sexta-feira, 23 de novembro de 2012















A mensagem do Tribunal
-O ex-ministro Francisco Rezek, via teleconferência de Brasília, o professor Marcos Nobre e o procurador da República Rodrigo de Grandis em mesa-redonda
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Há quem comemore a condenação de 25 "mensaleiros" como o início do fim da impunidade que beneficia os criminosos de colarinho branco, contra os quais há acusações que acumulam poeira nas prateleiras dos cartórios judiciais de tribunais de todo o país, emaranhadas no intrincado sistema processual brasileiro. Mas há também quem enxergue na manifestação do Supremo Tribunal Federal (STF), em sessões que se estenderam por quatro meses para exame de um único caso, um julgamento de exceção, destinado a interromper o projeto político do PT no enfrentamento de desigualdades históricas.

Para estudiosos dos assuntos políticos e jurídicos, só o tempo vai dizer o que o futuro reserva quando o assunto é o combate à corrupção enquistada no Estado e cujos tentáculos vão muito além de um partido político ou de interesses econômicos específicos. Há, no entanto, consenso sobre a consequência imediata do fim do primeiro capítulo da novela jurídica que invadiu as casas dos brasileiros com a transmissão ao vivo, pela TV Justiça, dos debates e embates vividos no plenário do Supremo: o Poder Judiciário finalmente ocupou o espaço institucional que lhe cabe na República, garantido pela Constituição Federal de 1988.

Para debater o Brasil pós-mensalão, o Valor convidou três especialistas: o ex-presidente do Supremo e ex-ministro da Corte Internacional de Haia Francisco Rezek (via teleconferência, de Brasília), o professor de filosofia da Unicamp e coordenador do Núcleo de Direito e Democracia do Cebrap, Marcos Nobre, e o procurador da República Rodrigo de Grandis, que atua no Ministério Público Federal em São Paulo nos casos de lavagem de dinheiro de maior repercussão nacional.

Haverá outro julgamento igual? Rezek não tem dúvidas de que sim. E aposta que a cultura da leniência com o setor privado sofreu um golpe com as penas estabelecidas pelo Supremo, mais graves para banqueiros e publicitários do que para políticos.

De Grandis diz que, para que a jurisprudência possa ser seguida pelos juízes de primeira instância, é preciso que o próprio Supremo retome as balizas deste julgamento em outras decisões. Só assim a jurisprudência estará firmada.



"Igualar corrupção a um atentado à democracia é gravíssimo porque banaliza a Constituição", diz Nobre

Nobre vê uma decantação de longo prazo das teses jurídicas que embalaram este julgamento. Comemora o fato de o país ter deixado de questionar se o Judiciário funciona, para passar a discutir como opera. Mas vê na equiparação entre o crime de corrupção e o atentado às instituições democráticas uma banalização da Constituição.

O desempenho do ministro Joaquim Barbosa - que tomou posse ontem como presidente do Supremo Tribunal Federal -, concordam os três debatedores, balizará, em grande parte, a consolidação da jurisprudência deste julgamento. É neste período também que se definirão as bases em que as relações entre os poderes da República, cujos parâmetros foram revirados nos votos dos ministros, se reacomodarão.

Leia a seguir os principais trechos do debate realizado pelo Valor

Valor: O que sobra do julgamento para o país?

Francisco Rezek: O julgamento tem um valor educativo sem precedentes. Educativo para a classe política, mas também e em igual medida para o setor privado, que induz, ou se deixa induzir, a determinadas práticas que, no passado, não tinham consequências, mas hoje têm e terão no futuro. Não é sem razão que alguns comentaristas observam que a apreensão, a ansiedade, a quase angústia que se espalha na área política é menor que aquela que se espraia na área empresarial, entre banqueiros, empresários e outros agentes de contato com o setor público com fins não muito exemplares do ponto de vista da sanidade dos costumes e das instituições no país.

Rodrigo de Grandis: Por força do nosso ordenamento jurídico, muitas vezes as decisões de primeira instância, diante da quantidade enorme de recursos que o ordenamento jurídico brasileiro prevê, jamais são cumpridas. Esses recursos acarretam a prescrição da pena e a pessoa que foi condenada, ainda que em várias instâncias, não chega a cumprir a pena privativa de liberdade. Ou seja, não há eficácia da decisão judicial. Neste caso da AP 470, como o STF é o órgão de cúpula do sistema judiciário, veremos um efeito prático importante: o cumprimento da pena privativa de liberdade por crimes de colarinho branco, o que me parece uma raridade no Brasil.

