quinta-feira, 24 de setembro de 2020

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ENTREVISTA: ‘PANDEMIA MOSTROU QUE MUDANÇAS DO DIA PARA A NOITE SÃO POSSÍVEIS’, DIZ PESQUISADORA KATE RAWORTH
Fonte: The intercept brasil 22.09.2020
Entrevistamos a economista que usa a figura de uma rosquinha para esquecer o PIB e focar no equilíbrio ambiental e humano.
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Formada em economia pela Universidade de Oxford, com experiência trabalhando em missões de campo pela Organização das Nações Unidas, uma década de trabalho na Oxfam e dezenas de viagens pelos cantos mais recônditos e subdesenvolvidos do planeta, Raworth lançou uma teoria econômica que, em 2011, desafiou os mantras ortodoxos da área e, em 2017, virou o livro “Economia Donut: uma alternativa ao crescimento a qualquer custo”.

Na obra, a autora ressalta as limitações das doutrinas econômicas clássicas e defende a adoção de uma nova abordagem, própria do século 21, que perceba as interconexões dos fluxos produtivos, sociais e ecológicos. O argumento central de Raworth é que precisamos esquecer o crescimento do PIB enquanto medidor da prosperidade humana. Afinal, não adianta ter uma economia global que cresça 3% ao ano e chegue ao triplo até 2050, se um bilhão de pessoas no mundo vive com no máximo três dólares por dia, 68 milhões de jovens não conseguem emprego, a água acabar para dois terços da humanidade, lixo plástico superar o número de peixes nos oceanos ou se a temperatura média da Terra aumentar 4°C até o final do século.

No lugar do crescimento do PIB, Raworth sugere um diagrama que, “por mais ridículo que possa parecer, ficou semelhante a um donut, daqueles com um furo no meio”, escreveu ela no livro de 2017. O donut representa a faixa circular na qual as necessidades humanas e o meio ambiente podem conviver em equilíbrio. Para fora dessa faixa, estão os exageros da humanidade quanto ao uso de recursos naturais. Para dentro da faixa (o buraco), estão as crises humanitárias e a escassez de recursos. Já a superfície da rosquinha é onde está o equilíbrio socioambiental, e onde devemos ficar, não caindo para fora, nem para dentro.

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Assim que Raworth levou o modelo Donut a público, em 2011, recebeu elogios de delegações de diversos países em conferências da ONU. “Sempre pensei em desenvolvimento sustentável dessa forma. Se ao menos você pudesse fazer os europeus enxergarem desse mesmo jeito”, disse uma representante argentina, segundo o livro da britânica.

O donut de Raworth logo virou uma imagem icônica dentro dos círculos ambientalistas. Em 2015, suas ideias ganharam o respaldo dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU para 2030 – que incluem, entre outras metas, a erradicação da pobreza e da fome, o desenvolvimento de cidades e comunidades sustentáveis e também ações imediatas de mitigação contra as mudanças climáticas, como a britânica já propunha em seu modelo.

Mas foi em abril deste ano, em plena pandemia do coronavírus, que uma notícia fez as ideias de Kate Raworth saírem de vez da bolha: Amsterdã anunciou publicamente que implementaria o modelo Donut, com iniciativas de alimentação sustentável, políticas de redução no consumo e incentivo à reciclagem e à reutilização de produtos. Foi a primeira cidade do mundo a fazê-lo oficialmente. A divulgação da capital holandesa estimulou outros governos e organizações a buscarem a mentoria da economista, que vem se reunindo com diversos integrantes do C-40, o grupo global de cidades comprometidas a enfrentar as mudanças climáticas.

Segundo ela, já recebeu mais de 400 registros de cidades, estados e regiões que querem implementar sua teoria. Copenhague aprovou uma resolução para definir, até o fim do ano, como vai se transformar em uma cidade Donut. O município de Cali, na Colômbia, também decidiu adotar o modelo para estabelecer novos indicadores socioeconômicos e monitorar o progresso sustentável a longo prazo. E, na Costa Rica, as ideias da economista também já servem de referência para o modelo de desenvolvimento econômico do país. “Estou muito animada em transferir esse design inicial para cidades e países do chamado sul global”, comentou Raworth. Pela crescente popularidade do modelo Donut, Raworth foi recentemente incluída em um top 5 da Forbes de mulheres que estão revolucionando o estudo da economia a nível mundial.

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Atualmente, ela é professora e pesquisadora do Instituto de Mudança Ambiental da Universidade de Oxford, e também associada sênior do Instituto de Lideranças Sustentáveis da Universidade de Cambridge. A fama meteórica tem dado ainda mais trabalho. Para dar conta de tantas demandas, o Laboratório de Ação da Economia Donut, força-tarefa que Raworth montou para difundir a aplicação de sua teoria, vai lançar uma plataforma de integração em setembro. O objetivo é reunir e orientar os interessados em implementar o Donut, além de, a partir de outubro, promover palestras e seminários sobre o assunto. Segundo Raworth, o novo site vai ajudar a desenvolver “ideias que nenhum de nós jamais poderia ter sozinho, mas que juntos podemos criar de forma brilhante”.

