terça-feira, 8 de dezembro de 2015

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Para ficar em dia com a leituraSete romances recém-lançados reúnem o melhor da produção em língua portuguesa publicada nos últimos meses

FONTE: CORREIO BRAZILIENSE 08.12.15
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O segundo semestre de 2015 foi generoso com a literatura em língua brasileira. Nos últimos dois meses, uma leva de pelo oito novos romances de autores nacionais e dois de lusófonos (Mia Couto e José Luis Peixoto) chegam às livrarias e merecem um olhar mais empolgado do leitor. Muitos deles podem aparecer nas listas de finalistas dos prêmios literários de 2016. Para quem quiser ficar em dia com a produção nacional e marcar gol na hora de conferir os premiados, a hora de começar a leitura é agora. O Diversão & Arte fez uma seleção de títulos que representam o melhor na literatura nacional (e alguns queridinhos de língua portuguesa) para guiar os aficionados nas leituras de fim de ano.

Mulheres de cinzas
De Mia Couto. Companhia das Letras, 344 páginas.
R$ 39,90

É na história de um Moçambique colonial que Mia Couto foi buscar o material para este primeiro volume de uma trilogia sobre o último imperador a dominar o Estado de Gaza, então parte da colônia portuguesa. Conhecido como Gungunhane, o personagem histórico travou batalhas com os portugueses para tentar manter o domínio da região. No livro, a trama central é o encontro entre um sargento e uma intérprete de uma tribo rival à de Gungunhane.


Antes que seque
De Marta Barcellos. Record, 192 páginas. R$ 32

Vencedor do Prêmio Sesc de Literatura e estreia na ficção da jornalista Marta Barcellos, Antes que seque fala de mulheres, de seu papel na sociedade, das cobranças comuns, dos anseios diante da maternidade e de outros medos, receios e resignações. Em tom muitas vezes irônico, a autora carioca desfila histórias em tom de crítica diante do que é esperado pela sociedade quando se trata do universo feminino. Uma mãe que queria tanto os bebês, mas não sobrevivia sem babá, outra que não sabe o que fazer diante do ódio da filha, a dificuldade de engravidar e outras situações são as matérias-primas de Marta.


A realidade devia ser proibida
De Maria Clara Drummond.
Companhia das Letras, 106 páginas. R$ 23,90

“Um dia vou escrever um livro sobre essas pessoas”, avisa Eva, logo no início de A realidade devia ser proibida. “Essas pessoas” são exatamente o tema desta pequena narrativa, o segundo romance da carioca Maria Clara Drummond. Eva é uma jovem que cresceu entre a mãe controladora e conservadora e o pai casado com uma milionária. As pessoas sobre a qual a narradora desfia considerações para lá de críticas são jovens que, como ela, vêm de um meio privilegiado e trazem no discurso um certo desprezo por tudo que é estranho a seu mundo. Mas Eva consegue enxergar a superficialidade e a banalidade das situações, o que faz da personagem uma figura interessante e curiosa.

Um mapa todo seu
De Ana Maria Machado. Alfaguara, 224 páginas. R$ 39,90

É no cais, antes de subir no Chimborazo, que Quincas avista Zizinha pela primeira vez. “Esguia, de porte altivo”, a moça chama logo a atenção do rapaz. E começa ali uma história que se tornaria de amor e revelaria uma personagem de personalidade empreendedora e surpreendentemente influente para uma mulher naqueles últimos anos de século 19. Zizinha é, na verdade, Eufrásia Teixeira Leite, neta do barão de Itambé, herdeira milionária e empresária que, graças à fortuna da família, trocou o Brasil por Paris e fez da capital francesa a sede de uma série de negócios bem-sucedidos. Quincas é Joaquim Nabuco, com quem Eufrásia teria tido um relacionamento amoroso por mais de 10 anos. O romance histórico de Ana Maria Machado troca os nomes dos personagens, mas é de Eufrásia e Nabuco que a autora fala. Os dois se conheceram no navio que levou Eufrásia de vez para a Europa. Nabuco era, então, diplomata imerso em carreira política e defensor da abolição da escravatura. Além de ter sido presidente da Academia Brasileira de Letras e ser autora de mais de cem livros, Ana Maria carrega ainda uma lista de premiações, que incluem o Prêmio Machado de Assis (pelo conjunto da obra), o Hans Christian Andersen, o Prêmio Jabuti e o Casa de Las Américas.