Marcos Nobre: O ponto mais relevante, da minha perspectiva, é que deixamos de discutir se o Judiciário, como poder independente, funciona. Passamos a discutir como ele funciona. Isso é um avanço gigantesco no Brasil. Há uma consolidação democrática no Brasil. Existe um poder independente, que exerce seu papel e mostra que ninguém está acima da lei. Isso é muito importante para uma democracia. Sobre o modo como funcionou o Judiciário neste caso, minha avaliação é bastante ambivalente e tendencialmente negativa. Foi decepcionante. O STF, como última instância do Judiciário, tem de fornecer à sociedade uma imagem do que é a Constituição, ou seja, do que é a própria sociedade, enquanto sociedade constituída. Uma maneira boa de fazer isso é dizer qual é a função social da pena, ou seja, não só quantos anos de privação de liberdade cabem a cada pessoa, mas por quê. Por que restringir a liberdade de alguém? Tem um caráter de denúncia? De evitar que outras pessoas cometam um delito semelhante? Tem efeito de retribuir à sociedade um dano que lhe foi feito? Essa discussão não apareceu. A única iniciativa de fundamentação que posso ver nos votos, e não sei se é fundamento ou acessório, é a noção de que houve um atentado às instituições democráticas. Isso é gravíssimo, porque banaliza a Constituição. Iguala o crime de corrupção com um atentado à democracia. E aparece em vários votos.



"Em qualquer outro caso, a tendência do STF é preservar ou agravar os padrões de severidade", diz Rezek

Rezek: De fato, o discurso sobre o atentado à democracia me pareceu desnecessário. O presidente [Carlos Ayres] Britto, quando proferiu seu primeiro voto condenatório, disse algo sobre a contrição que se espera de um juiz ao proferir uma condenação. E há um contraste entre essa esperada e desejável contrição e a declamação do argumento constitucional, que não está em causa. Quanto a saber se o tribunal deve se ater a cumprir a lei no que concerne à aplicação das penas ou deve discutir a questão preliminar da natureza da pena, creio que esse é um debate para a sociedade, para a academia e, em última análise, para o Congresso. Creio que seria infeliz e desastrado se, justamente neste caso, o Supremo deixasse de seguir o ritual e passasse a discutir filosoficamente o que as penas significam.

Nobre: Mais do que inoportuno, o discurso sobre o atentado à democracia pautou o debate público e fez parte da argumentação dos ministros de maneira desnecessária. Sobre a função social da pena, creio que o STF tem um ônus a mais, além das outras instâncias do Judiciário, que é fornecer uma imagem da Constituição. A discussão sobre a função social da pena estaria no lugar dessa fundamentação desastrada do atentado à democracia. Uma discussão importante foi trocada por outra descabida. O efeito público foi desastroso. Mas torno a dizer que a discussão mudou de patamar. No caso Collor, estávamos em outro momento, um momento de institucionalização de um STF democrático. Estamos discutindo agora se o STF, tal como funciona, funciona bem para a s ociedade. Isso, por si só, já foi um grande avanço. Mas também é importante discutir o como; e o como, para mim, foi frustrante.

De Grandis: Diante do nosso sistema jurídico-penal, em que o crime normalmente enseja a aplicação da pena privativa de liberdade, fica difícil estabelecer alternativas. Mas hoje, quanto à criminalidade de colarinho branco, a discussão é: a pena privativa de liberdade é eficiente ou não, é necessária ou não? A tendência, hoje, é dizer que a prisão é importante como fator inibitório. Como o criminoso de colarinho branco é até hipersocializado, a ideia de ressocialização da prisão não cabe. Mas ela ainda é importante do ponto de vista inibitório.

Valor: O julgamento da Ação Penal 470 traz inovações para o direito brasileiro?