Abaixo, confira a entrevista completa com Kate Raworth:

Intercept: Por que você pensa que é necessário reformular as políticas de desenvolvimento econômico para o século 21?

Kate Raworth: A economia do século 20 foi fundada na crença de que o sucesso econômico depende do crescimento sem fim. Mas há custos ao perseguir esse crescimento rápido e contínuo. É por isso que o século 21 começou com um colapso financeiro, o desastre climático e agora o lockdown pela covid-19. Precisamos sair dessa crise com uma visão transformada sobre o que é o sucesso econômico, e não se trata de um crescimento sem fim: é prosperidade. Precisamos de economias e sociedades que sejam prósperas e resilientes aos choques que, como sabemos, já são parte desse sistema.

Como você explicaria o modelo econômico Donut a alguém que não é familiarizado com esse conceito?

Bem, no século 20, o progresso econômico tinha o formato de uma linha ascendente de crescimento constante. No século 21, sucesso significa prosperar em equilíbrio. E, por mais ridículo que possa parecer, o formato desse sucesso é o de um donut com um buraco no meio. Então, não deixe ninguém ficar sem os recursos essenciais para a vida no meio do buraco do donut, mas também não ultrapasse a camada superior, não coloque tanta pressão no planeta para não ultrapassar os seus limites. Nós precisamos achar um equilíbrio entre as necessidades de todas as pessoas e as necessidades do planeta. Precisamos viver entre os limites do donut. As pessoas entendem isso bem rápido.

Qualquer cidade do mundo pode adotar esse modelo?

Quando estabelecemos o modelo Donut, nós convidamos cidades e lugares a se fazer essa pergunta bem século 21: “como a sua cidade pode ser o lar de pessoas prósperas, nesse lugar próspero, respeitando o bem-estar de todas as pessoas e a saúde de todo o planeta?”. Isso convida todos os lugares a ter alta ambição local, por seu próprio povo e por seu próprio relacionamento com a natureza.

Mas estabelece essa aspiração em um contexto de responsabilidade global, para garantir que o jeito de prosperar da cidade respeite as pessoas que a abastecem, por meio das cadeias de abastecimento global e todo o trabalho envolvido: a seleção, a limpeza, a embalagem que vai nos alimentos, nas roupas, nos aparelhos eletrônicos, nos materiais de construção que são importados todos os dias para todas as cidades e, posteriormente, derramados como resíduos e poluição no outro lado da cadeia.

Nós convidamos as cidades para que cada uma se pergunte qual é seu impacto na saúde de todo o planeta: estamos falando de emissões de carbono, uso da água, impacto no solo, uso de fertilizantes e todos esses recursos que são importados. E essa longa questão, que é ao mesmo tempo social e ecológica, local e global, se aplica a qualquer cidade no mundo. É claro que o modelo vai ser diferente quando aplicado em lugares diferentes, mas essa é a beleza da coisa: pode ser adaptada para qualquer lugar. Estamos muito confiantes porque, embora tenhamos começado em cidades e países de alta renda, estamos recebendo muito interesse de outros lugares que já vislumbram exatamente como querem adaptar o modelo a seus próprios conceitos e realidades.

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Como você avalia a possibilidade de países tentarem compensar suas atividades de produção após esse período de suspensão total ou parcial por causa da pandemia com práticas ainda mais predatórias ao meio ambiente?

A pandemia do coronavírus nos ensinou que somos todos vulneráveis. Mas também nos mostrou que mudanças profundas são possíveis: no jeito que vivemos, no que pensamos que é normal e nas políticas públicas que os governos podem colocar em prática. Como agora tentamos emergir dessa crise, toda nação precisa decidir qual caminho seguir. Alguns países, sem dúvida, irão redobrar as atividades econômicas extrativistas que já praticavam antes, tentando principalmente recuperar o crescimento que perderam nesse período. Mas esses pagarão um alto preço, por meio de danos ecológicos e sociais.

Por outro lado, muitos outros países estão começando a buscar uma economia regenerativa, como a Nova Zelândia ou a Costa Rica, por exemplo. Esses países compreenderam que há um caminho diferente a ser seguido, e que esse é exatamente o momento para se dedicar a essa transformação, investindo em energias renováveis, em empregos e empresas locais de cada comunidade. Investir em cidades e negócios que produzam bem-estar às famílias, bairros e à sociedade. Em vez de aparecer como índices de crescimento do PIB, esses benefícios econômicos significarão maior bem-estar para as pessoas e para o ecossistema, e vão aparecer em outras estatísticas que refletem esses benefícios à humanidade e ao planeta.

