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O professor de
literatura italiano Nuccio Ordine
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segunda-feira, 7 de março de 2016
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O conhecimento é um valor em si,
defende o italiano Nuccio Ordine
ÚRSULA
PASSOS
FOLHA DE SP 06/03/2016 02h03
RESUMO O professor de literatura italiano Nuccio
Ordine, estudioso de Giordano Bruno, lança no Brasil livro em que defende o
saber como única maneira de desafiar as leis do mercado e o utilitarismo que
dominam a sociedade atual. O intelectual, 58, fala sobre conhecimento,
resistência, estudos clássicos, crise e ensino.
*
Não é útil apenas o que gera lucro ou tem uma
finalidade prática imediata; o que muitos acreditam ser inútil pode ser, na
verdade, indispensável à humanidade. É o que defende Nuccio Ordine em "A
Utilidade do Inútil - Um Manifesto" [trad. Luiz Carlos Bombassaro, Zahar,
224 págs., R$ 39,90], que acaba de sair no Brasil.
Apesar do subtítulo, o livro não é exatamente um
manifesto em sua forma, mas é composto de duas partes em florilégio –antologia
de citações comentadas– e uma, a central, em que Ordine dialoga com textos como
"Sem Fins Lucrativos" (WMF Martins Fontes), da filósofa americana
Martha Nussbaum, sobre a transformação da educação em comércio.
No livro, o italiano, professor de literatura,
especialista na obra de Giordano Bruno (1548-1600), apresenta diversos trechos
de outros autores, de Aristóteles e Ovídio a Foster Wallace e Ionesco, para
mostrar como a filosofia, o teatro, a música e outras faces da cultura são
essenciais à humanidade ainda que vivamos numa sociedade marcada pelo
utilitarismo, na qual os interesses e as trocas são sempre validadas pelo valor
monetário e de uso prático imediato.
Ordine está no Brasil nesta semana para o lançamento
do livro, traduzido em 18 idiomas, e fará conferências em São Paulo, nesta
terça (8), em Caxias do Sul, Porto Alegre e Campinas. Em entrevista por
telefone de sua casa na Itália, ele fala sobre como resistir ao utilitarismo, a
importância do estudo dos clássicos e sobre educação.
*
Folha - Como o conhecimento pode ser uma resistência
ao utilitarismo?
Nuccio Ordine - O conhecimento pode ser uma forma de
resistência por três motivos. O primeiro é: com dinheiro podemos comprar tudo.
Na Itália, com dinheiro compram-se parlamentares, juízes, sucesso na televisão;
a única coisa que não se pode comprar com dinheiro é o saber, porque demanda um
esforço que ninguém pode fazer em nosso lugar. O conhecimento reside exatamente
no esforço que fazemos para aprender, que nos permite ser o que somos.
Wittgenstein dizia que não tinha orgulho das coisas
que aprendeu, mas do esforço que fez para aprender. E era esse esforço o que
dava a ele o direito à fala.
O segundo motivo é a cultura poder colocar em xeque
a regra principal do comércio e do utilitarismo. Em cada ação comercial sempre
há uma perda e um ganho; se eu quero comprar uma garrafa de água, eu perco meu
dinheiro e pego a água, o comerciante perde a água e ganha o dinheiro. Mas,
todos os dias, nas escolas do mundo todo, há um pequeno milagre. Posso ensinar
sem perder o que ensino e, ao mesmo tempo, posso aprender com meus alunos.
O terceiro motivo vem da anedota contada pelo
irlandês George Bernard Shaw (1856-1950). Dois estudantes saem de casa com uma
maçã, se encontram na universidade, trocam as maçãs, e, no fim do dia, voltam
para casa cada um com uma maçã. Mudemos então a perspectiva; imaginemos que
dois estudantes saiam de casa cada um com uma ideia, se encontram na
universidade, trocam as ideias, e eles chegarão em casa cada um com duas
ideias. A cultura pode enriquecer todos os protagonistas.
Meu livro é pessimista porque é sobre a força que o
utilitarismo tem hoje e, por outro lado, é otimista, porque a cultura pode ser
uma forma de resistência a ele.