Rezek: Não acho que o tribunal, do ponto de vista estritamente jurídico, inovou muito. Fez prevalecer alguns pontos de vista que, no passado, foram minoritários, embora apertadamente. Tomemos como exemplo julgamentos anteriores, como o caso Collor. Naquela ocasião, entendeu-se que o crime de corrupção passiva reclamava a prova do ato de ofício que um titular de função pública praticou. Desta vez, o Supremo considerou desnecessária a individualização do ato de ofício. Neste ponto, pode-se dizer que houve evolução. A contrapartida não precisa ser descrita com todas as letras. Pode ser descrita de maneira mais fluida, por uma conduta parlamentar, ou política, com que determinada pessoa correspondeu àquilo que recebeu com vantagens ilícitas.



"As balizas devem ser reiteradas em julgamentos posteriores para que a 1ª instância possa segui-las", diz De Grandis

Nobre: O julgamento deixou claro que o Judiciário é político, no sentido de que é um dos três Poderes da República. O Judiciário, em especial o STF, faz política através de uma linguagem específica, a linguagem do direito, e um conjunto de procedimentos que também pertencem ao direito. Eles limitam uma disputa que, no fundo, é política. Existe uma imagem do direito, na sociedade, segundo a qual, quando se faz uma lei, isso é o fim de um processo e, portanto, o juiz se limita a aplicar a lei. Dependendo do que se entende por aplicar, poderíamos colocar um computador no lugar. Por que não é um computador? Porque a necessidade de interpretar a lei significa que a sentença é criadora de normas. Por exemplo, se os juízes se recusassem a aplicar o Códig o de Defesa do Consumidor para compras na internet, porque a internet não está prevista na lei, teríamos uma situação bizarra. Agora, a teoria do domínio do fato vai ser objeto de uma intensa disputa acadêmica e jurisprudencial.

De Grandis: A primeira pergunta é se o STF, após a AP 470, vai continuar a aplicar o que foi decidido neste julgamento. Essas balizas estabelecidas na AP 470 devem ser reiteradas em julgamentos posteriores, para que o juiz de primeira instância se sinta à vontade para aplicar os preceitos. É muito comum que o STF estabeleça determinadas decisões, até mesmo súmulas vinculantes, e que depois o próprio tribunal tenha uma decisão contrária. Nós, que lidamos na linha de frente, esperamos que o Supremo respeite o que ficou decidido na AP 470, para termos uma jurisprudência consolidada do ponto de vista da lavagem de dinheiro e dos crimes financeiros.

Valor: Ainda não se pode falar em termos de jurisprudência?

De Grandis: Temos de ter cautela em dizer se a jurisprudência mudou, porque não conhecemos o inteiro teor do acórdão. Os ministros certamente revisarão seus votos. A jurisprudência aparentemente foi modificada no que tange ao ato de ofício. Quanto à lavagem de dinheiro, o Supremo encarou a questão pela primeira vez de uma maneira originária. Até então, só a analisava incidentalmente, através de habeas corpus. Numa ação originária, conhecendo todas as provas, o Supremo analisou o caso de forma pioneira e estabeleceu balizas importantes. Esse precedente será importante. Embora não tenha caráter vinculante, juízes o seguirão Brasil afora.

Nobre: As coisas não se encerram com o acórdão do STF. Está muito longe de acabar esse julgamento. Além da interposição dos embargos, há o possível recurso à Corte Interamericana. Existe uma disputa política, que continua, também, na sociedade. A jurisprudência se cristaliza ao longo de décadas. Não é um julgamento que vai estabelecer jurisprudência em sentido forte.

De Grandis: Diziam que o Supremo não tinha vocação para ação penal originária, pela própria estrutura. A despeito dessas dificuldades (a dosimetria da pena mostrou essa dificuldade), a ação tem tramitado muito bem. O aspecto interessante é que o STF, por ser o juiz natural da causa, enfrenta problemas que um juiz de primeira instância encara todo dia. Principalmente, alegações de advogados, como preliminares, nulidades. Os advogados usarão embargos declaratórios para evitar o trânsito em julgado do acórdão condenatório. Esses embargos, se não apresentarem fundamentação jurídica adequada, ao menos servirão para protelar o cumprimento da sentença. É esse tipo de expediente que enfrentamos na primeira instância. Estou curioso para saber como o STF vai enfrentar embargos de embargos de embargos. Ele tem de coibir esse tipo de prática. E isso é importante, porque funciona como um alento para o juiz que vive essa situação todos os dias.