Seu livro Economia Donut foi publicado em 2017, mas suas ideias estão ganhando ainda mais visibilidade agora. Você acha que a pandemia do coronavírus impulsionou a busca pelo seu modelo econômico?

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Sim, com certeza estamos percebendo mais interesse na Economia Donut e na ‘cidade Donut’ do que haveria sem a pandemia do coronavírus. Essa pandemia tem sido devastadora para o estilo de vida de muitas pessoas, e claro, levado a vida de muitos também, como no meu país e no seu. Isso também deu uma razão para as pessoas pararem e refletirem sobre o estilo de vida que havia virado normal, e também para perguntarmos a nós mesmos se queremos viver em sociedades que nos coloquem sob intenso estresse e que coloquem nosso ecossistema também sob forte estresse. Mas há novas alternativas.

Fiquei muito impressionada com o fato de que Amsterdã lançou seu retrato de cidade Donut em 8 de abril. E houve um real e imediato interesse internacional, já que outros países começaram a pensar em como queriam emergir da pandemia, qual direção queriam seguir. Acredito que a mudança acontece quando as pessoas são inspiradas por outras pessoas que fazem o que se julgava impossível. Assim, um prefeito se inspira em outro prefeito que já está colocando em prática a Economia Donut.

Convidamos as pessoas a se cadastrarem em nossa iniciativa, se estivessem interessadas em adaptar o modelo Donut ao seu bairro, ou nação, ou cidade, ou povoado, ou vila, e tivemos mais de 400 manifestações de interesse, de todo o mundo. Portanto, agora queremos disponibilizar esta metodologia gratuitamente, para que outros possam adaptá-la e implementá-la em seus contextos e assim torná-la o mais útil possível.

Esse modelo pode ser igualmente aplicável às capitais do “primeiro mundo” e às cidades do “terceiro mundo”, mesmo considerando diferenças estruturais e desigualdades sociais?

Nós desenvolvemos essa estrutura em conjunto com o C-40, a ambiciosa rede global de cidades de liderança climática, e intencionalmente buscamos a aplicação prática de suas primeiras versões em cidades de alta renda e alto consumo do norte global, pois acreditamos que é lá onde essa transformação tem a obrigação de começar. Entretanto, a estrutura do Donut é absolutamente adaptável a cidades e países com todos os níveis de renda. Após a aplicação inicial em cidades de alta renda do norte global, nossa ideia é mostrar que a estrutura do modelo também é aplicável a cidades de média e baixa renda de qualquer país do mundo, desenvolvendo maneiras de implementação que realmente captem a essência dos problemas mais relevantes desses lugares. Pela perspectiva do modelo Donut, todos os países – sejam ricos ou pobres – são “países em desenvolvimento”.

O que é o C-40 e qual a sua conexão com o grupo?

O C-40 é uma organização internacional com mais de 96 cidades-membro, e todas tiveram que se comprometer a se transformar para manter o aquecimento global abaixo de 1,5°C. Então, pode-se dizer que são as cidades do mundo mais ambiciosas em relação ao clima. São cidades de países ricos e pobres, do norte e do sul global.

Nós, do Laboratório de Ação da Economia Donut, estamos trabalhando em conjunto com eles, e em companhia também da Circle Economy e da Biomimicry 3.8, para criar um escalonamento da cidade Donut e encontrar uma metodologia de aplicação padrão para todas as cidades. Assim, começamos com Amsterdã, e então passaremos às cidades de Portland e Filadélfia, nos Estados Unidos. Amsterdã foi a cidade que já publicou o seu retrato, já acessível ao público.

São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Curitiba também fazem parte do C-40. Que tipo de desafios especiais lugares com maior desigualdade social e problemas estruturais enfrentam para alcançar esses objetivos? Qual é o contexto especial para países economicamente desfavorecidos?

Bem, o Brasil é um país que está atualmente muito aquém do que deveria no ‘Donut global’: milhões de pessoas no Brasil não desfrutam dos recursos essenciais à vida, e, ainda assim, o país está ultrapassando seu limite de impacto ecológico, deixando uma marca na Terra muito maior do que deveria. Então, o Brasil é um país que precisa se ajustar, ao mesmo tempo, nos dois lados do donut. Nesse contexto, é similar ao que precisam fazer também África do Sul, Egito, Rússia e Indonésia, por exemplo.