Luxúria
De Fernando Bonassi. Record, 368 páginas. R$ 40

Num impulso, um metalúrgico compra uma piscina para ser instalada no quintal de casa em bairro de classe média baixa, o mesmo no qual residências foram incrementadas graças ao crédito fácil e carros foram comprados a prestação. É a prosperidade do consumo, símbolo de uma distribuição de renda que deixou para trás a educação e apostou no poder aquisitivo como caminho de reforma social. Mal sabia o metalúrgico que a crise da água se aproximava e que São Paulo logo se veria confrontada com o drama do racionamento. Fernando Bonassi é implacável. O oitavo romance do escritor paulistano natural da Mooca mergulha na ferida brasileira, assim como a fala do autor. “Esse operário representa quem luta por um prato de comida, e o que de pior nós da esquerda fizemos para o país, ao legar frustração, mais uma vez a pura e simples frustração. Uma geração de cidadãos achou que “chegara lá”, mas onde chegou de fato foi só à porta dos cartórios de protestos. Claro que houve melhora: mas foi cosmética”, lamenta. “De pessoas sem direitos, fomos guindados a condição de cidadãos devedores. E o caldo de cultura disso é a violência. Violência cotidiana, no varejo: uma Faixa de Gaza por semana, em São Paulo.” O primeiro romance de Bonassi, Um céu de estrelas, foi adaptado para o cinema por Jean-Claude Bernadet e muitas de suas peças ganharam o palco em montagens do premiado Teatro da vertigem.


O amor das sombras
De Ronaldo Correia de Brito. Alfaguara, 224 páginas. R$ 44,90

Depois de Galileia, considerado o melhor romance brasileiro de 2008 e vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, e Estive lá fora, publicado em 2012, Ronaldo Correia de Brito sentiu desejo de retornar aos contos que povoaram sua estreia literária em 1989. O amor das sombras reúne histórias nas quais a tragédia — iminente ou efetivada — é um fantasma constante. “As narrativas estão impregnadas de memória, esquecimento, solidão, amores frustrados, pensamentos sobre a morte e muitas sensações, sobretudo as do olfato. Um dos meus críticos anotou que a atmosfera única e as histórias dentro de histórias fazem lembrar As mil e uma noites”, avisa Brito, médico nascido há 64 anos em Saboeiro, no sertão cearense de Inhamuns. As mesmas temáticas presentes nos romances reaparecem entrelaçadas nas histórias dos personagens dos 12 contos. É uma contaminação consciente e necessária. “Eu tenho um projeto de escrita, nada do que escrevo é aleatório. Nesse projeto, tento unir os fios narrativos dos romances, contos, novelas e teatro. Até minhas crônicas e ensaios reaparecem dentro dos livros que escrevo”, diz o autor. O mesmo assassinato que pontua as narrativas de Galileia e Estive lá fora reaparece, por exemplo, no último conto de O amor das sombras.

Galveias
De José Luis Peixoto. Companhia das Letras, 272 páginas. R$ 44,90

Uma coisa “sem nome” cai do céu e se estatela em Galveias, um pequeno vilarejo do interior de Portugal cujos habitantes acabam extremamente perturbados pelo acontecido. É em torno desse misterioso fato que os encontros, desencontros e confrontos vão acontecer. Um Portugal rural no qual a tradição se vê ameaçada pela modernidade é uma das preocupações neste romance de José Luis Peixoto, um dos nomes mais importantes da literatura contemporânea portuguesa. “Desde o meu primeiro romance que tenho escrito sobre o Alentejo, assim como sobre a interioridade e a ruralidade portuguesa”, avisa o autor, que já foi finalista de prêmios como o Portugal Telecom e o francês Femina.


quarta-feira, 4 de novembro de 2015

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Fritjof Capra: “O universo não pode mais ser visto como uma máquina”
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SEBRAE 02.07

Físico e escritor austríaco Fritjof Capra foi a grande atração do primeiro dia do Congresso Ciclos Fotos: Rodrigo Lorenzon
Físico e escritor austríaco Fritjof Capra foi a grande atração do primeiro dia do Congresso Ciclos
Fotos: Rodrigo Lorenzon
Por Juliana Arini*

A verdadeira sustentabilidade requer uma transformação de paradigmas

“As pequenas empresas têm um importante papel na construção de um futuro sustentável”, apontou Fritjof Capra, físico, teórico de sistemas e escritor de vários best-sellers, como o Ponto de Mutação e A Teia da Vida. Durante palestra no Congresso Internacional de Sustentabilidade para Pequenos Negócios – Ciclos, realizado pelo Sebrae-MT, em Cuiabá, Capra enfatizou a necessidade de mudarmos a nossa forma de pensar o mundo para alcançarmos uma sociedade que funcione de forma sistêmica e sustentável.

