sexta-feira, 23 de novembro de 2012
A mensagem do Tribunal
-O ex-ministro Francisco Rezek, via teleconferência de
Brasília, o professor Marcos Nobre e o procurador da República Rodrigo de
Grandis em mesa-redonda
-
Há quem comemore a condenação de 25 "mensaleiros" como o início
do fim da impunidade que beneficia os criminosos de colarinho branco, contra os
quais há acusações que acumulam poeira nas prateleiras dos cartórios judiciais
de tribunais de todo o país, emaranhadas no intrincado sistema processual
brasileiro. Mas há também quem enxergue na manifestação do Supremo Tribunal
Federal (STF), em sessões que se estenderam por quatro meses para exame de um
único caso, um julgamento de exceção, destinado a interromper o projeto
político do PT no enfrentamento de desigualdades históricas.
Para estudiosos dos assuntos políticos e jurídicos, só o tempo vai dizer o
que o futuro reserva quando o assunto é o combate à corrupção enquistada no
Estado e cujos tentáculos vão muito além de um partido político ou de
interesses econômicos específicos. Há, no entanto, consenso sobre a
consequência imediata do fim do primeiro capítulo da novela jurídica que
invadiu as casas dos brasileiros com a transmissão ao vivo, pela TV Justiça,
dos debates e embates vividos no plenário do Supremo: o Poder Judiciário finalmente
ocupou o espaço institucional que lhe cabe na República, garantido pela
Constituição Federal de 1988.
Para debater o Brasil pós-mensalão, o Valor convidou três especialistas: o
ex-presidente do Supremo e ex-ministro da Corte Internacional de Haia Francisco
Rezek (via teleconferência, de Brasília), o professor de filosofia da Unicamp e
coordenador do Núcleo de Direito e Democracia do Cebrap, Marcos Nobre, e o
procurador da República Rodrigo de Grandis, que atua no Ministério Público
Federal em São Paulo nos casos de lavagem de dinheiro de maior repercussão
nacional.
Haverá outro julgamento igual? Rezek não tem dúvidas de que sim. E aposta
que a cultura da leniência com o setor privado sofreu um golpe com as penas
estabelecidas pelo Supremo, mais graves para banqueiros e publicitários do que
para políticos.
De Grandis diz que, para que a jurisprudência possa ser seguida pelos
juízes de primeira instância, é preciso que o próprio Supremo retome as balizas
deste julgamento em outras decisões. Só assim a jurisprudência estará firmada.
"Igualar corrupção a um atentado à democracia é gravíssimo porque
banaliza a Constituição", diz Nobre
Nobre vê uma decantação de longo prazo das teses jurídicas que embalaram
este julgamento. Comemora o fato de o país ter deixado de questionar se o
Judiciário funciona, para passar a discutir como opera. Mas vê na equiparação
entre o crime de corrupção e o atentado às instituições democráticas uma
banalização da Constituição.
O desempenho do ministro Joaquim Barbosa - que tomou posse ontem como
presidente do Supremo Tribunal Federal -, concordam os três debatedores,
balizará, em grande parte, a consolidação da jurisprudência deste julgamento. É
neste período também que se definirão as bases em que as relações entre os poderes
da República, cujos parâmetros foram revirados nos votos dos ministros, se
reacomodarão.
Leia a seguir os principais trechos do debate realizado pelo Valor
Valor: O que sobra do julgamento para o país?
Francisco Rezek: O julgamento tem um valor educativo sem precedentes.
Educativo para a classe política, mas também e em igual medida para o setor
privado, que induz, ou se deixa induzir, a determinadas práticas que, no
passado, não tinham consequências, mas hoje têm e terão no futuro. Não é sem
razão que alguns comentaristas observam que a apreensão, a ansiedade, a quase
angústia que se espalha na área política é menor que aquela que se espraia na
área empresarial, entre banqueiros, empresários e outros agentes de contato com
o setor público com fins não muito exemplares do ponto de vista da sanidade dos
costumes e das instituições no país.
Rodrigo de Grandis: Por força do nosso ordenamento jurídico, muitas vezes
as decisões de primeira instância, diante da quantidade enorme de recursos que
o ordenamento jurídico brasileiro prevê, jamais são cumpridas. Esses recursos
acarretam a prescrição da pena e a pessoa que foi condenada, ainda que em
várias instâncias, não chega a cumprir a pena privativa de liberdade. Ou seja,
não há eficácia da decisão judicial. Neste caso da AP 470, como o STF é o órgão
de cúpula do sistema judiciário, veremos um efeito prático importante: o
cumprimento da pena privativa de liberdade por crimes de colarinho branco, o
que me parece uma raridade no Brasil.
Marcos Nobre: O ponto mais relevante, da minha perspectiva, é que deixamos
de discutir se o Judiciário, como poder independente, funciona. Passamos a
discutir como ele funciona. Isso é um avanço gigantesco no Brasil. Há uma
consolidação democrática no Brasil. Existe um poder independente, que exerce
seu papel e mostra que ninguém está acima da lei. Isso é muito importante para
uma democracia. Sobre o modo como funcionou o Judiciário neste caso, minha
avaliação é bastante ambivalente e tendencialmente negativa. Foi decepcionante.
O STF, como última instância do Judiciário, tem de fornecer à sociedade uma
imagem do que é a Constituição, ou seja, do que é a própria sociedade, enquanto
sociedade constituída. Uma maneira boa de fazer isso é dizer qual é a função
social da pena, ou seja, não só quantos anos de privação de liberdade cabem a
cada pessoa, mas por quê. Por que restringir a liberdade de alguém? Tem um
caráter de denúncia? De evitar que outras pessoas cometam um delito semelhante?
Tem efeito de retribuir à sociedade um dano que lhe foi feito? Essa discussão
não apareceu. A única iniciativa de fundamentação que posso ver nos votos, e
não sei se é fundamento ou acessório, é a noção de que houve um atentado às
instituições democráticas. Isso é gravíssimo, porque banaliza a Constituição.
Iguala o crime de corrupção com um atentado à democracia. E aparece em vários
votos.
"Em qualquer outro caso, a tendência do STF é preservar ou agravar os
padrões de severidade", diz Rezek
Rezek: De fato, o discurso sobre o atentado à democracia me pareceu
desnecessário. O presidente [Carlos Ayres] Britto, quando proferiu seu primeiro
voto condenatório, disse algo sobre a contrição que se espera de um juiz ao
proferir uma condenação. E há um contraste entre essa esperada e desejável
contrição e a declamação do argumento constitucional, que não está em causa.
Quanto a saber se o tribunal deve se ater a cumprir a lei no que concerne à
aplicação das penas ou deve discutir a questão preliminar da natureza da pena,
creio que esse é um debate para a sociedade, para a academia e, em última
análise, para o Congresso. Creio que seria infeliz e desastrado se, justamente
neste caso, o Supremo deixasse de seguir o ritual e passasse a discutir
filosoficamente o que as penas significam.
Nobre: Mais do que inoportuno, o discurso sobre o atentado à democracia
pautou o debate público e fez parte da argumentação dos ministros de maneira
desnecessária. Sobre a função social da pena, creio que o STF tem um ônus a
mais, além das outras instâncias do Judiciário, que é fornecer uma imagem da
Constituição. A discussão sobre a função social da pena estaria no lugar dessa
fundamentação desastrada do atentado à democracia. Uma discussão importante foi
trocada por outra descabida. O efeito público foi desastroso. Mas torno a dizer
que a discussão mudou de patamar. No caso Collor, estávamos em outro momento,
um momento de institucionalização de um STF democrático. Estamos discutindo
agora se o STF, tal como funciona, funciona bem para a s ociedade. Isso, por si
só, já foi um grande avanço. Mas também é importante discutir o como; e o como,
para mim, foi frustrante.
De Grandis: Diante do nosso sistema jurídico-penal, em que o crime
normalmente enseja a aplicação da pena privativa de liberdade, fica difícil
estabelecer alternativas. Mas hoje, quanto à criminalidade de colarinho branco,
a discussão é: a pena privativa de liberdade é eficiente ou não, é necessária
ou não? A tendência, hoje, é dizer que a prisão é importante como fator inibitório.
Como o criminoso de colarinho branco é até hipersocializado, a ideia de
ressocialização da prisão não cabe. Mas ela ainda é importante do ponto de
vista inibitório.
Valor: O julgamento da Ação Penal 470 traz inovações para o direito
brasileiro?
Rezek: Não acho que o tribunal, do ponto de vista estritamente jurídico,
inovou muito. Fez prevalecer alguns pontos de vista que, no passado, foram
minoritários, embora apertadamente. Tomemos como exemplo julgamentos
anteriores, como o caso Collor. Naquela ocasião, entendeu-se que o crime de
corrupção passiva reclamava a prova do ato de ofício que um titular de função
pública praticou. Desta vez, o Supremo considerou desnecessária a
individualização do ato de ofício. Neste ponto, pode-se dizer que houve evolução.
A contrapartida não precisa ser descrita com todas as letras. Pode ser descrita
de maneira mais fluida, por uma conduta parlamentar, ou política, com que
determinada pessoa correspondeu àquilo que recebeu com vantagens ilícitas.