Valor: O que aconteceu com a AP 470 vai se repetir em outros julgamentos?



O ministro Joaquim Barbosa, relator da ação penal 470, assumiu na quinta-feira a presidência do Supremo Tribunal Federal; o revisor Ricardo Lewandowski assumiu a vice-presidência

Rezek: Não tenho a menor dúvida. Entendo o protesto de alguns críticos do STF pela colocação em pauta de outros casos, envolvendo outros cenários geográficos, outros partidos políticos; ninguém, honestamente, neste momento, tem dúvida de que em qualquer outro caso a tendência do STF é preservar ou agravar seus padrões de severidade. É com hipocrisia que alguns dizem suspeitar que amanhã, em outro caso semelhante, mas envolvendo outro contexto ideológico, partidário, estadual, o STF abrandará os padrões de procedimento que adotou na AP 470. Pelo contrário. O que devemos esperar é uma consolidação desse padrão de procedimento judiciário, se não uma severidade ainda maior.

De Grandis: Acho que vai se repetir, sim. Talvez não com essa intensidade, ou com um número tão amplo de acusados, porque é algo inusitado, foge aos padrões de uma ação penal. O procurador-geral da República à época, Antonio Fernando de Souza, entendeu por denunciar aquelas 40 pessoas (hoje são 38 réus). Mas, efetivamente, outras ações penais semelhantes existem no Supremo. Até mesmo desmembramentos desta AP 470 estão tramitando naturalmente.

Nobre: O ministro Rezek diz que há uma tendência a um aumento de rigor nos próximos julgamentos. Pode ser. Mas isso também vai ser objeto de uma disputa política na sociedade. Essa disputa é importante, porque é uma continuidade do processo na discussão social. Sobre a formação de jurisprudência, teremos de ver como vai se desenvolver a disputa na sequência. Mas talvez sirva como padrão para atitude de outras instâncias e do Ministério Público.

Valor: Não é irônico que o Supremo esteja condenando a antiga cúpula do PT, sendo não só um Supremo indicado por dois presidentes do partido, mas a partir das exigências do próprio PT por um Judiciário mais rigoroso?

Nobre: Não chego a ver ironia porque não acho que foi um partido que foi julgado. Há pessoas que estão sendo julgadas e o princípio da individualização da pena é importantíssimo numa sociedade democrática. Mas me pergunto onde estão todos aqueles críticos terríveis do sistema de indicação do STF, que disseram que o STF ia ser aparelhado? Agora estão aplaudindo a decisão.

De Grandis: Mais do que pessoas, o Supremo julga condutas. O tribunal está julgando fatos, não um partido e não pessoas. Além da independência do Judiciário, fica clara a independência do Ministério Público. A AP 470 existe por força da denúncia promovida por um Procurador-Geral da República que foi escolhido pela classe. O presidente da República não é obrigado a indicar quem a classe escolhe. O primeiro foi Claudio Fonteles [em 2003].

"Se a discussão sobre o Estado de Direito virar briga de bandido e mocinho será péssimo para o debate", diz Nobre

Valor: Da forma como os ministros conduziram esse julgamento, sinalizando que a formação de quadrilha é um atentado à democracia, será que o Supremo não deu a entender que estava julgando um partido?

Nobre: Quando me digo frustrado, é justamente pela banalização desses argumentos "ad terrorem". Minha frustração é ver como fundamento algo que nem deveria estar na sentença. Outra coisa é a relação com a mídia, sobretudo a maneira como a mídia cobriu o julgamento. Teve extrema dificuldade em fazer a mediação cultural entre o julgamento e a sociedade. Quem pinçava as frases não estava preocupado em entender o conjunto do voto de um ministro ou o conjunto do processo. Foram pinçadas frases que eram compreensíveis para o grande público. Houve ministros que foram mais ou menos capazes de produzir esse tipo de frase.

De Grandis: A crítica em relação à partidarização ou a acusação de partidos decorre do fato de que são crimes praticados em estruturas coletivas. Isso poderia acontecer em uma instituição financeira, como aconteceu efetivamente, ou numa empresa. Tenho acompanhado o Supremo, até antes da TV Justiça, e essas discussões sempre existiram, por força da personalidade de alguns ministros.

