segunda-feira, 30 de novembro de 2009


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Música
A voz das crianças da Chapada

Doroty Marques mistura cidadania e o som da terra para educar os pequenos moradores da Vila de São Jorge




As vestes rústicas, de extremidades costuradas artesanalmente, os cabelos enormes e quase brancos e a pele queimada pelo sol escaldante do cerrado apresentam a musicista Doroty Marques, de 63 anos. Com um olhar feliz e voz grave gosta de se apresentar como uma “senhora artista”. “Ser artista dá um charme à idade…”, diz, com um sorriso demorado. A alegria, porém, não seria completa se crianças não fizessem parte de sua vida há 30 anos.

A música da mineira Doroty, semeada pelos sons da natureza, pertence à geração setentista de Almir Sater, Elomar, Renato Teixeira e Dércio Marques, seu irmão e companheiro inseparável nos projetos de educação que desenvolve desde os anos 1980. O caçula, de 62 anos, sempre preferiu trilhar o caminho da música independente, longe das grandes produtoras. A irmã também seguiu trajetória alternativa, mas preferiu a educação. Com conteúdos e métodos que deixariam desconfiados professores conservadores por onde passou, Doroty faz da natureza a sala de aula e da liberdade de expressão a motivação principal para formar cidadãos, como na região da Chapada dos Veadeiros.

“Chego nas comunidades e apresento a minha arte. Se me dão abertura, mostro minhas ideias e ofereço uma proposta de escola livre, onde ser cidadão é saber o que se sente. Os alunos vão criar as leis, vão levantar a escola e moldá-la segundo o que eles querem”. É o projeto Turma que Faz, que ganhou esse nome em São Paulo, quando da fundação de uma escola de arte e cultura em São José dos Campos (SP).

Doroty viaja pelo país cativando crianças de comunidades inteiras e com elas fazendo o que sempre fez de melhor: música. Além dos discos, ela e sua equipe de artistas e professores também organizam operetas populares, espetáculo que reúne dança, música e teatro. A mais importante delas, Cadê meu rio que estava aqui?, foi feita com 5 mil crianças de todas as escolas públicas do município de Penápolis (SP), em 1983.

A iniciativa foi premiada pela ONU, na categoria de melhor trabalho educação alternativa, participou da ECO/92, e há cinco anos foi implantada na Vila de São Jorge, situada na região central da Chapada dos Veadeiros, a 36km do município de Alto Paraíso de Goiás. A vila dá acesso único ao Parque Nacional da Chapada. “Cheguei pra ficar um ano lá. Mas aí me apaixonei pela cidade, e o povo foi me conquistando. A Petrobras fez uma visita, gostou do que viu e nos financia há três anos”, explica Doroty. No ano passado, ela organizou a opereta O que é o que é: faca sem ponta, galinha sem pé?, com 150 crianças e adolescentes da comunidade. Cerca de 50 mães dos pupilos da artista cantam no coral do espetáculo. Elas integram, semanalmente, a Cooperativa de Mãos Dadas, criada pela “senhora artista”. “Nós discutimos problemas do dia a dia da cidade, como a violência. Sete pais também participam”, descreve.

Patrocinada pela estatal do petróleo e apoiada pela Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge, Doroty comandou uma pesquisa sobre frutas do cerrado, que resultou na cartilha Frutos do cerrado, escrita com versos seus e ilustrada pelas crianças da turma. O compêndio inspirou as autoridades locais a darem nomes de frutos às praças e ruas de São Jorge. No entanto, é no recém lançado álbum Criunaná que podemos ver a grandiosidade artística da Turma que Faz.

Doroty conta que 70% dos instrumentos são fabricados à mão. E pode-se dizer que, incuindo a participação especial de pássaros, cachoeiras, insetos e demais “artistas naturais”, todo o álbum é delicadamente artesanal, caseiro e bucólico. Em uma palavra, folclórico. A começar pela linguagem em que as músicas são entoadas, saída da imaginação da comunidade de São Jorge e inspirada na inventividade da arte-educadora (Criunaná, que titula o álbum, é a palavra que define o espírito dos sãojorgistas). Cajon, sanfona, viola, violão, tambores, sanfona, calimbas, tchacabum, berimbau e mais um sem-número de aparatos musicais misturam-se às vozes de Dércio, Doroty, crianças e outros colaboradores, tendo como som ambiente o encontro do vento com as árvores retorcidas, o farfalhar de folhas secas e o canto dos pássaros.

O espírito do cerrado



A gramática musical de Doroty Marques começou com seu primeiro álbum, Semente (1978). O segundo e último trabalho solo, Erva-cidreira, viria dois anos depois. Desde então, a artista só grava com seus pequenos discípulos e seu irmão, Dércio. Ambos realizaram discos com o selo independente de Marcus Pereira, um dos produtores mais importantes para a consolidação da identidade fonográfica brasileira, sem influência das gravadoras estrangeiras.

Os instrumentos caseiros, o coro infantil, os ruídos naturais e as vozes guturais dos irmãos Marques fazem de Criunaná, álbum gravado “com energia de bateria de carro”, segundo a educadora, e em várias locações regionais, um trabalho de rara qualidade lírica e melódica. Sob a coordenação geral de Doroty, a Turma que Faz entrega vozes afinadas e excelente instrumental.

A melhor faixa, Rarasá, que também introduz os ouvidos no universo de Criunaná, é puro folclore. O som relaxante das corredeiras é interrompido por uma viola delicada. O violão caipira se apresenta e logo dá métrica à música, invadida pelo vocabulário ao mesmo tempo natural e exótico de Doroty. O canto das araras fornece ainda mais vida a este verdadeiro ode à beleza do cerrado.
CrB 25/10

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