"As balizas devem ser reiteradas em julgamentos posteriores para que
a 1ª instância possa segui-las", diz De Grandis
Nobre: O julgamento deixou claro que o Judiciário é político, no sentido
de que é um dos três Poderes da República. O Judiciário, em especial o STF, faz
política através de uma linguagem específica, a linguagem do direito, e um
conjunto de procedimentos que também pertencem ao direito. Eles limitam uma
disputa que, no fundo, é política. Existe uma imagem do direito, na sociedade,
segundo a qual, quando se faz uma lei, isso é o fim de um processo e, portanto,
o juiz se limita a aplicar a lei. Dependendo do que se entende por aplicar,
poderíamos colocar um computador no lugar. Por que não é um computador? Porque
a necessidade de interpretar a lei significa que a sentença é criadora de
normas. Por exemplo, se os juízes se recusassem a aplicar o Códig o de Defesa
do Consumidor para compras na internet, porque a internet não está prevista na
lei, teríamos uma situação bizarra. Agora, a teoria do domínio do fato vai ser
objeto de uma intensa disputa acadêmica e jurisprudencial.
De Grandis: A primeira pergunta é se o STF, após a AP 470, vai continuar a
aplicar o que foi decidido neste julgamento. Essas balizas estabelecidas na AP
470 devem ser reiteradas em julgamentos posteriores, para que o juiz de
primeira instância se sinta à vontade para aplicar os preceitos. É muito comum
que o STF estabeleça determinadas decisões, até mesmo súmulas vinculantes, e
que depois o próprio tribunal tenha uma decisão contrária. Nós, que lidamos na
linha de frente, esperamos que o Supremo respeite o que ficou decidido na AP
470, para termos uma jurisprudência consolidada do ponto de vista da lavagem de
dinheiro e dos crimes financeiros.
Valor: Ainda não se pode falar em termos de jurisprudência?
De Grandis: Temos de ter cautela em dizer se a jurisprudência mudou,
porque não conhecemos o inteiro teor do acórdão. Os ministros certamente
revisarão seus votos. A jurisprudência aparentemente foi modificada no que
tange ao ato de ofício. Quanto à lavagem de dinheiro, o Supremo encarou a
questão pela primeira vez de uma maneira originária. Até então, só a analisava
incidentalmente, através de habeas corpus. Numa ação originária, conhecendo
todas as provas, o Supremo analisou o caso de forma pioneira e estabeleceu
balizas importantes. Esse precedente será importante. Embora não tenha caráter
vinculante, juízes o seguirão Brasil afora.
Nobre: As coisas não se encerram com o acórdão do STF. Está muito longe de
acabar esse julgamento. Além da interposição dos embargos, há o possível
recurso à Corte Interamericana. Existe uma disputa política, que continua,
também, na sociedade. A jurisprudência se cristaliza ao longo de décadas. Não é
um julgamento que vai estabelecer jurisprudência em sentido forte.
De Grandis: Diziam que o Supremo não tinha vocação para ação penal
originária, pela própria estrutura. A despeito dessas dificuldades (a
dosimetria da pena mostrou essa dificuldade), a ação tem tramitado muito bem. O
aspecto interessante é que o STF, por ser o juiz natural da causa, enfrenta
problemas que um juiz de primeira instância encara todo dia. Principalmente,
alegações de advogados, como preliminares, nulidades. Os advogados usarão
embargos declaratórios para evitar o trânsito em julgado do acórdão
condenatório. Esses embargos, se não apresentarem fundamentação jurídica
adequada, ao menos servirão para protelar o cumprimento da sentença. É esse
tipo de expediente que enfrentamos na primeira instância. Estou curioso para
saber como o STF vai enfrentar embargos de embargos de embargos. Ele tem de
coibir esse tipo de prática. E isso é importante, porque funciona como um
alento para o juiz que vive essa situação todos os dias.
Valor: O que aconteceu com a AP 470 vai se repetir em outros julgamentos?
O ministro Joaquim Barbosa, relator da ação penal 470, assumiu na
quinta-feira a presidência do Supremo Tribunal Federal; o revisor Ricardo
Lewandowski assumiu a vice-presidência
Rezek: Não tenho a menor dúvida. Entendo o protesto de alguns críticos do
STF pela colocação em pauta de outros casos, envolvendo outros cenários
geográficos, outros partidos políticos; ninguém, honestamente, neste momento,
tem dúvida de que em qualquer outro caso a tendência do STF é preservar ou
agravar seus padrões de severidade. É com hipocrisia que alguns dizem suspeitar
que amanhã, em outro caso semelhante, mas envolvendo outro contexto ideológico,
partidário, estadual, o STF abrandará os padrões de procedimento que adotou na
AP 470. Pelo contrário. O que devemos esperar é uma consolidação desse padrão
de procedimento judiciário, se não uma severidade ainda maior.
De Grandis: Acho que vai se repetir, sim. Talvez não com essa intensidade,
ou com um número tão amplo de acusados, porque é algo inusitado, foge aos
padrões de uma ação penal. O procurador-geral da República à época, Antonio Fernando
de Souza, entendeu por denunciar aquelas 40 pessoas (hoje são 38 réus). Mas,
efetivamente, outras ações penais semelhantes existem no Supremo. Até mesmo
desmembramentos desta AP 470 estão tramitando naturalmente.
Nobre: O ministro Rezek diz que há uma tendência a um aumento de rigor nos
próximos julgamentos. Pode ser. Mas isso também vai ser objeto de uma disputa
política na sociedade. Essa disputa é importante, porque é uma continuidade do
processo na discussão social. Sobre a formação de jurisprudência, teremos de
ver como vai se desenvolver a disputa na sequência. Mas talvez sirva como
padrão para atitude de outras instâncias e do Ministério Público.
Valor: Não é irônico que o Supremo esteja condenando a antiga cúpula do
PT, sendo não só um Supremo indicado por dois presidentes do partido, mas a
partir das exigências do próprio PT por um Judiciário mais rigoroso?
Nobre: Não chego a ver ironia porque não acho que foi um partido que foi
julgado. Há pessoas que estão sendo julgadas e o princípio da individualização
da pena é importantíssimo numa sociedade democrática. Mas me pergunto onde
estão todos aqueles críticos terríveis do sistema de indicação do STF, que
disseram que o STF ia ser aparelhado? Agora estão aplaudindo a decisão.
De Grandis: Mais do que pessoas, o Supremo julga condutas. O tribunal está
julgando fatos, não um partido e não pessoas. Além da independência do
Judiciário, fica clara a independência do Ministério Público. A AP 470 existe
por força da denúncia promovida por um Procurador-Geral da República que foi
escolhido pela classe. O presidente da República não é obrigado a indicar quem
a classe escolhe. O primeiro foi Claudio Fonteles [em 2003].
"Se a discussão sobre o Estado de Direito virar briga de bandido e
mocinho será péssimo para o debate", diz Nobre
Valor: Da forma como os ministros conduziram esse julgamento, sinalizando
que a formação de quadrilha é um atentado à democracia, será que o Supremo não
deu a entender que estava julgando um partido?
Nobre: Quando me digo frustrado, é justamente pela banalização desses
argumentos "ad terrorem". Minha frustração é ver como fundamento algo
que nem deveria estar na sentença. Outra coisa é a relação com a mídia,
sobretudo a maneira como a mídia cobriu o julgamento. Teve extrema dificuldade
em fazer a mediação cultural entre o julgamento e a sociedade. Quem pinçava as
frases não estava preocupado em entender o conjunto do voto de um ministro ou o
conjunto do processo. Foram pinçadas frases que eram compreensíveis para o
grande público. Houve ministros que foram mais ou menos capazes de produzir
esse tipo de frase.
De Grandis: A crítica em relação à partidarização ou a acusação de
partidos decorre do fato de que são crimes praticados em estruturas coletivas.
Isso poderia acontecer em uma instituição financeira, como aconteceu
efetivamente, ou numa empresa. Tenho acompanhado o Supremo, até antes da TV
Justiça, e essas discussões sempre existiram, por força da personalidade de
alguns ministros.
Rezek: Também não gostei do discurso de alguns participantes do
julgamento, mas o essencial é que isso não é decisivo. Sempre ouvi isso. Desde
aqueles momentos em que, no STF, a estima recíproca parecia um pouco maior e
nos momentos tensos, também. Sempre houve uma enorme diferença de estilo de
comunicação, uma enorme diferença na forma de expressão. Há sempre quem fale
com maior rigor científico, com maior precisão técnica, e quem prefira um modo
mais declamatório de falar. Enfim, sempre fui um entusiasta da concisão e do
rigor, mas não acho que os caminhos diferentes que alguns adotam sejam um
pecado mortal.
Nobre: E qual foi o desastre desse julgamento, do ponto de vista
cronológico? A coincidência com as eleições municipais. A partidarização não
está nos votos dos ministros. No debate das eleições municipais, sim. Era um
partido que estava sendo julgado. Essa coincidência foi desastrosa. Teve
consequências graves para o resultado eleitoral? Acho que não. Mas pode ter
tido um efeito no desencanto com a política. O aumento dos brancos, nulos e
abstenções. Pode ter tido um efeito muito ruim para a democracia.