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O jeito que os países da América Latina farão isso exatamente virá do seu próprio continente, pois as soluções precisam ser locais. Mas as dinâmicas que usamos são comuns: primeiro, a transformação de dinâmicas de design degenerativo, indústrias que esgotam o planeta e degeneram seu sistema de vida para dinâmicas que sejam de design regenerativo. Isso significa se tornar circular, trabalhar com e nos limites dos ciclos de vida do planeta. Ainda, a segunda dinâmica é abandonar estruturas econômicas que têm design divisivo, deixando valores e oportunidades nas mãos de poucos, e transformar essas dinâmicas em distributivas, fazendo as oportunidades e valores bem mais acessíveis a toda sociedade. Isso acontece com a propriedade de terras, propriedade de casas, propriedade de empresas, propriedade de ideias, do modelo monetário e dos serviços públicos. Assim, há muitas maneiras diferentes de criar economias e sociedades distributivas.

Alguns especialistas afirmam que a atual pandemia é um problema global em uma escala de tempo menor e mais específica, enquanto as mudanças climáticas são uma era inteira. Como você enxerga os dois eventos e que lições podemos aprender com um para enfrentar o outro?

É absolutamente verdade que a crise do coronavírus acontece em uma escala muito mais rápida do que a crise das mudanças climáticas. O que eu acho especialmente interessante sobre essa diferença é que, no caso da pandemia atual, há um período muito mais curto entre as decisões que os políticos tomam e o impacto dessas decisões.

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Normalmente, a maioria das políticas públicas, sejam econômicas, educacionais, ou mesmo ambientais, demoram muito para ter resultados práticos observáveis, porque se passa um longo período desde a aplicação dessa política até o seu impacto real. E, na maioria das vezes, os políticos que criaram essa política já saíram do poder quando os resultados aparecem. Entretanto, com o coronavírus, as decisões tomadas em dezembro, janeiro, fevereiro e março pelos governantes ao redor do mundo todo já estão dando resultados, sejam eles bons ou ruins. Então isso cria uma grande capacidade de responsabilização quase imediata dos políticos que estão tomando as decisões no presente, e o que a pandemia tem nos mostrado até agora é que discursos políticos vazios não diminuem as taxas de infecção, políticas competentes sim. E podemos observar uma grande diferença entre a crise em países onde os políticos menosprezaram a pandemia do coronavírus, dizendo que era uma fantasia e um exagero da mídia, como no meu país e no seu, e a crise em países como a Coreia do Sul, a Nova Zelândia e a Alemanha, onde levaram a pandemia a sério desde o início e conseguiram minimizar seus efeitos. Portanto, essa pandemia é uma grande e poderosa demonstração da competência, ou incompetência, dos governos em lidar com crises graves.

Agora, a crise da mudança climática é muito mais dura e difícil, pois acontece em uma escala de tempo muito mais longa, o que significa que os políticos não podem ser tão facilmente responsabilizados em curto prazo. Mas o que a atual pandemia nos mostrou é que grandes mudanças são possíveis, mesmo da noite para o dia. Cidades que possuíam um problema endêmico de moradores de rua, por exemplo, conseguiram resolver a situação em poucos dias, colocando-os em hotéis e outras acomodações. Países que jamais considerariam instituir uma renda básica universal, ou semanas de trabalho de apenas quatro dias, por exemplo, e diziam que essas políticas eram impraticáveis, de repente estão apresentando pacotes de ajuda financeira nesses moldes. Então, nesse sentido, acredito que a presente crise serviu também para abrir os olhos das pessoas para o entendimento de que políticas transformativas alternativas são possíveis, mas que nós não precisamos apenas persegui-las em tempos de crise. Nós podemos escolher usufruir dessas políticas de forma permanente, para criarmos o futuro que já sabemos que queremos.