“O universo não pode mais ser visto como uma máquina. O planeta é um sistema vivo e auto regulado, tal qual uma dança colaborativa formada por todos os organismos e formas de vida envolvidos. Se pensarmos no açúcar, por exemplo, não são as suas partículas que geram o seu sabor doce, e sim o relacionamento de todas as suas substâncias. Assim é a vida também. O todo é maior que as partes e tudo está interligado pelas redes da vida”, explica.

Para Capra, podemos vencer desafios como a crise energética, a escassez dos recursos hídricos e as mudanças climáticas, se nos tornamos pensadores sistêmicos, voltados para compreendermos como a natureza sustenta a vida. “A capacidade de adaptabilidade e mudança são as grandes características dos sistemas vivos. São essas qualidades que podem salvar a nossa sociedade e ajudar as empresas e os governos a construírem uma nova economia”, explica.

Abandonar o pensamento linear, voltado apenas para o lucro e o crescimento ilimitado, seria o primeiro passo. Capra enfatizou o papel das pequenas e médias empresas nesse contexto. “Elas possuem muito mais facilidade para transformarem a sua forma de produção e criarem soluções inovadoras nos campos do ecodesign e da geração de energia”, afirma. “Existe mais agilidade e autonomia nesses negócios, pois as decisões não dependem de autorização de conselhos e diretorias. Elas simplesmente podem trilhar novos caminhos de forma autônoma”.

Palestra com Fritjof Capra. Foto: Rodrigo Lorenzon
Palestra com Fritjof Capra. Foto: Rodrigo Lorenzon
O físico relembra que tal como as soluções, os problemas que enfrentamos estão interligados. “Para resolvermos a questão da pobreza devemos mudar a forma de lidar com a água e produzirmos alimentos. Um caminho leva ao outro. É como na agricultura, que se abandonar o formato agroindustrial em larga escala e voltar-se para o modelo orgânico poderá ajudar a superarmos problemas como o esgotamento do solo e dos recursos hídricos”, explica.

A sociedade e o governo também possuem um papel fundamental para a construção de um futuro sustentável. “Crescer é uma característica da natureza. Mas, precisamos que esse crescimento seja limitado. Alguns sistemas precisam parar de crescer para que outros floresçam, em um ciclo de geração e regeneração, como em uma floresta. Mas, essa auto-regulação não virá do atual sistema econômico, e sim dos governos, que só vão trilhar esse caminho se forem pressionados pela sociedade. Como disse o Papa Francisco na encíclica Laudato si, o cuidado com a nossa casa comum, o planeta, é uma responsabilidade de todos”, conclui. (Sebrae/#Envolverde)

* Juliana Arini é jornalista da Envolverde especial para o Ciclos.

** Publicado originalmente no site Centro Sebrae de Sustentabilidade.



domingo, 28 de junho de 2015

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Opinião

Washington Novaes

Rotas difíceis na ciência (O POPULAR GO 04/06/2015)

Que se pretende fazer para que o Brasil supere a crise que o afoga, não apenas neste momento, mas em períodos intermitentes na história das últimas décadas? Seja qual for a resposta, ela não poderá passar ao largo das trajetórias da ciência e da inovação tecnológica, capazes de propiciar avanços consistentes e saltos em certos momentos. Mas quem tenha acompanhado nas últimas semanas o noticiário nessas áreas certamente terá tido razões de sobra para se afligir.

Um exemplo: o Brasil demora 11 anos, em média, para aprovar novas patentes (O Estado de S. Paulo, 25/5), enquanto a Colômbia e o Peru o fazem em três anos. Entre 20 países pesquisados, ficamos em 19º lugar, à frente apenas da Polônia. Na área de telecomunicações, são 14 anos para patentear, e cobramos mais impostos, ao contrário do que fazem os Estados Unidos e a Coreia do Sul, líderes do mercado mundial do setor.

Em “processo de sucateamento”, o órgão que aprova patentes por aqui, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi), que em 2003 levava em média seis anos para aprovar uma patente, hoje leva 11 e tem 184 mil pedidos à espera de decisão. Que se espera que aconteça em mercados que se transformam em alta velocidade, quando só 192 pedidos foram examinados entre nós no último ano pesquisado (um em cada 910 processos)? E quando grandes concorrentes como os Estados Unidos, examinaram um em 77? Tecnologias podem ficar obsoletas, como as que pediram patentes aqui em 1997 e ainda aguardam.

