sexta-feira, 9 de novembro de 2012
RUY CASTRO
FOLHA SP 21.10
Música para derreter
RIO
DE JANEIRO - O sebo perto da praça João Mendes, em São Paulo, fazia jus ao
nome. As estantes estavam organizadas por assunto, mas cada prateleira era uma
barafunda de livros sem ordem, além dos espalhados pelo chão. Veja bem, não
estou me queixando. Não sou daqueles que só entram em sebos assépticos,
impecáveis, à prova de ácaros.
Ao
contrário, gosto da bagunça. Nos sebos mais esculachados, a probabilidade de
descobrir coisas interessantes é maior. Num deles, no Rio, encontrei uma obra
completa de Edgar Allan Poe, em seis volumes, de 1884, rodada apenas 35 anos
depois da morte de Poe. Em outro, os cinco romances de Charlie Chan, de Earl
Derr Biggers, em edições lindas da Vecchi, dos anos 50 -cada exemplar, tanto do
Poe quanto do Charlie Chan, a R$ 1, valor da época.
No
sebo em que entrei outro dia, em São Paulo, o segundo andar era o dos discos.
Gôndolas e gôndolas de LPs contendo o pior da música brasileira e internacional
dos anos 80 -e quem os viveu sabe o quanto se precisou prensar de discos para
acomodar esse pior. Mas chocantes mesmo eram as estantes, vergando ao peso de
LPs sem capa, empilhados do chão ao teto -aos milhares, em blocos maciços, e
impossíveis de ser consultados.
Ao
sair, perguntei à menina no balcão qual era o destino daqueles discos. Sem
tirar os olhos do tablet, respondeu: "Festas. O pessoal compra às
centenas, para decorar as paredes, pendurar em árvores, calçar o piso. Ou
cerâmica -você esquenta e eles viram cinzeiros, copos, vasos".
Aqueles
discos continham música gravada, não importa qual. Para isso, um dia, jovens
deram o melhor de si num estúdio, talvez aspirando à eternidade ou, pelo menos,
a uma semana nas paradas. Mas nada disso aconteceu e, muitos anos depois, seus
discos estavam ali, condenados a uma inesperada e inglória sobrevida.
)))))))
REFLEXÃO !!!!!! ( Coluna Luis Nassif 07.11)
A birra de O Globo com os pobres
.
Não se entende onde o jornal O Globo
pretende chegar com sua série "Os mercadores da miséria", criticando
os programas sociais, especialmente Bolsa Família e o Brasil Sem Miséria.
Na chama da série, o jornal promete:
“(...) O Brasil Sem miséria, programa
criado pela presidente Dilma para erradicar a pobreza extrema, tem sido alvo
frequente de fraudes, revelam Alessandra Duarte e Carolina Benevides numa série
de reportagens que O GLOBO inicia hoje".
***
Qualquer realidade complexa - uma
grande empresa, um organismo estatal ou privado, um programa de governo - pode
ter grandes virtudes e pequenos defeitos; ou grandes defeitos e pequenas
virtudes.
Se o veículo for mal intencionado,
basta dar destaque aos pequenos defeitos (quando for para denunciar) ou às
pequenas virtudes (quando for para enaltecer). E esquecer que existe a
estatística para avaliar o peso tanto de um quanto de outro.
***
Se quisesse criticar o modelo de
concessão de aeroportos, as dificuldades do PAC (Plano de Ação Continuada), a
barafunda burocrática, os desperdícios da administração pública, o jornal teria
um bom material jornalístico.
Mas a birra do jornal é com programas
voltados aos mais necessitados.
***
A principal "denúncia" de O
Globo, manchete principal, foi do gato que recebia como beneficiário e de dono
de Land Rover que seria beneficiário de R$ 60,00 por mês.
O que deixou de contar:
1. O fato ocorreu em 2009, muito antes
da criação do Brasil Sem Miséria.
2. Toda família matriculada em
programas sociais precisa submeter as crianças a exame médico. Quando a família
não apareceu, o médico foi atrás da criança e descobriu tratar-se de um gato.
3. Descoberto o golpe, pelos próprios
mecanismos do programa, o dono foi denunciado à polícia, está respondendo por
dois crimes, inclusive pelo crime de falsidade ideológica.
Tal fato ocorreu há 4 anos e foi objeto
de inúmeras reportagens na época. De lá para cá passaram três ministros e dois
presidentes pelo programa. Qual a razão de ludibriar assim os leitores
requentando uma notícia velha?