"Há uma tradição no Brasil de leniência com o setor privado. E de
crítica feroz ao setor público", diz Rezek
Rezek: Eu havia previsto que a influência direta nas eleições não
aconteceria. Não se trata no Brasil a questão municipal no mesmo plano de
raciocínio da questão provincial ou a federal. Há muitas razões para o
desencanto com a política neste país, mas a mediatização do processo, sua
colocação na sala de estar de cada um, contribuiu.
Valor: O ministro Rezek abordou o impacto das decisões sobre o setor
privado. As mudanças serão sentidas em breve?
De Grandis: No meu dia a dia, na 6ª vara criminal de São Paulo, vejo
vários processos de lavagem de dinheiro do sistema financeiro, parecidos com o
mensalão. Minha frustração é não ver a sentença condenatória ser concretizada,
por força do sistema jurídico. O mensalão é um exemplo, mas muito particular,
muito peculiar, característico. Não podemos entender que as coisas se
transformaram a partir do julgamento da AP 470, ou que o sistema jurídico
brasileiro de persecução penal é uma maravilha. Pois não é.
Nobre: Algo lamentável na história recente do Brasil é ter ido por água
abaixo a operação Castelo de Areia. Com ela, veríamos exatamente onde estão os
entes privados que não aparecem nesses casos de corrupção. Foi péssimo para a
democracia brasileira. Perdemos a oportunidade de fazer algo semelhante à
Operação Mãos Limpas da Itália. Haverá consequência para os entes privados?
Talvez. Até hoje, no Brasil, a ditadura militar foi só militar, sendo que a
gente sabe que os civis apoiaram decisivamente, mas não foram
co-responsabilizados. E, agora, a corrupção parece de entes públicos e não
corrupção de entes privados. Como eu disse, é o início de uma disputa na
sociedade. O que vamos aceitar como elementos probatórios num caso em que se
aplic a ou não o domínio do fato? O que vamos aceitar ou não como sendo
corrupção?
De Grandis: A questão da cegueira deliberada também envolve a participação
dos entes particulares, das instituições financeiras e outras atividades em que
pode haver lavagem de dinheiro. Para mim, é a grande novidade no STF. Tem
fundamento na jurisprudência americana e remete ao fato de alguém se colocar
deliberadamente em situação de desconhecimento. Como isso vai ser traduzido no
Brasil? Não possuímos aqui, tradicionalmente, a "cegueira
deliberada". Creio que teremos de adaptá-la da figura do dolo, especificamente
o dolo eventual, em que o sujeito prevê a situação e assume o risco. A lavagem
de dinheiro, no Brasil, só se pune dolosamente. Diferentemente da Alemanha ou
da Espanha, não criminalizamos a conduta culposa de lavagem de dinheiro.<
/p>
Rezek: Este julgamento significa a consagração, pelo STF, de uma tese
importante do Ministério Público, relacionada ao que chamávamos de crimes
societários. Nós nos definiríamos como país da impunidade perante o mundo se
juízes normais continuassem acolhendo argumentos de defesa no sentido de que o
Ministério Público, ao analisar as condutas dos réus individualmente, não
conseguiu demonstrar exatamente o que cada pessoa fez em um crime societário.
No caso de crimes cometidos por um banco, uma corretora, uma seguradora, nunca
se punirá o crime coletivo assim. Na AP 470, o Supremo acolheu a tese do
Ministério Público sobre a desnecessidade da individualização milimétrica de
condutas. Com essa concepção judiciária, às vezes se pune alguém que pa
rticipou do conluio, mas em menor proporção; que, se pudesse ter dito algo,
opinaria por uma conduta diferente. Isso acontece em outros âmbitos, também.
Lembro, por exemplo, o episódio trágico em Brasília, quando jovens de classe
média atearam fogo a um índio. É crível que os pais de um daqueles jovens
acreditassem que seu filho jamais faria aquilo por iniciativa própria. Mas o
tratamento que a Justiça deu a todos, à exceção dos menores de idade, foi
uniforme. Aprendemos que é preciso ter escrúpulos. Pode ser desastroso, para uma
pessoa, não ter coragem de protestar contra algo que vai ser feito em nome
coletivo e depois punido coletivamente.
Nobre: Aqui é importante ressaltar a discussão, por exemplo, sobre a
teoria do domínio do fato, que não vai se restringir à academia. Se um gerente
de banco deposita uma quantia numa conta e aquilo é parte de um processo de
lavagem de dinheiro, mas ele não conhece a origem do recurso, isso tem efeito
processual? Ele pode ser incluído na denúncia? Não é preciso ato de ofício, mas
vai ser necessário que o Judiciário estabeleça quais serão os critérios
probatórios. Por exemplo, no caso do deputado João Paulo Cunha, existe a
abertura de licitação e a contratação da agência publicitária. No meio, há um
depósito em conta. Temos claramente uma nova maneira de organizar a peça
probatória.
De Grandis: Desde 1998, há ferramentas para que o setor privado colabore
na investigação e na comunicação de atividades suspeitas de lavagem de
dinheiro. Hoje, a corrupção no Brasil é uma conduta que envolve um ato de
ofício, então o exercício da função pública tem de estar envolvido. Não
possuímos, como outros países, a corrupção entre particulares. A
responsabilização da pessoa jurídica do ponto de vista penal é exclusiva dos
crimes ambientais. Mas há um projeto de lei, apoiado pelo Ministério Público
Federal, no sentido de responsabilizar administrativamente uma pessoa jurídica
que participa de lavagem de dinheiro ou de um ato de corrupção. O setor
financeiro tem preocupação, claro, até porque é um setor exposto à prática da
lavag em.
Rezek: Até agora, as penas do setor privado, reunindo os núcleos
operacional e financeiro, são suntuosamente superiores às do setor público, do
núcleo político. Isso poderá sacudir a sociedade brasileira, para que se torne
igualmente exigente com o setor privado e o público. Há uma tradição no Brasil
de extrema leniência com o setor privado. E de crítica feroz ao setor público.
É verdade que a exemplaridade duvidosa do setor público dá ao privado os
pretextos para as aberrações que comete. O sonegador, o empresário violador das
leis trabalhistas, o pilantra do setor privado, justifica-se, quando enfrenta o
travesseiro a cada noite, dizendo que assim procede porque não quer dar
dinheiro a um setor de duvidosa qualidade ética, corrupto, mal organi zado. A
AP 470 ensinará ao setor privado brasileiro que, hoje, as disfunções do setor
público são punidas. E as do setor privado serão punidas com maior severidade
ainda.
Nobre: Gostaria de acrescentar que os financiadores de campanha não
apareceram. O que chamo de setor privado não é só a ponta do iceberg, o Marcos
Valério ou a Kátia Rabello. Onde estão os financiadores desse esquema, os reais
financiadores? Então, quando mencionei a operação Castelo de Areia, era a isso
que me referia: nossa capacidade de chegar aos financiadores dos esquemas.
Valor: Transmitido pela televisão e lidando com preferências partidárias
de muitos brasileiros, o julgamento teve atenção da opinião pública. Como lhes
pareceram os debates na sociedade?
Nobre: Ficou claro que temos uma sociedade com baixa cultura jurídica. Uma
democracia, como forma de vida, não só como regime político, inclui uma cultura
jurídica da população. O que se viu foi um abismo entre a cultura jurídica
geral e a cultura de um domínio de especialistas. Esse abismo é muito ruim para
a democracia. Temos de pensar uma forma de difundir a cultura jurídica, para
que possamos ter uma democracia mais forte. A transmissão pela TV é importante,
mas não significa automaticamente mais transparência. Pode até significar mais
intransparência, porque a linguagem é inacessível. Quais momentos foram para o
debate público? Os embates diretos, as frases de efeito. Por quê? Por causa do
abismo cultural. A mídia tentou suprir isso convidan do professores para
escrever e debater, o que foi importante. Mas mostrou que, de fato, o abismo é
grande. Também a academia, os operadores do direito, têm dificuldade em se
comunicar com a sociedade.
De Grandis: Estamos discutindo, no público, pela imprensa, teorias que
eram, até ontem, estritamente acadêmicas, como a teoria do domínio do fato, que
não é nova, já vem sendo acolhida há muito tempo no Brasil. O que é novo é a
acolhida pública. Mais interessante ainda é a teoria da cegueira deliberada.
Isso vai ter um efeito importante em matéria de investigação criminal e de
processos penais, tanto no âmbito do Ministério Público como no Judiciário.
Nobre: Uma coisa que o debate público não ressaltou é a consistência dos
votos. Tanto do relator quando do revisor. Como estamos discutindo o futuro, se
o precedente vai ser a partir do voto do revisor ou do voto do relator é algo
em que a disputa está em curso. Pareceu, na discussão pública, que existia um
voto, que era o voto correto, o do ministro Joaquim Barbosa, e um voto
protelatório, ou de defesa, o do ministro Ricardo Lewandowski. É um absurdo.
Fazer justiça ao equilíbrio entre o voto do relator e o do revisor é muito
importante. Existe uma discussão importante sobre o Estado de direito no
Brasil. Se fizermos dela uma briga de bandido e mocinho, será péssimo para o
debate público.
