terça-feira, 25 de março de 2014
Manchetes do Edu
Para De Masi, Brasil é bússola para sociedade desorientada
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Por Oscar Pilagallo | Para o Valor, de São Paulo 25.03
"[O Brasil] construiu na prática um modelo de
extraordinária vitalidade [...] como se fosse uma preciosa favela assinada por
Oscar Niemeyer", escreve De Masi
Já a partir do título, "O Futuro Chegou",
do sociólogo italiano Domenico de Masi, remete ao Brasil. A referência óbvia é
o livro "Brasil, um País do Futuro", do escritor austríaco Stefan
Zweig (1881-1942), que deu origem à disseminada ideia de que vivemos em uma
nação que adia indefinidamente o aproveitamento de seu imenso potencial.
Para De Masi, não apenas essa percepção é
distorcida, como o modelo brasileiro deveria ser paradigmático para a sociedade
pós-industrial, que oscila entre a incerteza e o pânico.
A ênfase no Brasil é diluída por outros modelos
propostos pelo autor, conhecido por advogar o ócio criativo como resposta à
crise estrutural do desemprego. Ele apresenta 15 alternativas que serviriam de
bússola para a "sociedade desorientada" do subtítulo.
Dessas, várias oferecem soluções conflitantes. De
Masi propõe a receita capitalista e a comunista; recomenda o catolicismo e o
protestantismo; identifica vantagens no liberalismo e no socialismo; rende
homenagens tanto ao modelo hebraico quanto ao muçulmano; elogia as opções
chinesa, japonesa e indiana.
Se o intelectual escapa da armadilha dos antagonismos
ideológicos é porque faz a ressalva de que, ao comparar tais esquemas
conceituais, espremendo-os "até encontrar dicas para a formulação de um
modelo novo", livra-os "da parte insatisfatória".
Sobre a Índia, por exemplo, embora registre a pobreza,
o sistema de castas e o machismo hinduísta, De Masi prefere chamar atenção para
o fato de que o país, com 1,2 bilhão de pessoas e cerca de 2 mil etnias, é a
maior social democracia do mundo, exemplo único de pluralismo nessas dimensões.
Quanto à China, não obstante a "parte
insatisfatória" - como o autoritarismo e a violação dos direitos humanos
-, houve uma verdadeira revolução econômica. Nos anos 1980, lembra o autor, 77%
dos pobres do mundo viviam na China; nos 30 anos seguintes, essa proporção recuou
a 14%.
De Masi atribui o êxito do modelo chinês não apenas
às administrações recentes, mas também à tradição confuciana, sem a qual é
impossível compreender o país. Tendo coexistido até com o comunismo, o
pensamento de Confúcio (551-479 a.C.) prega virtudes como a benevolência, a
retidão e a sabedoria.
O autor procura sempre apresentar a contribuição
possível de cada um dos modelos abordados para o nascimento de uma nova
sociedade. O confucionismo, por exemplo, "pode oferecer uma contribuição
válida à afirmação dos direitos humanos e da ecologia, pode frear o
individualismo e a crise da família com seus valores de justiça, amor e
empatia, dando um novo sentido à solidariedade humana e à ética social".
O livro, no entanto, mais levanta questões do que oferece
respostas. Ainda no caso da China, De Masi diz que "poderíamos aprender
como é possível estabelecer a liberdade econômica sem recorrer à opressão
política", mas não indica como reformar o modelo chinês.
O mesmo método é aplicado aos outros modelos
escolhidos. Do Japão, segundo o autor, podemos aprender a tenacidade para
renascer de cada desgraça e o respeito pela sacralidade da natureza. Do Islã,
aproveitaríamos a concepção econômica baseada não no ganho individual, mas no
bem-estar da comunidade. Do liberalismo, ficaríamos com a centralidade do
indivíduo e a liberdade de pensamento. Do socialismo, uma lição é a rejeição
das injustas desigualdades. Até os hippies teriam o que nos ensinar. Deveríamos
assimilar deles o respeito à diversidade cultural.