quarta-feira, 29 de julho de 2020

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“ Neutralidade é um mito, mas a imparcialidade do juiz é um dever” - Por Kenarik Boujikian
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A imparcialidade do juiz não é uma exigência contemporânea. Diz Eugenio Raul Zaffaroni, que sempre que se quis resolver um conflito que não fosse unicamente através da arbitrariedade ou do poder irracional, se exigiu a independência e a imparcialidade do julgador (Poder Judiciário – Crises, Acertos e Desacertos).
Mas segue como questão atual, que ganhou relevo na normativa internacional, como se vê da Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 19), que exige que os Estados Membros da ONU garantam um julgamento igualitário, justo, público e realizado por tribunal independente e imparcial. Este mesmo requisito da jurisdição constou em vários documentos da órbita regional, como na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (artigo 8º); Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (artigo 14), no Pacto de San José da Costa Rica (artigo 8º). Os Princípios Básicos das Nações Unidas para a Independência do Judiciário, adotados pelo 7o Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e Tratamento dos Réus, de 1985, também estabelece a exigência da imparcialidade.
Em tempos mais recentes, em 2002, a ONU editou os “Princípios de Bangalore e Conduta Judicial”, a partir da premissa que o Judiciário é pilar da democracia e deve exercer valores que levem a população a ter confiança no Poder que é o último refúgio dos cidadãos.
Constatou-se que democracias estavam sendo corroídas, quando se tinha o exercício da jurisdição por juízes imparciais, pois levava à perda da confiança da população no sistema de justiça, abalando o Estado de Direito.
Os Princípios de Bangalore elencou seis valores a serem seguidos por juízes, mundialmente: Independência, Imparcialidade, Integridade, Idoneidade, Igualdade e Competência/diligência.
Aqui trato tão somente da imparcialidade, em que pese estarem todos os valores conectados uns com os outros, registrando que o Brasil, da mesma forma que a normativa internacional e regional, também tem na imparcialidade do magistrado uma exigência ética para a validade da jurisdição, integrante do devido processo legal e outros mandamentos constitucionais
Importante dizer que não estamos falando de neutralidade e Zaffaroni bem diz que juiz não pode ser alguém neutro, porque não existe neutralidade ideológica. "É insustentável pretender que um juiz não seja cidadão, que não participe de certa ordem de idéias, que não tenha uma compreensão do mundo, uma visão da realidade. Não é possível imaginar um juiz que não a tenha, simplesmente porque não há homem que não a tenha."
A neutralidade é um mito, mas a imparcialidade é dever. 
O juiz deve se colocar entre as partes e manter a mesma distância entre ambas, que têm direito a ter as mesmas oportunidades processuais e serem tratadas de forma absolutamente igualitária. Cada uma das partes tem um papel próprio a cumprir na relação processual, de modo que não pode ocorrer substituição e nem compartilhamento. Exercem funções inconciliáveis: quem acusa ou quem defende não julga e vice-versa. 
Se o processo for julgado por juiz parcial não teremos um julgamento, mas uma fraude, pois a imparcialidade compõe a própria jurisdição, não restando outra alternativa senão reconhecer que aqueles atos não têm qualquer valor.
Juiz que atua com parcialidade corrompe a jurisdição e mancha o Poder Judiciário. Não se trata de uma questão que alcança exclusivamente as partes. Estas são diretamente atingidas, mas a atuação parcial afeta o Poder e a democracia.
O fato é que no Brasil, nos últimos anos, as razões de edição dos Princípios de Bangalore se fazem presentes, pois podemos constatar uma queda significativa de confiança no Judiciário. 
Segundo dados do ICJ Brasil/FGV-SP ( Índice de Confiança da Justiça no Brasil), de 2013-2017, a confiança no Judiciário caiu 10 pontos percentuais passando para 24% em 2017, significativo, pois em anos anteriores não havia oscilações desta magnitude, o que está a indicar que o próprio Estado Democrático de Direito está a se esgarçar. 
Some-se a esta triste constatação que o sentimento “preocupação”, é dos mais marcantes que a população tem em relação ao Poder Judiciário, de seguinte ordem: 45% 48% 49% , para a sociedade, advogados e defensores, respectivamente, destacando na avaliação geral que um dos atributos considerado dos mais importantes é que seja igual e imparcial para todos (Estudo da imagem do Judiciário Brasileiro, 2019, FGV/Ipesp/AMB).
A imparcialidade está no centro das atenções, pois está em julgamento no STF o habeas corpus, do caso paradigmático, conhecidos de todos do mundo jurídico e da população, que tratará da imparcialidade arguida pelo ex-presidente Lula em relação ao ex-juiz Moro.