Rezek: Juízes e procuradores aprendem cedo que a humanidade não se divide
em vilões e heróis. Muitas vezes, enfrentamos problemas de consciência quando
nos deparamos com feitos opondo duas personalidades ou instituições do setor
privado e constatamos que se trata de coisas da mesma natureza, mas, por mera
casualidade, uma está na posição de vítima e a outra na de agente do crime. O
professor tem razão quando pondera que há uma visão caricatural do julgamento
da AP 470.
Valor: Como ficam as relações entre o Judiciário e o Congresso, que foi
questionado pela condução das relações com o Executivo?
Rezek: O Judiciário dá aos dois poderes políticos o recado de que há
limites para a fisiologia. Fisiologia é uma metáfora inventada no Brasil,
brilhante, para definir a troca de favores no setor público. Há limites para a
fisiologia, no sentido de que não dá para ir além do loteamento político da
função pública. Observados esses limites, tudo que se pode permitir à classe
política, em matéria de fisiologia, para fim de obter coligações, unidade, para
que o governo possa governar. Além disso não se pode ir. Ou seja, negociar
apoio político mediante propina e outras ilicitudes. Essa é a lição que o
Judiciário dá, muito limitada no alcance, porque reconhece implicitamente que
temos de conviver com essa parte da fisiologia, inevitável mesmo na s melhores
democracias do planeta. A organização da distribuição da função pública em
função de coligações e interesses já é uma enorme margem de manobra para os
políticos. Não deveria ir além disso, nem se envolver com esquemas
publicitários e bancários como o da AP 470.
Nobre: O Judiciário se afirma como um poder independente. Existe uma
discussão na academia e na sociedade brasileiras, sobre a "judicialização
da política". O Judiciário estaria invadindo o campo do Legislativo. Nunca
vi tese mais absurda, porque, em grande parte da história, o país não teve
democracia. Um país sem democracia não tem Judiciário. O que o Judiciário está
fazendo é tomar seu lugar, o que é muito estranho para os outros poderes.
Agora, é claro que ele pode querer ocupar mais espaço do que deve. Aí é que
fica interessante, porque começa uma disputa entre o Executivo, o Legislativo e
o Judiciário, sobre qual é a função de cada um. Isso é democracia. Até onde
cada um vai não é delimitado previamente. É objeto de disputa. Desde a
democratização, discutiu-se como o Legislativo tinha sido engolido pelo
Executivo. Mas não era isso, era a disputa de até onde vai cada um. Agora o
Judiciário diz "estou aqui e vou participar da disputa". Quanto ao
processo político, vai se alterar, mas, especificamente no dia a dia da
política, não sei o que vai mudar. Evidentemente, o Judiciário não vai proibir
coalizões, se não irá muito além do que deve.
Valor: A perda de mandato dos parlamentares condenados pode ser o primeiro
capítulo desse conflito entre Judiciário e Legislativo pós-mensalão?.
De Grandis: A perda do mandato é efeito decorrente da ação condenatória.
Creio que, uma vez decretada a sentença, o efeito é a perda do mandato. Espero,
nessa ideia de tripartição, freios e contrapesos, que a Câmara dê cumprimento à
decisão do STF. Porque me parece que isso é inerente à própria decisão
condenatória.
Rezek: Não é a primeira vez que esse tipo de questão se coloca. Nos anos
1970, a fase mais sombria da história política do Brasil, já se colocava a
questão de saber se, em face da linguagem ambivalente da Constituição, certas
decisões do Supremo tinham de ser convalidadas pelo Congresso. Quanto à perda
do mandato, parece que ela tem de ser declarada pela Câmara dos Deputados após
a decisão do STF. Mas ela tem de fazê-lo imediatamente? Poderia esperar até o
fim do mandato, ou até a véspera? Não sabemos. Pode, sim, haver um impasse, mas
a expectativa é de que não haja. Sobretudo, porque a AP 470 saiu do Congresso.
As investigações começaram lá e foi lá que alguns réus, quando eram apenas
suspeitos, tiverem seus mandatos cassados.
Nobre: Os conflitos são produtivos. É a questão dos limites e da relação entre
os poderes que está em causa. No Brasil, essa relação não está cristalizada,
nossa democracia é muito jovem. Seria ruim se não existisse embate. Até chegar
a um impasse, eu acho produtivo, mesmo se chegar ao impasse. Porque vamos
discutir, de fato, qual é a competência de quem e até onde vai, e esses poderes
vão se acomodar. E esse é um processo demorado, não é da noite para o dia.
Valor: O que decorrerá do fato de o ministro Joaquim Barbosa assumir a
presidência do STF como quase herói perante a opinião pública?
Nobre: Acho bom que ele assuma a presidência do STF dois dias após o Dia
da Consciência Negra. Para o Brasil, é importante. Como eu disse, a história de
que existe um voto do mocinho e um do bandido é algo que temos de desfazer para
o debate público. Essa construção é prejudicial para a democracia. É uma
construção política, que se deu, também, em função do embate eleitoral, mas não
só. Nossa função, como intelectuais participantes do debate público, é tornar
esse debate mais complexo. Também, ao assumir a presidência do STF, o ministro
não pode continuar tendo a atitude que teve como relator.
Rezek: Eu gostaria de citar, a propósito, as razões que conduziram Joaquim
Barbosa ao STF. Ele tem um dos currículos mais exuberantes da história do
Tribunal. Poucas vezes se viu, no STF, alguém que, em virtude da sua formação
acadêmica múltipla, seria capaz de proferir uma conferência hoje em Paris, uma
outra, amanhã, em São Francisco, e uma terceira, semana que vem, em Heidelberg.
Poucas vezes um governo da República se sentiu tão confortável para indicar e o
Senado tão confortável para aprovar alguém pelas credenciais que reuniu ao longo
da vida, sem embargo de sua origem modesta. É uma pessoa de temperamento
difícil, isso é óbvio. Mas esse temperamento se transfigura quando alguém
assume a regência do colegiado e passa a ter sobre os ombros um problema que
até ontem era do ministro Ayres Britto. Não tenho dúvida de que a relativa
dificuldade de convivência, resultado do temperamento de Barbosa, vai cessar.
Teremos dois anos de uma gestão muito profícua, ainda que menos poética. Sem o
charme que transbordava do ministro Ayres Britto. E não haverá mudança de rumo
quando, daqui a dois anos, Barbosa ceder o lugar a Lewandowski.
Nobre: O Joaquim Barbosa que vimos como relator, eu acho, vai se
transferir para a presidência do Conselho Nacional de Justiça. Vai ser lá, no
CNJ, que Joaquim Barbosa vai poder ser o relator. O CNJ é um dos maiores
avanços da democracia brasileira e temos de nos debruçar sobre o Conselho para
ver quais são os projetos do Joaquim Barbosa e como pretende implementá-los.
De Grandis: Estou curioso em relação ao comportamento de Joaquim Barbosa
no CNJ, porque sabemos que o ministro tem posições muito próprias. Basta
relembrar, por exemplo, que, segundo consta, ele não recebe advogados e já
criticou o papel na corte de advogados que são parentes de ministros. Isso ele
fez publicamente. E o tema me parece ser objeto de atuação do CNJ.
sexta-feira, 9 de novembro de 2012
Cooperativismo e bem-estar
.
ROBERTO RODRIGUES, 70, é coordenador do Centro de
Agronegócio da FGV e embaixador da FAO para o Ano Internacional do
Cooperativismo. Foi ministro da Agricultura (governo Lula)
Já há algum tempo a academia discute a eficiência do PIB como indicador
adequado do desenvolvimento, bem como o uso das médias. A renda per capita
brasileira é R$ 668. Mas o brasiliense tem uma renda de R$ 1.404. O piauiense,
de R$ 367. De que vale para este último a média do país se ele recebe 55% dela?
É o mesmo que dizer que a precipitação pluviométrica do norte do país é
boa. No Amazonas chove por volta de 2500 mm ao ano. No Ceará, cerca de 800 mm.
A média é excelente, mas o Ceará continua seco.
Estudiosos se debruçam sobre essas questões em busca de um índice
equilibrado que associe o progresso ao bem-estar da população.
-
Renda alta, claro, ajuda: as pessoas se alimentam e se vestem bem, tem
acesso a boa educação e planos de saúde, moram bem, têm carro e os aparatos
eletrônicos e de comunicação contemporâneos, tiram férias na praia, vão ao
cinema e ao teatro, têm lazer. Tudo isso torna a vida mais leve e fácil, embora
não garanta automaticamente bem-estar.
Esse só é real --sobretudo coletivamente-- quando existe coesão entre os
cidadãos, confiança recíproca, tranquilidade nas relações humanas, justiça e
equidade.
Esses itens compõem o que Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia (1998)
chamou de capital social.
Antes dele, o grau de desenvolvimento de um país era dado pelo
quadrilátero dos capitais: o natural (terra, água, clima), o físico (bens
imóveis e duráveis como construções, veículos), o financeiro (dinheiro, ações)
e o humano (educação, saúde).
Examinando países em que esses quatro capitais eram distribuídos com
harmonia, Sen e seus companheiros verificaram que em algumas regiões havia mais
progresso, pois lá havia maior capital social.