***
A outra denúncia, sobre o dono do Land
Rover, além de antiga, foi apresentada de forma incorreta. O tal empresário
registrou laranjas no BF. Tratava-se de um explorador, que foi identificado e
processado.
Outra "denúncia" foi o de uma
senhora que afirmou não receber mais o benefício. Vai-se conferir, ela deixou
de atualizar seu cadastro. Exige-se a atualização de cadastros justamente para
evitar fraudes. Mas o jornal condena o programa por ter gato, e condena por não
ter gato.
***
A maioria absoluta dos episódios de
fraude relatados foi desvendada pelos próprios sistemas de controle do Bolsa
Família. Mesmo que tivessem sido levantados por terceiros, ainda assim são
estatisticamente irrelevantes.
Qual a intenção de levantar meia dúzia
de casos para desacreditar um programa que assiste a milhões de miseráveis?
Intenção eleitoral, não é. As eleições
de 2012 já aconteceram e o BF já está assimilado pelos eleitores. Tanto assim,
que o PT não se deu bem no nordeste. Quem quiser coração e mentes desses
eleitores, até o governo, daqui para frente terá que oferecer outros
benefícios.
Só pode ser birra com pobre.
Blog: www.luisnassif.com.br 07.11
>>>
Valor Econômico 09.11.12
Um nome que se firma na literatura
nacional
-
Galera: narrativa policial e de mistério que flerta com excessos da
estética gótica
"Gostei muito deste livro." Alguns leitores privilegiados
receberam um bilhete com essa única frase, assinado por Luiz Schwarcz, editor
da Companhia das Letras, acompanhando uma prova do romance "Barba Ensopada
de Sangue", de Daniel Galera. Em outras cópias distribuídas para a
imprensa, a editora Marta Garcia, que acaba de se afastar da Companhia, envia
uma mensagem mais eloquente: "Trabalhar com escritores como Daniel Galera
é um dos maiores privilégios da vida de um editor. Espero que, ao ler este
livro, você tenha tanto prazer quanto eu tive ao editá-lo".
O objeto de todo esse entusiamo já teve os seus direitos de tradução
negociados com diversas editoras do exterior antes mesmo de sair. O primeiro
capítulo do livro tinha aparecido na seleção de jovens autores brasileiros da
revista "Granta" - e curiosamente não foi dos mais festejados (os
festejos, afinal, não foram grandes para ninguém, e a antologia acabou
provocando uma grande discussão no minúsculo mundo literário).
Tirando toda essa pressão, resta a pergunta: o novo romance de Galera, que
levantara enormes expectativas já a partir do primeiro livro longo, a novela
"Até o Dia em que o Cão Morreu", fica em pé? A ambição é grande, o
número de páginas também (424), e o resultado final não decepciona. O romance mantém
um tema capital para o escritor, que é o da busca da identidade.
Felizmente para o autor, a festa preparada antes de o livro sair não
aconteceu durante a escritura. Se isso tivesse ocorrido, o jovem autor de 33
anos talvez não saísse do chão.
No tempo em que escrevia o romance anterior, "Cordilheira"
(Companhia das Letras, 2008), e já um talento reconhecido, Galera foi bastante
assediado. "De fato, tive uma espécie de crise de autoimagem quando estive
em Ushuaia, na Argentina, pesquisando para o 'Cordilheira', mas não foi
exatamente pelo assédio", diz. "Tenho um temperamento muito
recolhido, exceto quando estou entre amigos íntimos. A crise veio de uma
percepção repentina e violenta de uma certa imagem que havia de mim na imprensa
e na internet e era radicalmente diversa da imagem que eu tinha de mim mesmo.
Foi uma coisa momentânea, que me fez recuar um pouco e pensar no assunto, e
essa temática entrou um pouco no romance."
A confusão natural que se costuma fazer entre vida e obra começou a
ocorrer com "Até o Dia em Que o Cão Morreu" (2003). O livro não é
autobiográfico, mas, como diz o autor, algumas coincidências aconteceram
depois, e a vida imitou a obra. O cachorro de Galera morreu de câncer, como no
livro, e o escritor passou a trabalhar com tradução, como o personagem.
"Meus livros não são autobiográficos, a não ser no sentido em que toda e
qualquer ficção é autobiográfica, mas o leitor nem sempre vê dessa forma e tive
que aprender a lidar com isso. Quando me mudei para Garopaba, estava terminando
de revisar o 'Cordilheira' e já tinha digerido bem a tal crise pessoal."