Rezek: Também não gostei do discurso de alguns participantes do julgamento, mas o essencial é que isso não é decisivo. Sempre ouvi isso. Desde aqueles momentos em que, no STF, a estima recíproca parecia um pouco maior e nos momentos tensos, também. Sempre houve uma enorme diferença de estilo de comunicação, uma enorme diferença na forma de expressão. Há sempre quem fale com maior rigor científico, com maior precisão técnica, e quem prefira um modo mais declamatório de falar. Enfim, sempre fui um entusiasta da concisão e do rigor, mas não acho que os caminhos diferentes que alguns adotam sejam um pecado mortal.

Nobre: E qual foi o desastre desse julgamento, do ponto de vista cronológico? A coincidência com as eleições municipais. A partidarização não está nos votos dos ministros. No debate das eleições municipais, sim. Era um partido que estava sendo julgado. Essa coincidência foi desastrosa. Teve consequências graves para o resultado eleitoral? Acho que não. Mas pode ter tido um efeito no desencanto com a política. O aumento dos brancos, nulos e abstenções. Pode ter tido um efeito muito ruim para a democracia.

"Há uma tradição no Brasil de leniência com o setor privado. E de crítica feroz ao setor público", diz Rezek

Rezek: Eu havia previsto que a influência direta nas eleições não aconteceria. Não se trata no Brasil a questão municipal no mesmo plano de raciocínio da questão provincial ou a federal. Há muitas razões para o desencanto com a política neste país, mas a mediatização do processo, sua colocação na sala de estar de cada um, contribuiu.

Valor: O ministro Rezek abordou o impacto das decisões sobre o setor privado. As mudanças serão sentidas em breve?

De Grandis: No meu dia a dia, na 6ª vara criminal de São Paulo, vejo vários processos de lavagem de dinheiro do sistema financeiro, parecidos com o mensalão. Minha frustração é não ver a sentença condenatória ser concretizada, por força do sistema jurídico. O mensalão é um exemplo, mas muito particular, muito peculiar, característico. Não podemos entender que as coisas se transformaram a partir do julgamento da AP 470, ou que o sistema jurídico brasileiro de persecução penal é uma maravilha. Pois não é.

Nobre: Algo lamentável na história recente do Brasil é ter ido por água abaixo a operação Castelo de Areia. Com ela, veríamos exatamente onde estão os entes privados que não aparecem nesses casos de corrupção. Foi péssimo para a democracia brasileira. Perdemos a oportunidade de fazer algo semelhante à Operação Mãos Limpas da Itália. Haverá consequência para os entes privados? Talvez. Até hoje, no Brasil, a ditadura militar foi só militar, sendo que a gente sabe que os civis apoiaram decisivamente, mas não foram co-responsabilizados. E, agora, a corrupção parece de entes públicos e não corrupção de entes privados. Como eu disse, é o início de uma disputa na sociedade. O que vamos aceitar como elementos probatórios num caso em que se aplic a ou não o domínio do fato? O que vamos aceitar ou não como sendo corrupção?

De Grandis: A questão da cegueira deliberada também envolve a participação dos entes particulares, das instituições financeiras e outras atividades em que pode haver lavagem de dinheiro. Para mim, é a grande novidade no STF. Tem fundamento na jurisprudência americana e remete ao fato de alguém se colocar deliberadamente em situação de desconhecimento. Como isso vai ser traduzido no Brasil? Não possuímos aqui, tradicionalmente, a "cegueira deliberada". Creio que teremos de adaptá-la da figura do dolo, especificamente o dolo eventual, em que o sujeito prevê a situação e assume o risco. A lavagem de dinheiro, no Brasil, só se pune dolosamente. Diferentemente da Alemanha ou da Espanha, não criminalizamos a conduta culposa de lavagem de dinheiro.< /p>