Talvez seja esse o modo para medir o bem-estar de um povo, o seu capital
social. Não basta o PIB, não basta o IDH, não bastam os esforços para avaliar a
felicidade de uma sociedade. Bem-estar é a soma de desenvolvimento econômico
com o social e todas as variáveis que interferem com ambos e entre ambos.
Bom, e as cooperativas com isso?
Desde a fundação da primeira cooperativa, em Rochdale (Inglaterra), em
1844, como resposta à exclusão social da revolução industrial, o cooperativismo
(enquanto doutrina) foi chamado de terceira via para o desenvolvimento
socioeconômico, entre o capitalismo e o socialismo.
Isso durou até que caiu o muro de Berlim, em 1989. As profundas mudanças
no socialismo e no capitalismo eliminaram a ideia de terceira via, e por um bom
tempo o cooperativismo ficou perplexo procurando sua nova identidade.
Por isso, em 1995, a Aliança Cooperativa Internacional (que representa
mais de um bilhão de cooperados no mundo) realizou uma conferência para revisar
seus princípios.
Criou um novo princípio, o seu sétimo: a preocupação com a comunidade.
Desde então, as cooperativas, empresas baseadas em valores, transcendem a
prestação de serviços apenas a seus associados para servir também às pessoas da
localidade onde se encontra. O conceito é claro: não existe uma ilha de bem
estar cercada de iniquidade.
Isso mudou a representação gráfica de cooperativismo. Até a queda do muro,
era um rio fluindo entre duas margens, o socialismo e o capitalismo. Depois,
virou uma ponte unindo outras margens: o mercado, onde as cooperativas devem
estar inseridas com eficiência de gestão, competitivas e focadas, e o bem-estar
da coletividade. E isso só acontece por causa do capital social, matéria prima
essencial para o sucesso de uma cooperativa.
Em outras palavras: cooperativa é a síntese do capital social, base do
bem-estar coletivo. Fonte: Folha SP
09.11
RUY CASTRO
FOLHA SP 21.10
Música para derreter
RIO
DE JANEIRO - O sebo perto da praça João Mendes, em São Paulo, fazia jus ao
nome. As estantes estavam organizadas por assunto, mas cada prateleira era uma
barafunda de livros sem ordem, além dos espalhados pelo chão. Veja bem, não
estou me queixando. Não sou daqueles que só entram em sebos assépticos,
impecáveis, à prova de ácaros.
Ao
contrário, gosto da bagunça. Nos sebos mais esculachados, a probabilidade de
descobrir coisas interessantes é maior. Num deles, no Rio, encontrei uma obra
completa de Edgar Allan Poe, em seis volumes, de 1884, rodada apenas 35 anos
depois da morte de Poe. Em outro, os cinco romances de Charlie Chan, de Earl
Derr Biggers, em edições lindas da Vecchi, dos anos 50 -cada exemplar, tanto do
Poe quanto do Charlie Chan, a R$ 1, valor da época.
No
sebo em que entrei outro dia, em São Paulo, o segundo andar era o dos discos.
Gôndolas e gôndolas de LPs contendo o pior da música brasileira e internacional
dos anos 80 -e quem os viveu sabe o quanto se precisou prensar de discos para
acomodar esse pior. Mas chocantes mesmo eram as estantes, vergando ao peso de
LPs sem capa, empilhados do chão ao teto -aos milhares, em blocos maciços, e
impossíveis de ser consultados.
Ao
sair, perguntei à menina no balcão qual era o destino daqueles discos. Sem
tirar os olhos do tablet, respondeu: "Festas. O pessoal compra às
centenas, para decorar as paredes, pendurar em árvores, calçar o piso. Ou
cerâmica -você esquenta e eles viram cinzeiros, copos, vasos".
Aqueles
discos continham música gravada, não importa qual. Para isso, um dia, jovens
deram o melhor de si num estúdio, talvez aspirando à eternidade ou, pelo menos,
a uma semana nas paradas. Mas nada disso aconteceu e, muitos anos depois, seus
discos estavam ali, condenados a uma inesperada e inglória sobrevida.
)))))))
REFLEXÃO !!!!!! ( Coluna Luis Nassif 07.11)
A birra de O Globo com os pobres
.
Não se entende onde o jornal O Globo
pretende chegar com sua série "Os mercadores da miséria", criticando
os programas sociais, especialmente Bolsa Família e o Brasil Sem Miséria.
Na chama da série, o jornal promete:
“(...) O Brasil Sem miséria, programa
criado pela presidente Dilma para erradicar a pobreza extrema, tem sido alvo
frequente de fraudes, revelam Alessandra Duarte e Carolina Benevides numa série
de reportagens que O GLOBO inicia hoje".
***
Qualquer realidade complexa - uma
grande empresa, um organismo estatal ou privado, um programa de governo - pode
ter grandes virtudes e pequenos defeitos; ou grandes defeitos e pequenas
virtudes.
Se o veículo for mal intencionado,
basta dar destaque aos pequenos defeitos (quando for para denunciar) ou às
pequenas virtudes (quando for para enaltecer). E esquecer que existe a
estatística para avaliar o peso tanto de um quanto de outro.
***
Se quisesse criticar o modelo de
concessão de aeroportos, as dificuldades do PAC (Plano de Ação Continuada), a
barafunda burocrática, os desperdícios da administração pública, o jornal teria
um bom material jornalístico.
Mas a birra do jornal é com programas
voltados aos mais necessitados.
***
A principal "denúncia" de O
Globo, manchete principal, foi do gato que recebia como beneficiário e de dono
de Land Rover que seria beneficiário de R$ 60,00 por mês.
O que deixou de contar:
1. O fato ocorreu em 2009, muito antes
da criação do Brasil Sem Miséria.
2. Toda família matriculada em
programas sociais precisa submeter as crianças a exame médico. Quando a família
não apareceu, o médico foi atrás da criança e descobriu tratar-se de um gato.
3. Descoberto o golpe, pelos próprios
mecanismos do programa, o dono foi denunciado à polícia, está respondendo por
dois crimes, inclusive pelo crime de falsidade ideológica.
Tal fato ocorreu há 4 anos e foi objeto
de inúmeras reportagens na época. De lá para cá passaram três ministros e dois
presidentes pelo programa. Qual a razão de ludibriar assim os leitores
requentando uma notícia velha?
***
A outra denúncia, sobre o dono do Land
Rover, além de antiga, foi apresentada de forma incorreta. O tal empresário
registrou laranjas no BF. Tratava-se de um explorador, que foi identificado e
processado.
Outra "denúncia" foi o de uma
senhora que afirmou não receber mais o benefício. Vai-se conferir, ela deixou
de atualizar seu cadastro. Exige-se a atualização de cadastros justamente para
evitar fraudes. Mas o jornal condena o programa por ter gato, e condena por não
ter gato.
***
A maioria absoluta dos episódios de
fraude relatados foi desvendada pelos próprios sistemas de controle do Bolsa
Família. Mesmo que tivessem sido levantados por terceiros, ainda assim são
estatisticamente irrelevantes.
Qual a intenção de levantar meia dúzia
de casos para desacreditar um programa que assiste a milhões de miseráveis?
Intenção eleitoral, não é. As eleições
de 2012 já aconteceram e o BF já está assimilado pelos eleitores. Tanto assim,
que o PT não se deu bem no nordeste. Quem quiser coração e mentes desses
eleitores, até o governo, daqui para frente terá que oferecer outros
benefícios.
Só pode ser birra com pobre.
Blog: www.luisnassif.com.br 07.11
>>>
Valor Econômico 09.11.12
Um nome que se firma na literatura
nacional
-
Galera: narrativa policial e de mistério que flerta com excessos da
estética gótica
"Gostei muito deste livro." Alguns leitores privilegiados
receberam um bilhete com essa única frase, assinado por Luiz Schwarcz, editor
da Companhia das Letras, acompanhando uma prova do romance "Barba Ensopada
de Sangue", de Daniel Galera. Em outras cópias distribuídas para a
imprensa, a editora Marta Garcia, que acaba de se afastar da Companhia, envia
uma mensagem mais eloquente: "Trabalhar com escritores como Daniel Galera
é um dos maiores privilégios da vida de um editor. Espero que, ao ler este
livro, você tenha tanto prazer quanto eu tive ao editá-lo".
O objeto de todo esse entusiamo já teve os seus direitos de tradução
negociados com diversas editoras do exterior antes mesmo de sair. O primeiro
capítulo do livro tinha aparecido na seleção de jovens autores brasileiros da
revista "Granta" - e curiosamente não foi dos mais festejados (os
festejos, afinal, não foram grandes para ninguém, e a antologia acabou
provocando uma grande discussão no minúsculo mundo literário).
Tirando toda essa pressão, resta a pergunta: o novo romance de Galera, que
levantara enormes expectativas já a partir do primeiro livro longo, a novela
"Até o Dia em que o Cão Morreu", fica em pé? A ambição é grande, o
número de páginas também (424), e o resultado final não decepciona. O romance mantém
um tema capital para o escritor, que é o da busca da identidade.
Felizmente para o autor, a festa preparada antes de o livro sair não
aconteceu durante a escritura. Se isso tivesse ocorrido, o jovem autor de 33
anos talvez não saísse do chão.