Garopaba é o centro da ação que se desenrola em ritmo ao mesmo tempo
vertiginoso e contido em "Barba Ensopada de Sangue", a história de um
professor de educação física que se muda para a praia, acompanhado de uma
cachorra que pertenceu ao pai suicida, e passa a buscar os vestígios de um avô
desaparecido, vítima, talvez, de uma morte misteriosa e violenta. A cidadezinha
praiana de Santa Catarina aparece microdetalhada no romance.
"Eu queria viver lá, tinha curiosidade pelo tipo de existência que
uma temporada numa cidadezinha litorânea poderia proporcionar, e queria poder
nadar na praia todo dia. Na época em que me mudei, em meados de 2008, estava em
paz comigo mesmo, mas fiz a escolha consciente de procurar a solidão em um
lugar novo por algum tempo", conta.
O livro ainda não existia, mas começou a se desenhar ali, e o personagem
principal - que não tem nome e ainda por cima sofre de uma doença rara em que a
memória dos rostos se dissolve assim que são conhecidos - vaga pelos mesmos
lugares que o escritor frequentou por um ano e meio antes de escrever o livro.
"Comecei a escrevê-lo de fato quando já estava quase indo embora. Viver lá
foi a pesquisa."
O retrato de Garopaba não é lisonjeiro: a cidade, que se divide em duas
temporadas, a alta e a baixa, infladas no verão forte e esvaziadas no inverno
gelado, aparece com uma atmosfera ameaçadora. A natureza exuberante também sabe
ser opressiva, mas o lirismo com que o escritor descreve a vida dos animais e o
homem diante das forças selvagens é um dos pontos altos do livro. "Barba
Ensopada de Sangue", cujo título sanguinolento, de aventura pirata, não
trai o que o livro entrega ("Queria que tivesse um toque de romance
policial e de mistério, e em alguns momentos até um flerte com os excessos da
estética gótica"), vai além.
Poucas vezes, no romance brasileiro contemporâneo, se viu um trabalho tão
bem executado nos diálogos. Galera tem um ouvido especial para a forma como as
pessoas do seu tempo se expressam. Nas suas descrições exaustivas, na estrutura
da narrativa, que se abre ao afeto com maturidade rara, e também no compasso
que impõe à história, formando uma espécie de ponte com os thrillers
existenciais de Bernardo Carvalho, um nome da geração anterior que ele admira,
o escritor gaúcho nascido por acaso em São Paulo é o nome de sua geração que já
está pronto - e mostra que veio para ficar.
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IDEIAS DO MILÊNIO - Revista Consultor Jurídico, 9 de novembro de 2012
"O sistema está em colapso, não podemos mais negar"
Entrevista concedida pelo escritor e consultor em sustentabilidade Paul
Gilding, ao jornalista Jorge Pontual, para o programa Milênio, da Globo News. O
Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por
assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30
e 17h30.
Times Square, o coração da cidade mais rica do país mais próspero do
planeta. Nada parece atingir o brilho desse lugar feérico. Crise econômica?
Crise de energia? Aquecimento global? Fome no mundo? Aqui, no templo máximo do
consumo, nada disso importa. Até dá pra acreditar que vamos continuar para
sempre consumindo mais e mais, que tudo vai dar certo e a economia nunca vai
parar de crescer. Certo? Não, tremendo engano. Nós viemos a Times Square com o
escritor australiano Paul Gilding pra conversar sobre o livro dele A Grande
Ruptura, como a crise do clima vai trazer o fim do consumo e o nascimento de um
novo mundo.
Jorge Pontual — Vamos falar sobre isso então. Você está escrevendo um
livro a partir de uma epifania, podemos dizer? Você estava aqui à meia-noite
com os seus amigos, olhou para tudo isso e pensou: “Como podemos transformas
isto tudo?” Nós somos dependentes das compras, não? Somos viciados nesse
consumismo. Como isso nos afeta? Como a crise que você vê surgindo irá mudar
isso tudo?
Paul Gilding — Antes de mais nada, trata-se, claramente, de uma
dependência. É só olhar em volta. Isto é uma loucura. Não tem a ver com
qualidade de vida nem com satisfação. É divertido, mas não é o melhor que a
humanidade pode fazer. É por isso que nós temos que entender que esse é um
assunto importante para nós. Nós estamos presos aqui, já que, na maioria dos
casos, nós estamos infelizes e a vida não está melhorando para pessoas ricas do
mundo. Aí, começamos a procurar as distrações.