O sr. diz que o saber tem um preço, ainda que não
monetário. Qual é o preço do conhecimento?
Basta ler uma passagem muito bonita de "O
Banquete", de Platão. Agatão se aproxima de Sócrates e diz que gostaria de
adquirir o seu saber. Sócrates, então, diz a ele que o saber não se transmite
pela aproximação, do que está mais cheio para o mais vazio, mas que o saber
demanda um esforço.
É preciso fazer esse esforço, reservar um tempo,
refletir, se fechar num quarto e ler na solidão e no silêncio; sobretudo, é
preciso respeitar a regra da lentidão, e não a da rapidez. Então esse preço que
é preciso pagar pelo conhecimento, na nossa sociedade, demanda uma visão oposta
à corrente, porque hoje a regra principal é a rapidez. Estamos sempre sendo
atrapalhados pelo barulho do celular, da televisão, dos computadores, os jovens
não conseguem um momento para se recolher, para se concentrar e ler lentamente.
O que escrevi é também uma crítica à pedagogia
moderna, que quer ensinar os jovens pelo jogo, pela superficialidade, sem
demandar esforço. É um erro enorme, o saber não é um dom, é uma conquista
cotidiana que é preciso fazer.
Na sociedade como descrita pelo sr., que visa apenas
ao lucro, que papel têm a desempenhar artistas, humanistas e cientistas?
Uma batalha muito importante. Eu quero dizer aos
homens de ciências, aos colegas, que é preciso lutar no mesmo front. Nos anos
1950 houve uma separação entre as ciências humanas e as ciências da natureza,
entre os humanistas e os cientistas. Hoje a batalha é contra o utilitarismo. No
domínio das ciências, só se dá dinheiro para a pesquisa aplicada, que deve
chegar a um produto que possa ser vendido no mercado.
Os cientistas e homens de ciência devem reivindicar
que precisamos de saberes não imediatamente traduzíveis em lucro. Se não damos
dinheiro para a pesquisa fundamental, teórica, grandes revoluções na história
da humanidade não se darão mais. Quem inventou o rádio? Guglielmo Marconi. Mas
ele não teria inventado nada sem os trabalhos fundamentais de Maxwell e Hertz.
Se alguém tivesse perguntado a eles para que servem as ondas eletromagnéticas
eles teriam respondido: de nada servem, só para conhecer.
O lucro deve ser um meio para mudar a vida dos
trabalhadores, dos donos de empresas, mas também do entorno. Se o capitalismo é
agressivo e quer fazer dinheiro imediatamente, como vimos na Alemanha no caso
Volkswagen, se é ávido, ganancioso, vai levar à morte total do próprio
capitalismo.
Embora o sr. diga no livro que o conhecimento não
tem finalidade, há aqueles usam o conhecimento para subjugar outros. Como
evitar isso?
É preciso ver como nos relacionamos com a cultura,
talvez de uma forma superficial, baseada na aparência –eu posso ir ao teatro, a
um concerto de música clássica porque, em determinados meios, isso me dá
visibilidade, mas não é indo a um concerto que eu posso operar verdadeiramente
uma revolução em mim. O mesmo vale para escola. Eu posso ir à escola, ter
diploma universitário, mas não é ele que me faz cultivado, o que me faz
cultivado é o espírito com o qual eu faço esse percurso.
Eu sempre digo aos meus estudantes: se vocês estudam
o "Dom Quixote" de Cervantes, a "Divina Comédia" de Dante,
Shakespeare, para conseguir uma nota na universidade, isso não serve para nada.
Porque essa leitura visando a uma nota, a um diploma, não opera nenhuma revolução
em seu interior. Ao contrário, se eu me aproximo de um clássico com vontade de
conhecer, com alegria de ler, com a certeza de que um trecho de Shakespeare
pode me ajudar a compreender o mundo no qual eu vivo, então essa leitura
operará uma revolução em meu interior e, depois, me permitirá ser melhor. E,
assim, quando eu for melhor, eu também poderei ganhar uma nota boa, conseguir
um diploma, mas é um efeito, não é o objetivo.
Hoje, infelizmente, as escolas e as universidades
viraram empresas que vendem diplomas, e os alunos, clientes que compram
diplomas; nessa perspectiva, nesse espírito de comércio, as ideias de cultura,
de conhecimento e de educação são destruídas.