No tempo em que escrevia o romance anterior, "Cordilheira"
(Companhia das Letras, 2008), e já um talento reconhecido, Galera foi bastante
assediado. "De fato, tive uma espécie de crise de autoimagem quando estive
em Ushuaia, na Argentina, pesquisando para o 'Cordilheira', mas não foi
exatamente pelo assédio", diz. "Tenho um temperamento muito
recolhido, exceto quando estou entre amigos íntimos. A crise veio de uma
percepção repentina e violenta de uma certa imagem que havia de mim na imprensa
e na internet e era radicalmente diversa da imagem que eu tinha de mim mesmo.
Foi uma coisa momentânea, que me fez recuar um pouco e pensar no assunto, e
essa temática entrou um pouco no romance."
A confusão natural que se costuma fazer entre vida e obra começou a
ocorrer com "Até o Dia em Que o Cão Morreu" (2003). O livro não é
autobiográfico, mas, como diz o autor, algumas coincidências aconteceram
depois, e a vida imitou a obra. O cachorro de Galera morreu de câncer, como no
livro, e o escritor passou a trabalhar com tradução, como o personagem.
"Meus livros não são autobiográficos, a não ser no sentido em que toda e
qualquer ficção é autobiográfica, mas o leitor nem sempre vê dessa forma e tive
que aprender a lidar com isso. Quando me mudei para Garopaba, estava terminando
de revisar o 'Cordilheira' e já tinha digerido bem a tal crise pessoal."
Garopaba é o centro da ação que se desenrola em ritmo ao mesmo tempo
vertiginoso e contido em "Barba Ensopada de Sangue", a história de um
professor de educação física que se muda para a praia, acompanhado de uma
cachorra que pertenceu ao pai suicida, e passa a buscar os vestígios de um avô
desaparecido, vítima, talvez, de uma morte misteriosa e violenta. A cidadezinha
praiana de Santa Catarina aparece microdetalhada no romance.
"Eu queria viver lá, tinha curiosidade pelo tipo de existência que
uma temporada numa cidadezinha litorânea poderia proporcionar, e queria poder
nadar na praia todo dia. Na época em que me mudei, em meados de 2008, estava em
paz comigo mesmo, mas fiz a escolha consciente de procurar a solidão em um
lugar novo por algum tempo", conta.
O livro ainda não existia, mas começou a se desenhar ali, e o personagem
principal - que não tem nome e ainda por cima sofre de uma doença rara em que a
memória dos rostos se dissolve assim que são conhecidos - vaga pelos mesmos
lugares que o escritor frequentou por um ano e meio antes de escrever o livro.
"Comecei a escrevê-lo de fato quando já estava quase indo embora. Viver lá
foi a pesquisa."
O retrato de Garopaba não é lisonjeiro: a cidade, que se divide em duas
temporadas, a alta e a baixa, infladas no verão forte e esvaziadas no inverno
gelado, aparece com uma atmosfera ameaçadora. A natureza exuberante também sabe
ser opressiva, mas o lirismo com que o escritor descreve a vida dos animais e o
homem diante das forças selvagens é um dos pontos altos do livro. "Barba
Ensopada de Sangue", cujo título sanguinolento, de aventura pirata, não
trai o que o livro entrega ("Queria que tivesse um toque de romance
policial e de mistério, e em alguns momentos até um flerte com os excessos da
estética gótica"), vai além.
Poucas vezes, no romance brasileiro contemporâneo, se viu um trabalho tão
bem executado nos diálogos. Galera tem um ouvido especial para a forma como as
pessoas do seu tempo se expressam. Nas suas descrições exaustivas, na estrutura
da narrativa, que se abre ao afeto com maturidade rara, e também no compasso
que impõe à história, formando uma espécie de ponte com os thrillers
existenciais de Bernardo Carvalho, um nome da geração anterior que ele admira,
o escritor gaúcho nascido por acaso em São Paulo é o nome de sua geração que já
está pronto - e mostra que veio para ficar.
>>>>>
IDEIAS DO MILÊNIO - Revista Consultor Jurídico, 9 de novembro de 2012
"O sistema está em colapso, não podemos mais negar"
Entrevista concedida pelo escritor e consultor em sustentabilidade Paul
Gilding, ao jornalista Jorge Pontual, para o programa Milênio, da Globo News. O
Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por
assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30
e 17h30.
Times Square, o coração da cidade mais rica do país mais próspero do
planeta. Nada parece atingir o brilho desse lugar feérico. Crise econômica?
Crise de energia? Aquecimento global? Fome no mundo? Aqui, no templo máximo do
consumo, nada disso importa. Até dá pra acreditar que vamos continuar para
sempre consumindo mais e mais, que tudo vai dar certo e a economia nunca vai
parar de crescer. Certo? Não, tremendo engano. Nós viemos a Times Square com o
escritor australiano Paul Gilding pra conversar sobre o livro dele A Grande
Ruptura, como a crise do clima vai trazer o fim do consumo e o nascimento de um
novo mundo.
Jorge Pontual — Vamos falar sobre isso então. Você está escrevendo um
livro a partir de uma epifania, podemos dizer? Você estava aqui à meia-noite
com os seus amigos, olhou para tudo isso e pensou: “Como podemos transformas
isto tudo?” Nós somos dependentes das compras, não? Somos viciados nesse
consumismo. Como isso nos afeta? Como a crise que você vê surgindo irá mudar
isso tudo?
Paul Gilding — Antes de mais nada, trata-se, claramente, de uma
dependência. É só olhar em volta. Isto é uma loucura. Não tem a ver com
qualidade de vida nem com satisfação. É divertido, mas não é o melhor que a
humanidade pode fazer. É por isso que nós temos que entender que esse é um
assunto importante para nós. Nós estamos presos aqui, já que, na maioria dos
casos, nós estamos infelizes e a vida não está melhorando para pessoas ricas do
mundo. Aí, começamos a procurar as distrações.
Jorge Pontual — Você sabe que o Brasil está crescendo tanto quanto...
Agora, estamos desacelerando, mas, nos últimos anos, tivemos uma arrancada de
crescimento. Então, há uma nova classe média, e as pessoas estão emergindo e
saindo da pobreza. Porém, eu acho tudo isso não nos deixou mais felizes. Quer
dizer...
Paul Gilding — Eu posso responder. Na média, isso não deixou ninguém mais
feliz no mundo todo. Quando você sai da pobreza para um padrão de vida
razoável, é claro que fica mais feliz, mas, uma vez que você consegue os itens
de necessidade básica, isso não aumenta sua felicidade. O dinheiro que você
ganha não torna a vida mais satisfatória. Todos são incentivados a viver desse
jeito. Mas é claro que, se todos nós vivermos assim neste mundo, será o nosso
fim.
Jorge Pontual — Então nós vamos chegar a um beco sem saída. O que vai
acontecer quando chegarmos lá?
Paul Gilding — Isso é um pouco como já estamos hoje em dia. Nós já estamos
na crise, mas ainda não a vemos como uma crise do crescimento. O que se diz por
aí é que é uma rápida crise econômica, mas a verdade é que já estamos
ultrapassando os limites. O clima está mudando, a economia não está mais
funcionando, estamos afogados em dívidas, a crise de alimentos está piorando, o
preço do petróleo só faz subir. O que nós estamos vendo é todo um sistema em
colapso.
Jorge Pontual — Mas o que é engraçado é que nós estamos neste momento, e
você diz isso no livro, e, com um dia lindo assim, como podemos sentir isso?
Nós não sentimos nada disso.
Paul Gilding — Exatamente. Nós não temos, digamos, o código mental, a
capacidade genética de enxergar isso porque sempre estamos buscando os sinais
mais imediatos. Como espécie, nós evoluímos observando o tigre, buscando o
ataque, procurando a próxima refeição. Nossa genética está “treinada” para
enxergar a curto prazo. Essa é uma questão muito maior, mais complexa, e nós
não temos essa capacidade, porém, isso não muda o resultado final. O que nós
temos é uma escassez de recursos para continuar este tipo de vida. E, como você
diz, ela não está funcionando, já que, quando alcança as suas necessidades,
você não fica mais feliz ao comprar mais coisas. Não é assim que funciona.
Jorge Pontual — E você diz que isso é como uma dependência. É como um
dependente de álcool ou de drogas, que precisa desses produtos para seguir em
frente. Nossa sociedade é dependente desse crescimento?
Paul Gilding — É, sim.
Jorge Pontual — Fale sobre isso.
Paul Gilding — Isso faz sentido se você pensar lá atrás, já que nós não
tínhamos comida suficiente quando deixávamos de ser apenas grandes macacos. Nós
precisávamos de mais abrigo, de mais segurança, tínhamos medo dos ataques de
outros animais. Então, o crescimento nos fez mais fortes. A ideia era boa,
porém, nos deixamos levar por essa ideia. Ela foi longe demais, mas nós ainda
não a modificamos. Ainda somos dependentes dessa ideia central, que descreve
bem onde nós estamos atualmente. Se tivéssemos mais objetos, o telefone
adequado, a roupa correta, a casa apropriada, tudo adequado, nós seríamos, de
algum modo mais felizes. Essa ideia era correta, mas acabou sendo corrompida. É
só você pensar bem: quanto ainda podemos continuar a crescer? Quanto tempo
ainda podemos seguir desse jeito? A resposta é: “De quantas coisas nós
precisamos?” Todos nós teremos jatinhos particulares? Todos teremos mansões? Em
que ponto esse crescimento acabará? Por aquela ideia ser tão central para
aquilo que nós somos, como um vício, e por isso os vícios são tão difíceis de
se abandonar.