Jorge Pontual — Você sabe que o Brasil está crescendo tanto quanto...
Agora, estamos desacelerando, mas, nos últimos anos, tivemos uma arrancada de
crescimento. Então, há uma nova classe média, e as pessoas estão emergindo e
saindo da pobreza. Porém, eu acho tudo isso não nos deixou mais felizes. Quer
dizer...
Paul Gilding — Eu posso responder. Na média, isso não deixou ninguém mais
feliz no mundo todo. Quando você sai da pobreza para um padrão de vida
razoável, é claro que fica mais feliz, mas, uma vez que você consegue os itens
de necessidade básica, isso não aumenta sua felicidade. O dinheiro que você
ganha não torna a vida mais satisfatória. Todos são incentivados a viver desse
jeito. Mas é claro que, se todos nós vivermos assim neste mundo, será o nosso
fim.
Jorge Pontual — Então nós vamos chegar a um beco sem saída. O que vai
acontecer quando chegarmos lá?
Paul Gilding — Isso é um pouco como já estamos hoje em dia. Nós já estamos
na crise, mas ainda não a vemos como uma crise do crescimento. O que se diz por
aí é que é uma rápida crise econômica, mas a verdade é que já estamos
ultrapassando os limites. O clima está mudando, a economia não está mais
funcionando, estamos afogados em dívidas, a crise de alimentos está piorando, o
preço do petróleo só faz subir. O que nós estamos vendo é todo um sistema em
colapso.
Jorge Pontual — Mas o que é engraçado é que nós estamos neste momento, e
você diz isso no livro, e, com um dia lindo assim, como podemos sentir isso?
Nós não sentimos nada disso.
Paul Gilding — Exatamente. Nós não temos, digamos, o código mental, a
capacidade genética de enxergar isso porque sempre estamos buscando os sinais
mais imediatos. Como espécie, nós evoluímos observando o tigre, buscando o
ataque, procurando a próxima refeição. Nossa genética está “treinada” para
enxergar a curto prazo. Essa é uma questão muito maior, mais complexa, e nós
não temos essa capacidade, porém, isso não muda o resultado final. O que nós
temos é uma escassez de recursos para continuar este tipo de vida. E, como você
diz, ela não está funcionando, já que, quando alcança as suas necessidades,
você não fica mais feliz ao comprar mais coisas. Não é assim que funciona.
Jorge Pontual — E você diz que isso é como uma dependência. É como um
dependente de álcool ou de drogas, que precisa desses produtos para seguir em
frente. Nossa sociedade é dependente desse crescimento?
Paul Gilding — É, sim.
Jorge Pontual — Fale sobre isso.
Paul Gilding — Isso faz sentido se você pensar lá atrás, já que nós não
tínhamos comida suficiente quando deixávamos de ser apenas grandes macacos. Nós
precisávamos de mais abrigo, de mais segurança, tínhamos medo dos ataques de
outros animais. Então, o crescimento nos fez mais fortes. A ideia era boa,
porém, nos deixamos levar por essa ideia. Ela foi longe demais, mas nós ainda
não a modificamos. Ainda somos dependentes dessa ideia central, que descreve
bem onde nós estamos atualmente. Se tivéssemos mais objetos, o telefone
adequado, a roupa correta, a casa apropriada, tudo adequado, nós seríamos, de
algum modo mais felizes. Essa ideia era correta, mas acabou sendo corrompida. É
só você pensar bem: quanto ainda podemos continuar a crescer? Quanto tempo
ainda podemos seguir desse jeito? A resposta é: “De quantas coisas nós
precisamos?” Todos nós teremos jatinhos particulares? Todos teremos mansões? Em
que ponto esse crescimento acabará? Por aquela ideia ser tão central para
aquilo que nós somos, como um vício, e por isso os vícios são tão difíceis de
se abandonar.
Jorge Pontual — Nós dizemos no Brasil e, talvez, ao redor do mundo, que
ter esse estilo de vida de uma classe média alta é o “sonho americano”.
Paul Gilding — Exato.
Jorge Pontual — E você escreve aqui que o sonho americano está morto.
Paul Gilding — Exato.
Jorge Pontual — É isso mesmo?