Mas, para o autor, a grande contribuição à
sociedade pós-industrial está sendo dado pelo Brasil. O país finalmente realiza
a profecia de Zweig, enunciada no contexto da Segunda Guerra, quando ele via
sucumbir a velha civilização europeia, enquanto uma nova civilização estava em
formação no Brasil que ele escolhera para viver e morrer.
De Masi explica por que o Brasil é único. "É
uma das poucas economias do planeta cujo PIB cresce há 30 anos, cujas
distâncias sociais diminuem e a qualidade de vida melhora [...]. É o único
grande país que não trava guerras [...]. É a única economia na qual, por oito
anos, um presidente sociólogo incrementou a riqueza nacional e por outros oito
anos um presidente sindicalista tratou de redistribuí-la."
O italiano conhece bem o Brasil, país que visita
mais de uma vez por ano há mais de 30 anos. Também recorre às interpretações
clássicas, de Sérgio Buarque de Holanda a Gilberto Freyre, a quem faz a
ressalva de ter sido benévolo com os colonizadores, passando por Darcy Ribeiro,
com quem compartilha o entusiasmo pelos índios, praticantes inconscientes do
ócio criativo.
A partir da observação direta e da leitura dos
livros, o autor lista alguns predicados que compõem o caráter do brasileiro:
miscigenação, sincretismo, alegria, sensualidade, simpatia, acolhimento,
solidariedade,esperança e beleza. "Assim, quase sem dar-se conta, sem
teorizá-lo, sem exibi-lo, [o Brasil] construiu na prática um modelo de
extraordinária vitalidade, pedaço a pedaço, como se fosse uma preciosa favela
assinada por Oscar Niemeyer."
Se Domenico de Masi fosse brasileiro, "O
Futuro Chegou" correria o risco de ser considerado ufanista. Se seu
objetivo não fosse partir de uma abstração sociológica para construir um modelo
teórico, "O Futuro Chegou" poderia ser criticado por apresentar uma
visão edulcorada da realidade brasileira.
Apesar da ressalva, o livro contém afirmações
polêmicas, avaliações ligeiras e associações insustentáveis. Por exemplo,De
Masi atribui o cuidado corporal do brasileiro, da caminhada na praia à cirurgia
plástica com Ivo Pitanguy, à herança dos escravos, que tinham no corpo sua
única propriedade. Mais adiante, desconsiderando ocontexto histórico, comenta
que, se o general Médici tivesse um pouco de sangue indígena nas veias, talvez
o Brasil não tivesse vivido a fase mais brutal da ditadura militar.
Um último exemplo: quase no fim do capítulo, ele
afirma que, como a cultura brasileira é amada em todo o mundo, "nunca
ninguém teria bombardeado as Torres Gêmeas se elas estivessem localizadas no
Brasil", sem levar em conta que os atentados também não teriam ocorrido na
Argentina, no Butão, em Portugal, nem em nenhum outro país que não os Estados
Unidos e seus aliados mais próximos.
Outras opiniões exigiriam argumentos mais
elaborados. Se a experiência das grandes aglomerações nos sambódromos facilita
as mobilizações de massa, não se trata de algo tão evidente que dispense
explicação. Da mesma maneira, não basta dizer que "todos sabem" que a
crise deflagrada em 2008 não é uma crise, "mas o início de uma longa e
implacável redistribuição mundial de riqueza".
Ao deixar tantos flancos abertos, De Masi acaba
enfraquecendo uma proposta que, apesar de modesta - ele quer apenas colocar no
mesmo caldeirão bons ingredientes de diferentes receitas de sopa cultural -,
poderia ser um início de debate sobre os rumos da sociedade pós-industrial.
Oscar Pilagallo é jornalista e autor de
"História da Imprensa Paulista" (Três Estrelas) e "A Aventura do
Dinheiro" (Publifolha).
"O Futuro Chegou - Modelos de Vida para uma
Sociedade Desorientada"
Domenico de Masi. Tradução: Marcelo Costa Sievers.
Quitanda Cultural e Casa de Palavra. 768 páginas, R$ 69.
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