Não por acaso, os gastos anuais com pesquisa e desenvolvimento em empresas brasileiras têm ficado em torno de apenas 0,59% do PIB – quando nossos concorrentes na Europa investem 1,34% e a China 1,39%. Entre 2006 e 2013, os investimentos nacionais nos institutos de pesquisa foram de R$ 3,4 bilhões, muito concentrados no Rio de Janeiro (37%) e São Paulo (14%). O Brasil tem 770 pesquisadores por milhão habitantes, diz o Banco Mundial, contra 5,5 mil por milhão na Noruega. Dos empresários nacionais, 62% que comandam empresas inovadoras acham “baixo” o grau de inovação da nossa indústria (O Estado de S. Paulo, 13/5); só 3% acham “muito alto”.

E 30% dessas empresas destinam apenas de 1% a 3% de suas aplicações totais para essa área. Há informações contraditórias também: em estudo da Thomson Reuters, o Brasil melhorou do 25º lugar no ranking dos países mais produtivos em ciência (1993/2013) para o 13º lugar; avançou 700% na produção de artigos científicos, enquanto a China avançou 2.200%. Não por acaso, a China gera sete vezes mais patentes que o Brasil. Os maiores avanços nacionais são nas áreas de energias alternativas e medicina.

O presidente da Fundação de Apoio à Pesquisa, o diplomata Celso Lafer, ressalta que os progressos em São Paulo se devem principalmente ao aumento de 0,5% para 1% dos impostos estaduais, na sua Constituição, para as verbas destinadas a pesquisas. Com essa trajetória, os recursos não dependem de vontade apenas de políticos. Por que outros Estados, como Goiás, não seguem esse caminho?

Um exemplo de como novas tecnologias ganham rapidamente mercados está na descoberta da empresa A2BR, que lhe permite retirar água do ar da Amazônia, em Barcelos, e não de nascentes. Vendida a R$ 20 por garrafa de 250 ml, a água já está em 95% do mercado europeu, levada para 200 portos. Mas a tecnologia é comprada da China.

É importante que a área de ciência e tecnologia receba mais incentivos. Mas é importante também que avancemos no setor da educação – que anda penando muito, com cortes de recursos federais. O Programa Nacional de Acesso ao Ensino e Emprego (Pronatec), com mais de 8 milhões de matrículas em 2013, por exemplo, financiado pelo governo federal, fechou agora vários cursos, sob protestos de professores (Agência Estado, 20/5). Professores e funcionários de dezenas de universidades federais aprovaram a proposta de greve em 28/5, para vários Estados.

No ensino básico, há notícias constrangedoras. Em uma escola de Boa Vista, Roraima, alunos passaram a usar capacetes de motociclistas na sala de aula para se proteger de ventiladores que ameaçam cair – depois de um deles machucar uma menina. As centrais de ventilação não funcionam (amazonia.org, 28/5). No Amapá, a merenda em algumas escolas é feita com água de chuva armazenada em baldes pelos alunos, porque falta energia elétrica e verba para o gerador a óleo diesel (UOL, 28/5). A Controladoria Geral da União apontou (Folha Press, 26/5), no sistema Prouni, 47 beneficiários já mortos e 4,4 mil bolsistas com renda familiar acima do máximo admitido.

Seja como for, o Brasil fica em 60º lugar no ranking de 76 países avaliados pela Organização para a Cooperação Econômica (OCDE), que mediu principalmente o desempenho de alunos de 15 anos em testes de Ciências e Matemática (O Estado de S. Paulo, 14/5). É muito pouco para um país que pretende ocupar um lugar importante no mundo com sua ciência e suas tecnologias. E nessa hora é bom lembrar palavras recentes do papa Francisco (O Estado de S. Paulo, 29/10), segundo quem, “as teorias do Big Bang e da Evolução não são incompatíveis com a existência dum criador”. Não há conceitos ou preconceitos religiosos no caminho da ciência.



Washington Novaes é jornalista



quinta-feira, 30 de abril de 2015

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Washington Novaes
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Quem quer de volta a censura?
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A ausência de propostas políticas abrangentes e viáveis para o País, a descrença nos aparatos institucionais, a desesperança que se vai instalando em tantas mentes, fazem ressurgir aqui e ali, na comunicação e/ou em manifestações de rua, apelos para a “volta dos militares ao poder”. É muito inquietador. Não se deveriam esquecer os muitos anos por que passou o País no longo tempo de arbítrio, o que ele significou para a comunicação – principalmente depois do Ato Institucional número 5 -, o vácuo em que se viu envolta a sociedade com as falta de informações e sem porta-vozes para seus desejos. E não podemos, agora, perder o que foi tão difícil reconquistar.