Paul Gilding — Ele está morto se nós pensarmos que nossa sociedade é
estável. Se quisermos colocar 9 bilhões de pessoas no planeta, que é para onde
estamos indo, aí o sonho americano está morto, porque não há como 9 bilhões de
pessoas viverem assim. Isso não significa que não podemos vivê-lo por um tempo,
mas no fim das contas, o sistema irá quebrar devido ao nível de desigualdade que
é necessário para sustentá-lo. No momento, temos crescimento em algumas partes
do mundo, mas a desigualdade só piora. É claro que, em algum momento, os mais
pobres vão ficar furiosos e destronarão os ricos. Como vimos no Oriente Médio
durante a Primavera Árabe. As pessoas podem até pensar: “Tenho dinheiro, vou
ficar bem. Isso me protegerá.” Mas dinheiro não traz proteção. Pergunte a
Khadafi se a riqueza e o poder bastaram. Pergunte a Mubarak. Não é assim. Não
há como ter uma sociedade forte com tanta desigualdade. Portanto, não há como
existir um sonho americano que não aumenta a igualdade entre todas as pessoas.
Se isso acontecer, essas 9 bilhões de pessoas irão viver esse estilo de vida
voltado ao acúmulo material, o que vai contra as leis da física quanto à
disponibilidade de recursos.
Jorge Pontual — E você diz que, como um vício, os viciados só param quando
chegam ao fundo do poço, quando estão na lama. Então, qual seria o cenário de
uma sociedade que está na lama? O que acontece?
Paul Gilding — Essa é uma pergunta bem difícil, porque você não verá...
Quando você conversa com um alcoólatra, ele diz que está bem, que não tem
problema com a bebida. Mesmo que esteja na lama, ele achará graça e dirá que
tudo vai melhorar, mas ele está na lama. O problema é esse: nós não iremos
melhorar enquanto não aceitarmos. Já dá para afirmar que o sistema está em
colapso, mas nós ainda negamos isso. É como um alcoólatra que perde o emprego.
“O problema não era eu, era o chefe, que era um cretino. Minha mulher me deixou
porque não gostava mais de mim, algo deu errado.” A culpa nunca é dele, e essa
é a essência da negação. Nós estamos nessa negação de que o sistema está em
colapso porque a mudança é um enorme desafio para nós.
Jorge Pontual — Você afirma que nós só iremos parar de negar quando
percebermos que há uma solução?
Paul Gilding — Esse é um ponto crítico da oportunidade empolgante que nós
temos pela frente, por exemplo, com o crescimento da indústria da energia
solar. Nós acreditamos que podemos mudar e que essa transformação é possível.
Aí, os governos começam a atuar. Se nós pensarmos que estamos abrindo mão de
algo, tudo fica mais difícil. Nós temos que acreditar que a vida não será só
boa, mas que será melhor com os resultados dessa mudança. Por isso é que a tecnologia
tem papel importante no processo, mas o ponto mais importante é nós
acreditarmos que uma mudança é possível, que nós podemos ter uma vida melhor.
Não dá para pedir às pessoas para que se sacrifiquem sem motivo algum. Nós
teremos que mudar, e isso será difícil.
Jorge Pontual — Mas de que tipo de sacrifícios nós estamos falando?
Paul Gilding — Esse sacrifício não é, em essência, um sacrifício. Nós não
iremos perder nada em particular. Mas uma mudança é sempre um desafio. Mudar
qualquer coisa sempre é complicado. Vamos ter de mudar nossas indústrias. Olhe
só ao nosso redor: muitas das empresas que estão aí não existirão mais na
economia do futuro. Haverá empresas, empregos e uma economia, mas todos
diferentes. Então, se você faz parte do sistema atual, ter de abrir mão disso
não à algo agradável em termos de negócio. Mas é isso, obviamente, que acontece
o tempo todo no capitalismo e na sociedade. As mudanças acontecem de forma
regular. Nós transformamos empresas em indústrias e, de forma confortável, fazemos
as coisas de outro jeito.
Jorge Pontual — Mas, para as pessoas, isso implicará, por exemplo, em
abrir mão de ter um carro e andar por aí de bicicleta.
Paul Gilding — É claro. Mas nós abrimos mão de enviar cartões postais.
Talvez isso nos force a abrir mão dos carros da forma como os usamos hoje, o
que não quer dizer que não haverá mais carros. Ou seja, nós ainda vamos
precisar de bons sistemas de transportes, só que esses sistemas serão outros. É
claro que, assim como em todas as mudanças na história econômica, houve
transformações enormes que exigiram de nós novos processos. Nesse caso, se você
estiver envolvido, a sensação pode ser de sacrifício. Mas, com o tempo, haverá
a sensação de avanço. Temos que reconhecer as mudanças que precisamos fazer. Ao
final, elas serão avanços e não sacrifícios.