Neste tanto, The Intercept divulgou farto material, deixando uma sombra de perplexidade no Brasil e no exterior, nunca experimentada na história do Judiciário. E vejam que a notícia que a população mais se recorda, segundo a última pesquisa referida, é o "Vazamento do conteúdo de conversas de Moro e Procuradores". 
Confesso que achei assustadores os diálogos e fiquei mais perplexa quando o ex-magistrado diz que são diálogos corriqueiros e normais. Não são. Permaneci pouco mais de trinta anos na magistratura paulista. Tenho críticas públicas sobre diversas questões que afetam o Judiciário, mas jamais vi esta promiscuidade. A conduta não guarda normalidade e é ofensiva aos magistrados brasileiros. 
The Intercept e outros veículos de comunicação revelaram conversas travadas entre o ex-juiz e procuradores da república. De seu teor vimos, dentre tantos atos, que Moro e Dallagnol pactuam o momento para que seja requerida a prisão do réu (16/10/2015); Moro informa sobre quebra de sigilo que efetuou e diz não estar arrependido quanto ao vazamento de áudios interceptados com conversas entre Lula e Dilma Rousseff (22/03/2016), portanto confessa um ilícito contra o réu, em que pese pedir escusas ao STF; Moro indica testemunha para o Ministério Público (07/12/2015); Moro instrui procurador a limitar alcance da operação: “melhor ficar com os 30 por cento iniciais” (15/12/2016); Moro indica ao MPF a substituição da procuradora, que realizou audiência (13/03/2017); Juiz e Procurador analisam a pertinência de divulgação de nota à imprensa com o objetivo de contrapor declarações públicas (27/02/2016) e sugere edição de nota porque a Defesa já fez o showzinho (10/05/2017), com o claro intuito de mobilizar a opinião pública; Moro questiona ao Procurador sobre investigação contra Fernando Henrique Cardoso e diz que “melindra alguém cujo apoio é importante” (13/04/2017). Ainda: deu alerta sobre o prazo processual; indicou pessoa para ser ouvida na fase policial; discutiu momento de deflagração de operações; atentou para falta de prova determinada; viu peça processual antes da juntada.
A imparcialidade reclamada na normativa e pelos cidadãos é a pedra de toque de um julgamento justo. Juiz parcial instrumentaliza o Judiciário para interesses pessoais (de qualquer natureza: econômico, subjetivo, político, midiático); quer e atua para o resultado que lhe convém, de modo que tem a sentença, antes da realização do devido processo legal.
Para salvaguardar a imparcialidade, nosso sistema impõe a publicidade dos atos processuais. Tudo deve estar nos autos para que a parte contrária possa se contrapor, para que seja exercido o princípio do contraditório. Mas se não estava é porque sabiam que algo de muito errado estava a ocorrer.
Um bom exercício para averiguar a justiça de uma situação está em se colocar no lugar da outra parte, em qualquer tipo de processo. Quem gostaria de ser julgado por alguém que atua como se estivesse em seu polo oposto? 
Todos sabemos que nenhuma das condutas reveladas pelo The Interceptpoderia estar no processo, simplesmente porque aquelas ações fogem da órbita do papel do magistrado, que tem a obrigação de inércia. Juiz não é parceiro e nem pode conduzir o que deve ou não ser feito pelo Ministério Público.
Mas após ouvir o ex-juiz afirmar, quando ministro da justiça, em entrevista televisiva, que o que mais atrapalhava a operação era o Estado de Direito, nada mais pode causar espanto, de modo que a figura alegórica que ele usou recentemente, referindo-se ao julgamento contestado como um ringue, é próprio de magistrado que não compreende e desvirtua o seu papel. Beccaria, no “Dos delitos e das Penas”, alertou em 1764 para o juiz que se coloca como inimigo do réu. Séculos passaram, mas parece que não foi por todos compreendido.
A sujeição à lei é da substância do Estado democrático de Direito, que não pode admitir o arbítrio de cada um dos milhares de juízes espalhados pelo país. A sujeição é para o povo e todos os poderes. 
O nosso sistema exige juízes democráticos, que sabem que a sua submissão se encontra na Carta Cidadã e nas normas infraconstitucionais , que exercem o poder em nome do povo e atuam com coragem para cumprir a missão constitucional de garantia dos direitos dos cidadãos. 
O habeas corpus referido iniciou o seu julgamento em 2018, foi retirado por um pedido de vista e não retornou.
Há evidente disfuncionalidade do tempo da justiça quando se constata tempos infindáveis no pedido de vista de ministros do STF, fato que deve ser enfrentado como uma das mazelas que rompe a credibilidade e confiança do Poder Judiciário.
Aguardemos o julgamento para constatarmos os paradigmas da imparcialidade que serão fixados pelo guardião da Constituição.
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Kenarik Boujikian é desembargadora TJ-SP (1989/2019), especialista em Direitos Humanos, consultora da Comissão de OAB-SP, cofundadora da AJD e ABJD e membro do Grupo Prerrogativas.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 29 de julho de 2020