Jorge Pontual — Nós dizemos no Brasil e, talvez, ao redor do mundo, que
ter esse estilo de vida de uma classe média alta é o “sonho americano”.
Paul Gilding — Exato.
Jorge Pontual — E você escreve aqui que o sonho americano está morto.
Paul Gilding — Exato.
Jorge Pontual — É isso mesmo?
Paul Gilding — Ele está morto se nós pensarmos que nossa sociedade é
estável. Se quisermos colocar 9 bilhões de pessoas no planeta, que é para onde
estamos indo, aí o sonho americano está morto, porque não há como 9 bilhões de
pessoas viverem assim. Isso não significa que não podemos vivê-lo por um tempo,
mas no fim das contas, o sistema irá quebrar devido ao nível de desigualdade que
é necessário para sustentá-lo. No momento, temos crescimento em algumas partes
do mundo, mas a desigualdade só piora. É claro que, em algum momento, os mais
pobres vão ficar furiosos e destronarão os ricos. Como vimos no Oriente Médio
durante a Primavera Árabe. As pessoas podem até pensar: “Tenho dinheiro, vou
ficar bem. Isso me protegerá.” Mas dinheiro não traz proteção. Pergunte a
Khadafi se a riqueza e o poder bastaram. Pergunte a Mubarak. Não é assim. Não
há como ter uma sociedade forte com tanta desigualdade. Portanto, não há como
existir um sonho americano que não aumenta a igualdade entre todas as pessoas.
Se isso acontecer, essas 9 bilhões de pessoas irão viver esse estilo de vida
voltado ao acúmulo material, o que vai contra as leis da física quanto à
disponibilidade de recursos.
Jorge Pontual — E você diz que, como um vício, os viciados só param quando
chegam ao fundo do poço, quando estão na lama. Então, qual seria o cenário de
uma sociedade que está na lama? O que acontece?
Paul Gilding — Essa é uma pergunta bem difícil, porque você não verá...
Quando você conversa com um alcoólatra, ele diz que está bem, que não tem
problema com a bebida. Mesmo que esteja na lama, ele achará graça e dirá que
tudo vai melhorar, mas ele está na lama. O problema é esse: nós não iremos
melhorar enquanto não aceitarmos. Já dá para afirmar que o sistema está em
colapso, mas nós ainda negamos isso. É como um alcoólatra que perde o emprego.
“O problema não era eu, era o chefe, que era um cretino. Minha mulher me deixou
porque não gostava mais de mim, algo deu errado.” A culpa nunca é dele, e essa
é a essência da negação. Nós estamos nessa negação de que o sistema está em
colapso porque a mudança é um enorme desafio para nós.
Jorge Pontual — Você afirma que nós só iremos parar de negar quando
percebermos que há uma solução?
Paul Gilding — Esse é um ponto crítico da oportunidade empolgante que nós
temos pela frente, por exemplo, com o crescimento da indústria da energia
solar. Nós acreditamos que podemos mudar e que essa transformação é possível.
Aí, os governos começam a atuar. Se nós pensarmos que estamos abrindo mão de
algo, tudo fica mais difícil. Nós temos que acreditar que a vida não será só
boa, mas que será melhor com os resultados dessa mudança. Por isso é que a tecnologia
tem papel importante no processo, mas o ponto mais importante é nós
acreditarmos que uma mudança é possível, que nós podemos ter uma vida melhor.
Não dá para pedir às pessoas para que se sacrifiquem sem motivo algum. Nós
teremos que mudar, e isso será difícil.
Jorge Pontual — Mas de que tipo de sacrifícios nós estamos falando?
Paul Gilding — Esse sacrifício não é, em essência, um sacrifício. Nós não
iremos perder nada em particular. Mas uma mudança é sempre um desafio. Mudar
qualquer coisa sempre é complicado. Vamos ter de mudar nossas indústrias. Olhe
só ao nosso redor: muitas das empresas que estão aí não existirão mais na
economia do futuro. Haverá empresas, empregos e uma economia, mas todos
diferentes. Então, se você faz parte do sistema atual, ter de abrir mão disso
não à algo agradável em termos de negócio. Mas é isso, obviamente, que acontece
o tempo todo no capitalismo e na sociedade. As mudanças acontecem de forma
regular. Nós transformamos empresas em indústrias e, de forma confortável, fazemos
as coisas de outro jeito.
Jorge Pontual — Mas, para as pessoas, isso implicará, por exemplo, em
abrir mão de ter um carro e andar por aí de bicicleta.
Paul Gilding — É claro. Mas nós abrimos mão de enviar cartões postais.
Talvez isso nos force a abrir mão dos carros da forma como os usamos hoje, o
que não quer dizer que não haverá mais carros. Ou seja, nós ainda vamos
precisar de bons sistemas de transportes, só que esses sistemas serão outros. É
claro que, assim como em todas as mudanças na história econômica, houve
transformações enormes que exigiram de nós novos processos. Nesse caso, se você
estiver envolvido, a sensação pode ser de sacrifício. Mas, com o tempo, haverá
a sensação de avanço. Temos que reconhecer as mudanças que precisamos fazer. Ao
final, elas serão avanços e não sacrifícios.
Jorge Pontual — Eu disse no início que é impossível imaginar este local
escuro, sem todas estas luzes, mas isso aconteceu na Segunda Guerra Mundial.
Você menciona no livro que o que vem por aí será um esforço de guerra para
encarar todas mudanças que evitarão o nosso colapso, certo? Que esforço de
guerra é esse?
Paul Gilding — Em muitas maneiras, essa é uma comparação razoável.
Primeiramente, nós teríamos que sentir que existe uma ameaça existencial para a
nossa sociedade, que tudo em que acreditamos está ameaçado. Quando fizemos
isso, houve enormes contribuições e sacrifícios para se chegar a um resultado.
Por exemplo, nós abrimos mão de coisas físicas. Nós derretemos objetos para
fazer tanques, mas nós também passamos por fortes mudanças culturais. As
mulheres passaram a trabalhar nas fábricas, e as empresas concentraram suas
manufaturas em prol do esforço de guerra. É difícil imaginar hoje em dia, mas,
aqui nos EUA, a produção de carros civis foi banida quatro dias depois do
bombardeio em Pearl Harbor. Muitas pessoas que vivenciaram a Segunda Guerra
contam que a tragédia pessoal, obviamente, foi terrível e que coisas horrendas
aconteceram, mas a infraestrutura econômica mudou tão rápido que isso nos levou
a uma sociedade melhor. Então, no que chamo de “esforço de guerra quanto às
mudanças climáticas a aos recursos”, não haverá sacrifício de vidas. Não
precisamos entrar em guerra e matar pessoas. O que precisamos é de uma
transformação econômica e de reconhecer que isso pode ser bom para nós. É
importante ter isso em mente ao entrar nesse processo.
Jorge Pontual — Isso também significa que os governos terão que assumir o
comando. Que influência isso terá na liberdade e na democracia?
Paul Gilding — Os governos terão que desempenhar um papel muito
importante. Acredito que a democracia é inerentemente forte. Acho que podemos
optar por governos fortes, mas isso irá exigir dos governos uma intervenção na
economia. Não é o caos do laissez-faire e dos livres mercados de hoje, que foi
a causa da crise financeira e o que permitiu que os banqueiros investidores de
Wall Street fizessem aquelas maluquices. Nós precisamos de governos fortes, mas
que sejam fortes e democráticos. Assim, talvez consigamos chegar aonde
precisamos.
Jorge Pontual — Qual será o papel de países como o Brasil neste novo
cenário?
Paul Gilding — Acho que o Brasil tem o potencial de ter um papel decisivo.
Há uma grande chance de países como o Brasil, África do Sul, Indonésia, China e
outros explicarem o futuro para nós, de definirem esse futuro, já que este
modelo ocidental com o qual eu cresci na Austrália e que nós temos aqui, nos
EUA, é, na verdade, o problema principal. Normalmente, é muito difícil que as
mudanças partam de dentro. Precisamos de um novo modelo de crescimento, de um
novo modelo de atividade econômica, de novas formas de construir a qualidade da
sociedade, e isso será bem mais fácil em um país como o Brasil se as pessoas
pararem de ver o modelo americano como um ícone. Olhe a sua volta. Isto não é
modelo. Podemos ser melhores que isto. Isto não é o topo das conquistas
humanas. Então, se o Brasil almeja ser assim, ele está almejando seu próprio
colapso.
Jorge Pontual — Mas, como uma economia que não cresce, como isso poderia
dar certo para um país como o Brasil, que está saindo da pobreza e precisa
crescer?