Qual o papel do professor no gosto pela leitura e
pelos clássicos?
Há uma estupidez enorme nas reformas que estão sendo
feitas em países da Europa, segundo a ideia de que a escola moderna deve ser
conectada, com internet em todo lugar, e que o estudante tenha um tablet ou um
computador diante de si. Isso é uma estupidez enorme. A escola moderna não é a
conexão, a tecnologização, mas a escola com bons professores, porque eles geram
bons alunos.
Se o professor não ensina com paixão, se não tem a
humildade de preparar a cada dia seu curso, se entra numa classe e fica olhando
o relógio porque deve sair para uma reunião de departamento da faculdade para
tratar de dinheiro, para preencher papéis, isso é um crime. Os estudantes, se
colocados diante de um professor que não ensina com paixão, não terão nenhuma
paixão.
Outro erro é perguntar para alunos de 12, 13 anos
qual profissão querem ter. E baseado na resposta é preciso escolher a escola de
ensino médio, a universidade. Queremos que os alunos se especializem e escolham
um trabalho muito cedo, mas é uma forma de corromper o aluno. Eles deveriam
pensar apenas em absorver o saber, em se tornarem pessoas melhores. A
especialização mata a curiosidade e, assim, matamos toda a possibilidade de
criar um aluno que possa aumentar seu saber.
O sr. fala do ensino do latim e grego. Alguns
países, como a França, estão discutindo a manutenção das línguas clássicas no
currículo. Qual a importância de seu aprendizado?
Estamos assistindo ao desaparecimento programado das
línguas clássicas no ensino. Em países como Itália, França, Alemanha, começamos
a marginalizar o latim e o grego porque precisamos responder: para que serve?
Essa questão é mal colocada porque não podemos colocar na mesma balança o grego
e latim e, do outro lado, por exemplo, o inglês.
Não estudamos latim e grego para falar, mas porque é
uma forma de educação à lógica, ao rigor, uma postura para compreender de onde
vem nosso saber. Praticamente todas as questões que discutimos em filosofia, na
ciência, na vida social, vêm da Grécia.
A Coreia do Sul, por exemplo, entendeu que, sem as
humanidades, não temos a possibilidade de fazer progredir a ciência e a
tecnologia, porque elas necessitam da criatividade, que vem exatamente da
fantasia e da imaginação.
Imaginemos a humanidade daqui a 100, 150 anos,
quando os últimos conhecedores dessas línguas, como também o sânscrito, estiverem
mortos; mais ninguém será capaz de lê-las, de ler uma inscrição numa descoberta
arqueológica, um manuscrito, coisas importantes da história da humanidade.
Sem memória não há conhecimento nem identidade. O
passado é fundamental para compreender o presente e o futuro. Se matamos as
disciplinas humanistas e as línguas clássicas, criamos o deserto do espírito, e
nele podemos ver o egoísmo, a intolerância, as guerras de religião, a violência
e todas as coisas ruins que vimos na história se multiplicarem ainda mais.
Em tempos de crise, quando é preciso fazer uma lista
de prioridades, como assegurar que a cultura não fique de fora dessa lista?
Num momento da história, penso na Itália, que eu
conheço bem, a escola era uma espécie de elevador social. Eu, que vinha de uma
família modesta, ou meus professores, que vinham de famílias modestas, pelo
fato de terem frequentado o ensino médio, a universidade, tiveram a
possibilidade de progredir socialmente, financeiramente, nos degraus, digamos,
do sistema social. Hoje está cada vez mais difícil.
Eu preciso dizer que essa crise não é econômica, é
moral. Imagine o que poderíamos fazer com o dinheiro da corrupção e da evasão
fiscal. Pela saúde, pela educação. É importante que se entenda que investir em
cultura é uma forma de melhorar a humanidade. A corrupção não é combatida
apenas com leis, é preciso formar alunos capazes de resistir à corrupção. Não
podemos aceitar que roubem o dinheiro que poderia ser investido para melhorar a
humanidade.
ÚRSULA PASSOS, 28, é redatora da "Ilustríssima".
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