sábado, 6 de junho de 2020

GREG NEWS | EMPREGADA DOMÉSTICA

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Professor usa ‘fanfics’ para estimular leitura e produção textual – UFS.br 07.05.2020
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Pesquisa em mestrado profissional permitiu uma análise do desempenho dos alunos ao usarem o recurso
Lidar com os gêneros textuais tradicionais da língua portuguesa pode ser uma tarefa difícil e entediante, sobretudo para uma geração que cresce lidando com tecnologias estimulantes e atraentes. Nas últimas duas décadas, as escolas começaram a usar as novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) para tentar atrair a atenção dos estudantes para o conteúdo das aulas. Com isso, os alunos têm acesso a diferentes formas de leitura e escrita, que estimulam ainda mais a criatividade e produção.
Boa parte dos jovens já estão familiarizados com o ambiente virtual, o que facilita a inserção de narrativas digitais no ambiente escolar. Com isso em mente, Wlademyr de Menezes, ao desenvolver sua dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação Profissional em Letras da UFS, decidiu usar as “fanfics” como ferramenta pedagógica e, consequentemente, objeto de estudo.
Fanfic vem do inglês fanfiction, que em português significa “ficção de fã”, ou seja, uma narrativa fictícia criada por admiradores de um produto cultural (como filmes e séries), usando como base personagens e cenários do conteúdo original.
O trabalho, que consistiu em realizar oficinas que visam à leitura, à compreensão crítica e à elaboração de fanfictions, foi desenvolvido com alunos do 9º ano do Ensino Fundamental de uma escola da rede estadual em Aracaju, onde Wlademyr leciona Português e Inglês.
“Um dos maiores desafios na escola era fazer com que os alunos produzissem textos, algo muito difícil para todos os professores. Então veio a ideia de usar um gênero como o qual eles fossem familiarizados, para criar um estímulo. Após muitas pesquisas, chegamos às fanfics, e eu os outro professores ficamos surpreendidos, pois não sabíamos que escreviam tanto esse tipo de texto. Mas só escrever não bastava, era preciso que eles lessem também. Pedimos para que fizessem todo trabalho de leitura, e só depois partissem para a produção dos textos”, conta o pesquisador.
Processo de produção
As narrações construídas foram baseadas em histórias originais - chamadas de cânones no universo fanfiction - das quais os alunos eram fãs, tendo liberdade para explorar as características de linguagem verbal e não verbal. Após escritas, por duplas ou trios, as fanfics passaram pelo processo de correção e reescrita de forma coletiva.
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“Como a escola não tinha um laboratório de informática, eles usaram seus celulares para produzir e publicar as fanfics em grupos de discussão. Após publicadas, conseguimos ter uma noção da receptividade dos seguidores. E isso é muito interessante, pois mostra ao aluno que a produção textual tem um porquê. Vai ter uma pessoa do outro lado da rede que vai ler e opinar, permitindo que ele consiga melhorar a história”, explica o pesquisador.
Na opinião de Beto Vianna, orientador do trabalho, o gênero é de uso dinâmico e tem uma boa aceitação dos alunos. “As fanfics são, se a escola quiser, se a escola permitir, um instrumento político. Nesse caso, é possível dizer que tanto as tecnologias digitais e virtuais, quanto as fanfics, contribuem para a aprendizagem, pois o que está em questão aqui não é adquirir habilidades ou competências, mesmo que no meio do caminho elas sejam adquiridas, mas ampliar e melhorar o espaço relacional das pessoas, o aprender politicamente”, disserta.
Para Wlademyr, proporcionar a leitura, a interpretação e a produção de narrativas ficcionais, através de um gênero digital, foi muito satisfatório. Os alunos tiveram a oportunidade de expor sua visão sobre histórias como as quais já eram familiarizados, oriundas de produtos midiáticos, como filmes, livros e quadrinhos. “O trabalho final ficou incrível, eles conseguiram trabalhar os temas de uma maneira bem leve. O meu único trabalho com eles foi seguir a linha do professor de português, como olhar a parte de ortografia e concordância”, narra.
Beto enfatiza que, além de fanfics, é preciso de escolas, gestores públicos e educadores mais libertários. “Tenho impressão que os alunos, em geral, tendem a ser mais colaborativos quando a atitude da escola e dos professores é mais acolhedora. Se as fanfics ajudarem no processo, e acho que ajudam, tanto melhor”, arremata.
Para saber mais
A dissertação está disponível na íntegra no Repositório Institucional da UFS, clicando aqui: https://ri.ufs.br/handle/riufs/8190
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Fernanda Roza (bolsista)
Marcilio Costa
comunica@ufs.br

sexta-feira, 1 de maio de 2020

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Um homem honrado
REVISTA CULT 27.04.2020