Rezek: Este julgamento significa a consagração, pelo STF, de uma tese importante do Ministério Público, relacionada ao que chamávamos de crimes societários. Nós nos definiríamos como país da impunidade perante o mundo se juízes normais continuassem acolhendo argumentos de defesa no sentido de que o Ministério Público, ao analisar as condutas dos réus individualmente, não conseguiu demonstrar exatamente o que cada pessoa fez em um crime societário. No caso de crimes cometidos por um banco, uma corretora, uma seguradora, nunca se punirá o crime coletivo assim. Na AP 470, o Supremo acolheu a tese do Ministério Público sobre a desnecessidade da individualização milimétrica de condutas. Com essa concepção judiciária, às vezes se pune alguém que pa rticipou do conluio, mas em menor proporção; que, se pudesse ter dito algo, opinaria por uma conduta diferente. Isso acontece em outros âmbitos, também. Lembro, por exemplo, o episódio trágico em Brasília, quando jovens de classe média atearam fogo a um índio. É crível que os pais de um daqueles jovens acreditassem que seu filho jamais faria aquilo por iniciativa própria. Mas o tratamento que a Justiça deu a todos, à exceção dos menores de idade, foi uniforme. Aprendemos que é preciso ter escrúpulos. Pode ser desastroso, para uma pessoa, não ter coragem de protestar contra algo que vai ser feito em nome coletivo e depois punido coletivamente.

Nobre: Aqui é importante ressaltar a discussão, por exemplo, sobre a teoria do domínio do fato, que não vai se restringir à academia. Se um gerente de banco deposita uma quantia numa conta e aquilo é parte de um processo de lavagem de dinheiro, mas ele não conhece a origem do recurso, isso tem efeito processual? Ele pode ser incluído na denúncia? Não é preciso ato de ofício, mas vai ser necessário que o Judiciário estabeleça quais serão os critérios probatórios. Por exemplo, no caso do deputado João Paulo Cunha, existe a abertura de licitação e a contratação da agência publicitária. No meio, há um depósito em conta. Temos claramente uma nova maneira de organizar a peça probatória.

De Grandis: Desde 1998, há ferramentas para que o setor privado colabore na investigação e na comunicação de atividades suspeitas de lavagem de dinheiro. Hoje, a corrupção no Brasil é uma conduta que envolve um ato de ofício, então o exercício da função pública tem de estar envolvido. Não possuímos, como outros países, a corrupção entre particulares. A responsabilização da pessoa jurídica do ponto de vista penal é exclusiva dos crimes ambientais. Mas há um projeto de lei, apoiado pelo Ministério Público Federal, no sentido de responsabilizar administrativamente uma pessoa jurídica que participa de lavagem de dinheiro ou de um ato de corrupção. O setor financeiro tem preocupação, claro, até porque é um setor exposto à prática da lavag em.

Rezek: Até agora, as penas do setor privado, reunindo os núcleos operacional e financeiro, são suntuosamente superiores às do setor público, do núcleo político. Isso poderá sacudir a sociedade brasileira, para que se torne igualmente exigente com o setor privado e o público. Há uma tradição no Brasil de extrema leniência com o setor privado. E de crítica feroz ao setor público. É verdade que a exemplaridade duvidosa do setor público dá ao privado os pretextos para as aberrações que comete. O sonegador, o empresário violador das leis trabalhistas, o pilantra do setor privado, justifica-se, quando enfrenta o travesseiro a cada noite, dizendo que assim procede porque não quer dar dinheiro a um setor de duvidosa qualidade ética, corrupto, mal organi zado. A AP 470 ensinará ao setor privado brasileiro que, hoje, as disfunções do setor público são punidas. E as do setor privado serão punidas com maior severidade ainda.

Nobre: Gostaria de acrescentar que os financiadores de campanha não apareceram. O que chamo de setor privado não é só a ponta do iceberg, o Marcos Valério ou a Kátia Rabello. Onde estão os financiadores desse esquema, os reais financiadores? Então, quando mencionei a operação Castelo de Areia, era a isso que me referia: nossa capacidade de chegar aos financiadores dos esquemas.

Valor: Transmitido pela televisão e lidando com preferências partidárias de muitos brasileiros, o julgamento teve atenção da opinião pública. Como lhes pareceram os debates na sociedade?

Nobre: Ficou claro que temos uma sociedade com baixa cultura jurídica. Uma democracia, como forma de vida, não só como regime político, inclui uma cultura jurídica da população. O que se viu foi um abismo entre a cultura jurídica geral e a cultura de um domínio de especialistas. Esse abismo é muito ruim para a democracia. Temos de pensar uma forma de difundir a cultura jurídica, para que possamos ter uma democracia mais forte. A transmissão pela TV é importante, mas não significa automaticamente mais transparência. Pode até significar mais intransparência, porque a linguagem é inacessível. Quais momentos foram para o debate público? Os embates diretos, as frases de efeito. Por quê? Por causa do abismo cultural. A mídia tentou suprir isso convidan do professores para escrever e debater, o que foi importante. Mas mostrou que, de fato, o abismo é grande. Também a academia, os operadores do direito, têm dificuldade em se comunicar com a sociedade.