Jorge Pontual — Eu disse no início que é impossível imaginar este local
escuro, sem todas estas luzes, mas isso aconteceu na Segunda Guerra Mundial.
Você menciona no livro que o que vem por aí será um esforço de guerra para
encarar todas mudanças que evitarão o nosso colapso, certo? Que esforço de
guerra é esse?
Paul Gilding — Em muitas maneiras, essa é uma comparação razoável.
Primeiramente, nós teríamos que sentir que existe uma ameaça existencial para a
nossa sociedade, que tudo em que acreditamos está ameaçado. Quando fizemos
isso, houve enormes contribuições e sacrifícios para se chegar a um resultado.
Por exemplo, nós abrimos mão de coisas físicas. Nós derretemos objetos para
fazer tanques, mas nós também passamos por fortes mudanças culturais. As
mulheres passaram a trabalhar nas fábricas, e as empresas concentraram suas
manufaturas em prol do esforço de guerra. É difícil imaginar hoje em dia, mas,
aqui nos EUA, a produção de carros civis foi banida quatro dias depois do
bombardeio em Pearl Harbor. Muitas pessoas que vivenciaram a Segunda Guerra
contam que a tragédia pessoal, obviamente, foi terrível e que coisas horrendas
aconteceram, mas a infraestrutura econômica mudou tão rápido que isso nos levou
a uma sociedade melhor. Então, no que chamo de “esforço de guerra quanto às
mudanças climáticas a aos recursos”, não haverá sacrifício de vidas. Não
precisamos entrar em guerra e matar pessoas. O que precisamos é de uma
transformação econômica e de reconhecer que isso pode ser bom para nós. É
importante ter isso em mente ao entrar nesse processo.
Jorge Pontual — Isso também significa que os governos terão que assumir o
comando. Que influência isso terá na liberdade e na democracia?
Paul Gilding — Os governos terão que desempenhar um papel muito
importante. Acredito que a democracia é inerentemente forte. Acho que podemos
optar por governos fortes, mas isso irá exigir dos governos uma intervenção na
economia. Não é o caos do laissez-faire e dos livres mercados de hoje, que foi
a causa da crise financeira e o que permitiu que os banqueiros investidores de
Wall Street fizessem aquelas maluquices. Nós precisamos de governos fortes, mas
que sejam fortes e democráticos. Assim, talvez consigamos chegar aonde
precisamos.
Jorge Pontual — Qual será o papel de países como o Brasil neste novo
cenário?
Paul Gilding — Acho que o Brasil tem o potencial de ter um papel decisivo.
Há uma grande chance de países como o Brasil, África do Sul, Indonésia, China e
outros explicarem o futuro para nós, de definirem esse futuro, já que este
modelo ocidental com o qual eu cresci na Austrália e que nós temos aqui, nos
EUA, é, na verdade, o problema principal. Normalmente, é muito difícil que as
mudanças partam de dentro. Precisamos de um novo modelo de crescimento, de um
novo modelo de atividade econômica, de novas formas de construir a qualidade da
sociedade, e isso será bem mais fácil em um país como o Brasil se as pessoas
pararem de ver o modelo americano como um ícone. Olhe a sua volta. Isto não é
modelo. Podemos ser melhores que isto. Isto não é o topo das conquistas
humanas. Então, se o Brasil almeja ser assim, ele está almejando seu próprio
colapso.
Jorge Pontual — Mas, como uma economia que não cresce, como isso poderia
dar certo para um país como o Brasil, que está saindo da pobreza e precisa
crescer?
Paul Gilding — Eu acho que nós temos que categorizar esse crescimento. Se
as pessoas são pobres e passam fome, elas precisam de crescimento. Não estou
dizendo o contrário. É preciso enfrentar a pobreza. É como um câncer em nossa
alma como sociedade. Precisamos dividir os recursos de forma mais eficaz. Temos
que reconhecer que alguns têm jatinhos particulares enquanto outros morrem de
fome sem um prato de arroz. Isso é uma loucura, e não uma sociedade estável. E
isso também não ajuda os países ricos. Nós estamos sofrendo nesse processo,
porque, apesar de aparecer superficialmente, que nós temos os bens materiais
que queremos, mas o fato é que a sociedade está instável. Uma sociedade
desigual é uma sociedade pior para se viver. E isso vale para todos, inclusive
para os ricos.