Paul Gilding — Eu acho que nós temos que categorizar esse crescimento. Se
as pessoas são pobres e passam fome, elas precisam de crescimento. Não estou
dizendo o contrário. É preciso enfrentar a pobreza. É como um câncer em nossa
alma como sociedade. Precisamos dividir os recursos de forma mais eficaz. Temos
que reconhecer que alguns têm jatinhos particulares enquanto outros morrem de
fome sem um prato de arroz. Isso é uma loucura, e não uma sociedade estável. E
isso também não ajuda os países ricos. Nós estamos sofrendo nesse processo,
porque, apesar de aparecer superficialmente, que nós temos os bens materiais
que queremos, mas o fato é que a sociedade está instável. Uma sociedade
desigual é uma sociedade pior para se viver. E isso vale para todos, inclusive
para os ricos.
Jorge Pontual — Algo interessante, e que você menciona no livro, é que há
pesquisas que apontam isso, correto?
Paul Gilding — Exato. E sejamos claros, pois as pesquisas são bem claras:
uma sociedade mais desigual, com extremos de desigualdade, não é um bom lugar
para nenhum indicador social, seja ele saúde, a expectativa de vida, a qualidade
da educação, a igualdade de gêneros. Todos esses índices diminuem em uma
sociedade desigual. E o que é interessante é que os 25% do topo da pirâmide de
uma sociedade desigual são os que estão piorando. Se eles fossem mais pobres,
essa sociedade seria mais uniforme. Então toda essa ideia de que o crescimento
irá nos deixar mais felizes e tornar todos nós mais ricos está errada. O que
ela faz é deixar os ricos mais ricos e aumentar a desigualdade social, fazendo
com que todos sofram nesse processo.
Jorge Pontual — O que você afirma é que o crescimento já parou?
Paul Gilding — É claro que teremos algum crescimento na China, no Brasil e
em outros países em momentos distintos, mas, fundamentalmente, os recursos
estão mais caros, o preço dos alimentos subiu, a sociedade está menos estável,
resultando em mais volatilidade, temos níveis ridículos de endividamento que
não conseguem ser saldados, especialmente no mundo ocidental. Nós estamos sem
saída. Se a economia crescer, atingiremos os limites físicos. Se a economia não
crescer, nos afogamos em dívidas. De um jeito ou de outro, estamos
comprometendo o futuro. Há pouco tempo, ouvi uma frase muito boa: “Nós somos a
primeira geração que em vez de se sacrificar pelos seus filhos, está
sacrificando seus filhos em seu próprio benefício.” É o que estamos fazendo.
Jorge Pontual — Há muitas conversas sobre a sustentabilidade, sobre a
economia estar mudando nesta direção, e que isso poderia resolver os problemas.
As cidades implementam ações como pintar a calçada de verde e chamam aquilo de
“ciclovia”, e aí, de repente, nós somos sustentáveis. O que é isso? Negação,
ilusão?
Paul Gilding — É uma combinação de fatores. É uma negação do tamanho do
problema, mas também é uma aceitação da realidade. É uma sensação de que temos
que fazer algo, mas as maiores coisas que temos de fazer — mudar os sistemas de
transporte, de energia e de alimentação — ainda são assustadores demais, além
dos muitos interesses que advogam contra isso tudo. Então, fazemos algumas
coisas que nos fazem parecer boas, tipo maquiagem verde, para parecer que
fizemos algo. É como neste caso aqui. O que nós temos que fazer são mudanças
mais profundas. Estamos tentando transformar algo mais fundamental, o que é uma
constante no progresso humano, em apenas 50 anos, e isso é bem complicado.
Jorge Pontual — Mas há o risco de isso não ocorrer e nós entrarmos em
colapso?
Paul Gilding — Eu acho que esse perigo sempre existe. Nós deixamos passar
muito tempo, então não podemos ser brandos. O processo vai doer, será confuso,
mas ainda não é tarde demais para consertar o problema, só acho que as
consequências serão bastante severas. Porém, se analisarmos de antemão a
Segunda Guerra Mundial e imaginarmos 16 milhões de vítimas, 6 milhões das quais
pela sua crença religiosa, sofrimento e maldade numa escala de níveis
inimagináveis, se nós pensarmos nisso de antemão, diríamos que tudo acabou, que
seria o fim da civilização e que nós nunca nos recuperaríamos. Foi uma
tragédia, coisas terríveis e pavorosas aconteceram naquela época, mas nós
superamos tudo, e o resultado daquilo foi uma sociedade melhor. Por isso,
acredito que nós temo que pensar nisso. Sim, nós vamos enfrentar uma crise,
vamos viver um esboço de colapso, mas somos naturalmente capazes de encarar
mudanças desse nível se nos concentrarmos nisso e, como consequência, esperamos
atingir níveis extraordinários de mudança.
Jorge Pontual — Pensando no caso do Brasil, que encontrou no Atlântico uma
enorme reserva de petróleo e se prepara para extraí-lo, qual é a sua opinião?
Paul Gilding — Eu acho que é errado, que não deveriam fazer isso, e o
mesmo vale para o carvão da Austrália, mas nós temos aquela ideia de nos
agarrar a um sistema que está condenado, que nos salvará. É como se
estivéssemos em um barco afundando e pudéssemos, de alguma forma, nos agarrar
mais forte ao barco para melhorar a situação. Eu entendo o porquê de as pessoas
fazerem isso, mas nós temos de mudar. Agarrar-se a um barco que está afundando
é garantia de afogamento. Precisamos reconhecer que essa mudança tem que
ocorrer, e os países que estiverem mais bem preparados para isso, ou seja, com
níveis baixos de consumo de energia, com o melhor uso, em vários níveis, dos
recursos renováveis, com as maiores reservas florestais, com bom abastecimento
local de alimentos, esses são os países que se sairão melhor no processo.
Quando o abastecimento de comida entrar em colapso, nós, humanos, vamos ficar
bem zangados. Nós vamos nos irritar e nos comportar muito mal.
Jorge Pontual — É por isso que você mora em uma fazenda, onde pode
produzir seu próprio alimento?
Paul Gilding — Não é só por isso. Esse é um motivo. A questão principal é
viver em uma comunidade persistente. Estou escrevendo um livro sobre a
importância das comunidades, sobre não podermos viver em um mundo que depende
dos serviços o tempo todo. Olhe só esta cidade. Se você retirar os caminhões
que distribuem os alimentos, esta sociedade entraria em colapso em três ou
quatro dias. Ele é muito dependente de o sistema funcionar exatamente como o
planejado. É perigoso estar em um local assim. Quanto mais comida local nós
tivermos, quanto maior a diversidade no abastecimento de alimentos, sem que
haja dependência de uma única fonte, é daí que virá a força de um país e de uma
cidade. Eu conversei com algumas pessoas nos EUA há alguns dias, antigos
militares que agora trabalham com essa questão, e um desses homens está
desenvolvendo a ideia de escolher uma cidade de cada estado americano e
torná-la autossuficiente quanto ao abastecimento de comida. Isso é persistência,
é força, e é preciso reconhecer que a força de uma sociedade vem desse tipo de
coisa, e não de uma ideia artificial sobre a quantidade de dinheiro que você
tem no banco. Nós nos esquecemos de que somos animais, que precisamos de
comida, água e terra, e começamos a pensar que somos diferentes disso. Neste
mundo artificial que criamos em nosso entorno, nós nos colocamos além das
necessidades animais, e, na verdade, só precisamos de comida, de água e de
coisas muito básicas para viver.
Jorge Pontual — Eu tenho de confessar que quando li aqui O fim das
compras, pensei: “Ai, meu Deus! O fim das compras! Preciso me apressar!” Eu sou
viciado nisso, como a maioria das pessoas.
Paul Gilding — Claro. Todos nós somos.
Jorge Pontual — Isso causa um impacto. Mas o que eu entendo do seu livro,
a mensagem que fica, e que eu quero aplicar na minha vida é a seguinte: “Compre
menos e viva mais.” Fale um pouco disso.
Paul Gilding — Nós estamos tão dependentes desse impacto artificial que
nos sentimos bem quando compramos algo, mas não funciona e, dois dias depois,
compramos de novo para nos sentirmos melhor.
Jorge Pontual — Ou duas horas depois.
Paul Gilding — Exatamente. Nós estamos presos a esse processo. Isso não é
vida, não é viver mais. O que nós temos de perceber é que a qualidade de vida
não vem das distrações, e sim de fazer as coisas. Não se trata de se distrair
da vida, e sim de vivê-la. Isso pode vir de uma comunidade mais forte, de
aprender coisas novas, adquirir novos conhecimentos, de manter relações com as
pessoas, de ter laços mais fortes dentro da sociedade, de ser mais saudável,
pois é o que propicia uma vida boa. E essas coisas não custam dinheiro, elas
apenas levam tempo. Mas, se usarmos o nosso tempo para ganhar dinheiro, não
teremos tempo suficiente para fazer o que traz felicidade. Aí começa essa
dependência não só do que é ruim para o mundo, mas do que é ruim para nós. Nós temos
de consertar o mundo, mas olhando para dentro e consertando a nós mesmos. É por
isso que toda essa ideia tem a ver com uma evolução consciente da humanidade e
de nós mesmos. Reconhecer que isso tem a ver com a qualidade de vida e que a
vida assim será melhor é um ótimo começo.
Jorge Pontual — Obrigado.
Paul Gilding — De nada. Obrigado.
Jorge Pontual — E vá ao Brasil.
Paul Gilding — Está bem.
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