De Grandis: Estamos discutindo, no público, pela imprensa, teorias que eram, até ontem, estritamente acadêmicas, como a teoria do domínio do fato, que não é nova, já vem sendo acolhida há muito tempo no Brasil. O que é novo é a acolhida pública. Mais interessante ainda é a teoria da cegueira deliberada. Isso vai ter um efeito importante em matéria de investigação criminal e de processos penais, tanto no âmbito do Ministério Público como no Judiciário.

Nobre: Uma coisa que o debate público não ressaltou é a consistência dos votos. Tanto do relator quando do revisor. Como estamos discutindo o futuro, se o precedente vai ser a partir do voto do revisor ou do voto do relator é algo em que a disputa está em curso. Pareceu, na discussão pública, que existia um voto, que era o voto correto, o do ministro Joaquim Barbosa, e um voto protelatório, ou de defesa, o do ministro Ricardo Lewandowski. É um absurdo. Fazer justiça ao equilíbrio entre o voto do relator e o do revisor é muito importante. Existe uma discussão importante sobre o Estado de direito no Brasil. Se fizermos dela uma briga de bandido e mocinho, será péssimo para o debate público.

Rezek: Juízes e procuradores aprendem cedo que a humanidade não se divide em vilões e heróis. Muitas vezes, enfrentamos problemas de consciência quando nos deparamos com feitos opondo duas personalidades ou instituições do setor privado e constatamos que se trata de coisas da mesma natureza, mas, por mera casualidade, uma está na posição de vítima e a outra na de agente do crime. O professor tem razão quando pondera que há uma visão caricatural do julgamento da AP 470.

Valor: Como ficam as relações entre o Judiciário e o Congresso, que foi questionado pela condução das relações com o Executivo?

Rezek: O Judiciário dá aos dois poderes políticos o recado de que há limites para a fisiologia. Fisiologia é uma metáfora inventada no Brasil, brilhante, para definir a troca de favores no setor público. Há limites para a fisiologia, no sentido de que não dá para ir além do loteamento político da função pública. Observados esses limites, tudo que se pode permitir à classe política, em matéria de fisiologia, para fim de obter coligações, unidade, para que o governo possa governar. Além disso não se pode ir. Ou seja, negociar apoio político mediante propina e outras ilicitudes. Essa é a lição que o Judiciário dá, muito limitada no alcance, porque reconhece implicitamente que temos de conviver com essa parte da fisiologia, inevitável mesmo na s melhores democracias do planeta. A organização da distribuição da função pública em função de coligações e interesses já é uma enorme margem de manobra para os políticos. Não deveria ir além disso, nem se envolver com esquemas publicitários e bancários como o da AP 470.

Nobre: O Judiciário se afirma como um poder independente. Existe uma discussão na academia e na sociedade brasileiras, sobre a "judicialização da política". O Judiciário estaria invadindo o campo do Legislativo. Nunca vi tese mais absurda, porque, em grande parte da história, o país não teve democracia. Um país sem democracia não tem Judiciário. O que o Judiciário está fazendo é tomar seu lugar, o que é muito estranho para os outros poderes. Agora, é claro que ele pode querer ocupar mais espaço do que deve. Aí é que fica interessante, porque começa uma disputa entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, sobre qual é a função de cada um. Isso é democracia. Até onde cada um vai não é delimitado previamente. É objeto de disputa. Desde a democratização, discutiu-se como o Legislativo tinha sido engolido pelo Executivo. Mas não era isso, era a disputa de até onde vai cada um. Agora o Judiciário diz "estou aqui e vou participar da disputa". Quanto ao processo político, vai se alterar, mas, especificamente no dia a dia da política, não sei o que vai mudar. Evidentemente, o Judiciário não vai proibir coalizões, se não irá muito além do que deve.

Valor: A perda de mandato dos parlamentares condenados pode ser o primeiro capítulo desse conflito entre Judiciário e Legislativo pós-mensalão?.