Jorge Pontual — Algo interessante, e que você menciona no livro, é que há
pesquisas que apontam isso, correto?
Paul Gilding — Exato. E sejamos claros, pois as pesquisas são bem claras:
uma sociedade mais desigual, com extremos de desigualdade, não é um bom lugar
para nenhum indicador social, seja ele saúde, a expectativa de vida, a qualidade
da educação, a igualdade de gêneros. Todos esses índices diminuem em uma
sociedade desigual. E o que é interessante é que os 25% do topo da pirâmide de
uma sociedade desigual são os que estão piorando. Se eles fossem mais pobres,
essa sociedade seria mais uniforme. Então toda essa ideia de que o crescimento
irá nos deixar mais felizes e tornar todos nós mais ricos está errada. O que
ela faz é deixar os ricos mais ricos e aumentar a desigualdade social, fazendo
com que todos sofram nesse processo.
Jorge Pontual — O que você afirma é que o crescimento já parou?
Paul Gilding — É claro que teremos algum crescimento na China, no Brasil e
em outros países em momentos distintos, mas, fundamentalmente, os recursos
estão mais caros, o preço dos alimentos subiu, a sociedade está menos estável,
resultando em mais volatilidade, temos níveis ridículos de endividamento que
não conseguem ser saldados, especialmente no mundo ocidental. Nós estamos sem
saída. Se a economia crescer, atingiremos os limites físicos. Se a economia não
crescer, nos afogamos em dívidas. De um jeito ou de outro, estamos
comprometendo o futuro. Há pouco tempo, ouvi uma frase muito boa: “Nós somos a
primeira geração que em vez de se sacrificar pelos seus filhos, está
sacrificando seus filhos em seu próprio benefício.” É o que estamos fazendo.
Jorge Pontual — Há muitas conversas sobre a sustentabilidade, sobre a
economia estar mudando nesta direção, e que isso poderia resolver os problemas.
As cidades implementam ações como pintar a calçada de verde e chamam aquilo de
“ciclovia”, e aí, de repente, nós somos sustentáveis. O que é isso? Negação,
ilusão?
Paul Gilding — É uma combinação de fatores. É uma negação do tamanho do
problema, mas também é uma aceitação da realidade. É uma sensação de que temos
que fazer algo, mas as maiores coisas que temos de fazer — mudar os sistemas de
transporte, de energia e de alimentação — ainda são assustadores demais, além
dos muitos interesses que advogam contra isso tudo. Então, fazemos algumas
coisas que nos fazem parecer boas, tipo maquiagem verde, para parecer que
fizemos algo. É como neste caso aqui. O que nós temos que fazer são mudanças
mais profundas. Estamos tentando transformar algo mais fundamental, o que é uma
constante no progresso humano, em apenas 50 anos, e isso é bem complicado.
Jorge Pontual — Mas há o risco de isso não ocorrer e nós entrarmos em
colapso?
Paul Gilding — Eu acho que esse perigo sempre existe. Nós deixamos passar
muito tempo, então não podemos ser brandos. O processo vai doer, será confuso,
mas ainda não é tarde demais para consertar o problema, só acho que as
consequências serão bastante severas. Porém, se analisarmos de antemão a
Segunda Guerra Mundial e imaginarmos 16 milhões de vítimas, 6 milhões das quais
pela sua crença religiosa, sofrimento e maldade numa escala de níveis
inimagináveis, se nós pensarmos nisso de antemão, diríamos que tudo acabou, que
seria o fim da civilização e que nós nunca nos recuperaríamos. Foi uma
tragédia, coisas terríveis e pavorosas aconteceram naquela época, mas nós
superamos tudo, e o resultado daquilo foi uma sociedade melhor. Por isso,
acredito que nós temo que pensar nisso. Sim, nós vamos enfrentar uma crise,
vamos viver um esboço de colapso, mas somos naturalmente capazes de encarar
mudanças desse nível se nos concentrarmos nisso e, como consequência, esperamos
atingir níveis extraordinários de mudança.
Jorge Pontual — Pensando no caso do Brasil, que encontrou no Atlântico uma
enorme reserva de petróleo e se prepara para extraí-lo, qual é a sua opinião?