O autor destas linhas viveu em jornais, revistas e na televisão aqueles tempos sombrios. No Jornal Nacional da Rede Globo, por exemplo, onde foi editor de Economia, costumávamos dizer que “até porteiros de ministérios” telefonam para dizer eles, mesmos, que esta ou aquela notícia não deveria ser divulgada. E eram obedecidos, sob pena de riscos extremos para os desobedientes. No Globo Repórter, onde este escriba foi editor-chefe na segunda metade da década de 1970 e começo da década de 1980, as restrições eram tão fortes e absurdas quanto aquelas. Já levavam a que nem sequer se cogitasse de certas temas, quanto mais correr o risco de mobilizar jornalistas e técnicos e ver todo o esforço deles perdido.

Porque todas as semanas recebíamos dois censores federais que viam previamente o programa que seria exibido em seguida. E eles diziam que isto “´pode” ou “não pode”, que tais e tais sequências não poderiam ir ao ar. Em certos casos, chegavam a proibir um programa inteiro. Foi o caso, por exemplo, de um documentário sobre a invasão do Pontal do Paranapanema – última grande reserva de mata no Estado de São Paulo – por proprietários rurais, que sequer documentos legais comprobatórios de seus direitos tinham. Não foi mesmo ao ar. E hoje praticamente nada resta da reserva legal.

Também foi o caso de um documentário que tomou como ponto de partida competente pesquisa de uma televisão sueca, sobre os problemas da energia nuclear em muitos países – pois não havia solução, nem para eliminar os riscos de acidentes terríveis, nem para o lixo nuclear que produziam. Já havia no mundo centenas de usinas nucleares e todas mantinham os resíduos em “depósitos provisórios”. O Globo Repórter documentou a opção brasileira pela energia nuclear em Angra dos Reis – e para a mesma falta de soluções para os riscos de acidentes e para o lixo radiativo (que são os mesmos ainda hoje). Já havia “chamadas” no ar para o programa (achou-se que não haveria problemas com a censura) quando o chefe-geral da censura federal, por telefone, sem que sequer seus subordinados tenham visto o programa, proibiu sua exibição. Não havia a quem recorrer. Nunca foi exibido.

Também houve momentos tragicômicos. Um deles, quando duas censoras foram mandadas para ver e autorizar – ou não – a exibição de um programa que partira de segmentos de um documentário sueco sobre os dramas sociais da África – e era complementado por blocos locais que documentavam situações semelhantes de pobreza no Brasil. Mas as censoras nem precisaram chegar a essas partes. Já em cenas captadas pela televisão sueca havia momentos comoventes sobre o nascimento de um pigmeu africano, o momento em que saía do ventre da mãe. Sem esperar mais nada, uma das censoras decretou: “Toda essa parte precisa ser cortada.”

O editor-chefe, obrigado a acompanhar o processo da censura, tentou argumentar em sentido contrário. E o diálogo foi antológico. Editor: “Por que cortar todas essas cenas, tão bonitas, captadas com tanta competência?” Censora: “Porque é imoral”. Editor: “Mas como a senhora qualifica de imoral a documentação do momento mais bonito da vida de uma mulher, quando ela dá a luz a uma criança?” Censora: “Mas é imoral, não pode ser visto na televisão por uma criança.” Editor: “Mas como?” Censora: “Já está decidido. Corta tudo.” E cortado foi. Sem ter a quem apelar.

Em certos momentos, a redação era obrigada a malabarismos. Como na ocasião da morte do jornalista Vlado Herzog, em uma prisão do Doi-Codi, em São Paulo. Era proibido até mencionar o episódio. E o autor destas linhas teve de criar um texto final para um documentário sobre as maravilhas que já estavam no corpo humano na hora em que nascia uma criança – tudo o que esse corpo já era capaz de fazer, suas capacidades, metabolismos, tudo. E por isso mesmo, o corpo humano deveria “ser intocável do nascimento à morte, não sujeito a brutalidades nem arbitrariedades durante toda a sua vida” etc. E quem viu o programa, dentro ou fora da TV, soube imediatamente que, sem mencionar, tentava-se condenar as ilegalidades e violências que cercavam a morte do jornalista.

Tudo isso parece muito distante no tempo, 40 anos ou mais. Mas já está implícito em ameaças que nos cercam, de voltar a fórmulas do passado. E é preciso rejeitá-las, não aceitá-las de retorno. Melhor voltarmos nossa atenção para o exemplo admirável de contingentes militares atuarem no combate à epidemia da dengue em São Paulo, Goiás e outros lugares. Ou para sua atuação exemplar no socorro a vítimas de tornados em Santa Catarina. Teremos muito de que nos orgulhar por esses caminhos. Não precisamos trazer de volta um passado que precisa ser sepultado definitivamente.




Washington Novaes é jornalista