De Grandis: A perda do mandato é efeito decorrente da ação condenatória. Creio que, uma vez decretada a sentença, o efeito é a perda do mandato. Espero, nessa ideia de tripartição, freios e contrapesos, que a Câmara dê cumprimento à decisão do STF. Porque me parece que isso é inerente à própria decisão condenatória.

Rezek: Não é a primeira vez que esse tipo de questão se coloca. Nos anos 1970, a fase mais sombria da história política do Brasil, já se colocava a questão de saber se, em face da linguagem ambivalente da Constituição, certas decisões do Supremo tinham de ser convalidadas pelo Congresso. Quanto à perda do mandato, parece que ela tem de ser declarada pela Câmara dos Deputados após a decisão do STF. Mas ela tem de fazê-lo imediatamente? Poderia esperar até o fim do mandato, ou até a véspera? Não sabemos. Pode, sim, haver um impasse, mas a expectativa é de que não haja. Sobretudo, porque a AP 470 saiu do Congresso. As investigações começaram lá e foi lá que alguns réus, quando eram apenas suspeitos, tiverem seus mandatos cassados.

Nobre: Os conflitos são produtivos. É a questão dos limites e da relação entre os poderes que está em causa. No Brasil, essa relação não está cristalizada, nossa democracia é muito jovem. Seria ruim se não existisse embate. Até chegar a um impasse, eu acho produtivo, mesmo se chegar ao impasse. Porque vamos discutir, de fato, qual é a competência de quem e até onde vai, e esses poderes vão se acomodar. E esse é um processo demorado, não é da noite para o dia.

Valor: O que decorrerá do fato de o ministro Joaquim Barbosa assumir a presidência do STF como quase herói perante a opinião pública?

Nobre: Acho bom que ele assuma a presidência do STF dois dias após o Dia da Consciência Negra. Para o Brasil, é importante. Como eu disse, a história de que existe um voto do mocinho e um do bandido é algo que temos de desfazer para o debate público. Essa construção é prejudicial para a democracia. É uma construção política, que se deu, também, em função do embate eleitoral, mas não só. Nossa função, como intelectuais participantes do debate público, é tornar esse debate mais complexo. Também, ao assumir a presidência do STF, o ministro não pode continuar tendo a atitude que teve como relator.

Rezek: Eu gostaria de citar, a propósito, as razões que conduziram Joaquim Barbosa ao STF. Ele tem um dos currículos mais exuberantes da história do Tribunal. Poucas vezes se viu, no STF, alguém que, em virtude da sua formação acadêmica múltipla, seria capaz de proferir uma conferência hoje em Paris, uma outra, amanhã, em São Francisco, e uma terceira, semana que vem, em Heidelberg. Poucas vezes um governo da República se sentiu tão confortável para indicar e o Senado tão confortável para aprovar alguém pelas credenciais que reuniu ao longo da vida, sem embargo de sua origem modesta. É uma pessoa de temperamento difícil, isso é óbvio. Mas esse temperamento se transfigura quando alguém assume a regência do colegiado e passa a ter sobre os ombros um problema que até ontem era do ministro Ayres Britto. Não tenho dúvida de que a relativa dificuldade de convivência, resultado do temperamento de Barbosa, vai cessar. Teremos dois anos de uma gestão muito profícua, ainda que menos poética. Sem o charme que transbordava do ministro Ayres Britto. E não haverá mudança de rumo quando, daqui a dois anos, Barbosa ceder o lugar a Lewandowski.

Nobre: O Joaquim Barbosa que vimos como relator, eu acho, vai se transferir para a presidência do Conselho Nacional de Justiça. Vai ser lá, no CNJ, que Joaquim Barbosa vai poder ser o relator. O CNJ é um dos maiores avanços da democracia brasileira e temos de nos debruçar sobre o Conselho para ver quais são os projetos do Joaquim Barbosa e como pretende implementá-los.

De Grandis: Estou curioso em relação ao comportamento de Joaquim Barbosa no CNJ, porque sabemos que o ministro tem posições muito próprias. Basta relembrar, por exemplo, que, segundo consta, ele não recebe advogados e já criticou o papel na corte de advogados que são parentes de ministros. Isso ele fez publicamente. E o tema me parece ser objeto de atuação do CNJ.

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