Paul Gilding — Eu acho que é errado, que não deveriam fazer isso, e o
mesmo vale para o carvão da Austrália, mas nós temos aquela ideia de nos
agarrar a um sistema que está condenado, que nos salvará. É como se
estivéssemos em um barco afundando e pudéssemos, de alguma forma, nos agarrar
mais forte ao barco para melhorar a situação. Eu entendo o porquê de as pessoas
fazerem isso, mas nós temos de mudar. Agarrar-se a um barco que está afundando
é garantia de afogamento. Precisamos reconhecer que essa mudança tem que
ocorrer, e os países que estiverem mais bem preparados para isso, ou seja, com
níveis baixos de consumo de energia, com o melhor uso, em vários níveis, dos
recursos renováveis, com as maiores reservas florestais, com bom abastecimento
local de alimentos, esses são os países que se sairão melhor no processo.
Quando o abastecimento de comida entrar em colapso, nós, humanos, vamos ficar
bem zangados. Nós vamos nos irritar e nos comportar muito mal.
Jorge Pontual — É por isso que você mora em uma fazenda, onde pode
produzir seu próprio alimento?
Paul Gilding — Não é só por isso. Esse é um motivo. A questão principal é
viver em uma comunidade persistente. Estou escrevendo um livro sobre a
importância das comunidades, sobre não podermos viver em um mundo que depende
dos serviços o tempo todo. Olhe só esta cidade. Se você retirar os caminhões
que distribuem os alimentos, esta sociedade entraria em colapso em três ou
quatro dias. Ele é muito dependente de o sistema funcionar exatamente como o
planejado. É perigoso estar em um local assim. Quanto mais comida local nós
tivermos, quanto maior a diversidade no abastecimento de alimentos, sem que
haja dependência de uma única fonte, é daí que virá a força de um país e de uma
cidade. Eu conversei com algumas pessoas nos EUA há alguns dias, antigos
militares que agora trabalham com essa questão, e um desses homens está
desenvolvendo a ideia de escolher uma cidade de cada estado americano e
torná-la autossuficiente quanto ao abastecimento de comida. Isso é persistência,
é força, e é preciso reconhecer que a força de uma sociedade vem desse tipo de
coisa, e não de uma ideia artificial sobre a quantidade de dinheiro que você
tem no banco. Nós nos esquecemos de que somos animais, que precisamos de
comida, água e terra, e começamos a pensar que somos diferentes disso. Neste
mundo artificial que criamos em nosso entorno, nós nos colocamos além das
necessidades animais, e, na verdade, só precisamos de comida, de água e de
coisas muito básicas para viver.
Jorge Pontual — Eu tenho de confessar que quando li aqui O fim das
compras, pensei: “Ai, meu Deus! O fim das compras! Preciso me apressar!” Eu sou
viciado nisso, como a maioria das pessoas.
Paul Gilding — Claro. Todos nós somos.
Jorge Pontual — Isso causa um impacto. Mas o que eu entendo do seu livro,
a mensagem que fica, e que eu quero aplicar na minha vida é a seguinte: “Compre
menos e viva mais.” Fale um pouco disso.
Paul Gilding — Nós estamos tão dependentes desse impacto artificial que
nos sentimos bem quando compramos algo, mas não funciona e, dois dias depois,
compramos de novo para nos sentirmos melhor.
Jorge Pontual — Ou duas horas depois.
Paul Gilding — Exatamente. Nós estamos presos a esse processo. Isso não é
vida, não é viver mais. O que nós temos de perceber é que a qualidade de vida
não vem das distrações, e sim de fazer as coisas. Não se trata de se distrair
da vida, e sim de vivê-la. Isso pode vir de uma comunidade mais forte, de
aprender coisas novas, adquirir novos conhecimentos, de manter relações com as
pessoas, de ter laços mais fortes dentro da sociedade, de ser mais saudável,
pois é o que propicia uma vida boa. E essas coisas não custam dinheiro, elas
apenas levam tempo. Mas, se usarmos o nosso tempo para ganhar dinheiro, não
teremos tempo suficiente para fazer o que traz felicidade. Aí começa essa
dependência não só do que é ruim para o mundo, mas do que é ruim para nós. Nós temos
de consertar o mundo, mas olhando para dentro e consertando a nós mesmos. É por
isso que toda essa ideia tem a ver com uma evolução consciente da humanidade e
de nós mesmos. Reconhecer que isso tem a ver com a qualidade de vida e que a
vida assim será melhor é um ótimo começo.
Jorge Pontual — Obrigado.
Paul Gilding — De nada. Obrigado.
Jorge Pontual — E vá ao Brasil.
Paul Gilding — Está bem.
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