letras de 2003.
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