Sergio Moro é um homem honrado. Convocou a imprensa para anunciar que deixava o Ministério da Justiça porque o presidente da República queria interferir ilegalmente na Polícia Federal.
Quando juiz da Lava Jato, determinou a quebra do sigilo telefônico de Lula e suspendeu a medida às 11h13 do dia 16 de março de 2016.  Mas às 13h32 do mesmo dia a escuta ainda era feita e captou uma conversa do ex-presidente com a presidenta Dilma Rousseff. Nesse momento, o sigilo telefônico de Lula estava garantido pela Constituição, mas o então juiz remeteu a gravação à Globo e ali terminou, de fato, o mandato da presidenta da República. Mas Sergio Moro é um homem honrado.
Às 6 da manhã do dia 4 de março de 2016, a Polícia Federal chegou à casa de Lula para conduzi-lo coercitivamente a Curitiba por determinação do juiz Sergio Moro, que queria um espetáculo público de humilhação do ex-presidente. Os artigos 218 e 260 do Código de Processo Penal somente autorizam a condução coercitiva quando o réu não atende ao chamado para interrogatório ou quando a testemunha, intimada, não comparece. Lula não era réu e nem havia sido intimado. Mas Sergio Moro é um homem honrado.
Sergio Moro condenou o candidato à frente nas pesquisas com uma sentença que não tinha qualquer base fática razoável, criticada por juristas de todo mundo, mutilando as eleições presidenciais. Mas Sergio Moro é um homem honrado.
Quando se descobriu que a Odebrecht fazia doações ocultas ao Instituto Fernando Henrique Cardoso e os procuradores da Lava Jato sugeriram investigar apenas para aparentar isenção, Sergio Moro impediu com o argumento de que não convinha “melindrar alguém cujo apoio é importante”. Mas Sergio Moro é um homem honrado.
Sergio Moro violou os mais triviais deveres de imparcialidade e isenção de um juiz, como soubemos pelas revelações da Vaza Jato. Conspirou com a acusação e a dirigiu em muitos momentos. Mas Sergio Moro é um homem honrado.
Sergio Moro confessou que, ao aceitar ser ministro, pediu uma pensão para sua família caso morresse. Artigo 317 do Código Penal: “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”. Como não se consegue vislumbrar algum motivo para essa vantagem ser devida, somos pelo menos autorizados a cogitar corrupção passiva, exatamente o crime pelo qual condenou Lula. Mas Sergio Moro é um homem honrado.
Moro quis aprovar um pacote punitivista, com ranço de fascismo, que superlotaria o já bárbaro sistema prisional que abriga quase um milhão de presos. Usou, entre outros argumentos, o de que medidas populares traziam capital político para a reforma da previdência. Mas Sergio Moro é um homem honrado.
Essa breve recapitulação aponta em tese para os crimes de violação de sigilo telefônico, abuso de autoridade, prevaricação, corrupção passiva e um maquiavelismo rasteiro. Mas Sergio Moro é um homem honrado.
Sergio Moro assumiu o Ministério da Justiça de um presidente fascista, racista, defensor da ditadura e que tem como ídolo um homem que enfiava ratos e baratas em vaginas de mulheres. Sua mulher afirmou em fevereiro deste ano que Bolsonaro e Moro são “uma coisa só”. Se ela, que priva da intimidade dele, pensa isso, como podemos nós duvidar? Mas Sergio Moro é um homem honrado.
Kennedy Alencar escreveu em um tuíte que Moro é mais perigoso para a democracia brasileira do que Bolsonaro. Não sei exatamente o fundamento do jornalista. Mas é evidente que nenhum dos dois tem escrúpulos. Nenhum dos dois respeita a Constituição. Nenhum dos dois tem qualquer pudor de violar normas e o Estado de Direito para satisfazer interesses políticos ou pessoais. Mas Sergio Moro é um homem honrado.
A diferença é que Bolsonaro atenta contra a democracia sem esconder que atenta contra a democracia. Vai às portas dos quartéis discursar em atos que pedem a volta da ditadura. Moro atenta contra a democracia passando-se por um homem honrado. Por campeão da moralidade. Por herói da probidade. A diferença entre Bolsonaro e Moro é a que existe entre quem aponta um revólver à luz do dia e aquele que na calada da noite apunhala a vítima adormecida. Ou a diferença entre um membro da SS e uma espécie de Iago, o ardiloso personagem do Mouro de Veneza. Mas Sérgio Moro é um homem honrado.
O que houve na sexta-feira, 24 de abril, foi o primeiro lance da campanha eleitoral de 2022. O cavalo passou selado. Era o momento de se descolar da figura desgastada de Bolsonaro, prestes a sofrer um processo de impeachment, ridicularizado mundialmente, com o peso da morte de milhares de brasileiros nas costas pela sua negativa insana da pandemia. Moro não abandonou a magistratura para ser por algum tempo ministro de um homem que desprezava, que humilhou publicamente em uma lanchonete de aeroporto, e depois voltar a ser um homem honrado comum .
Moro tem um projeto de poder e é também o projeto de poder dos sonhos da direita, do mercado, da Globo, porque não traz, diferentemente de Bolsonaro, efeitos colaterais. Um hipotético presidente Moro teria enfrentado a pandemia ao modo de Doria, que passou de alguém que maltrata morador de rua a herói da saúde pública. Se o programa da direita, o projeto neoliberal, tem que ser executado por um psicopata alucinado, que seja, eles aceitam. Paciência. Mas se puder ser por alguém que tem a esperteza e o cálculo de ostentar virtudes públicas e republicanas ao mesmo tempo em que viola todas elas, muito melhor. Por um homem honrado.
MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP


quarta-feira, 1 de abril de 2020


Pandemia expõe que “governo não sabe o que é um pobre ou a economia real”


 CARTA CAPITAL 01.04.2020

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Para o economista Marcio Pochmann, País sairá em frangalhos das quarentenas e precisará do Estado mais do que nunca
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O governo propôs pagar 200 reais de renda emergencial a brasileiros pobres, depois que o coronavírus tornou-se pandemia global. O valor era baixo, e o Congresso, a quem cabia aprová-lo, decidiu aumentá-lo, e aí Jair Bolsonaro propôs 600 reais, em uma tentativa de ser ele a colher a glória política. Agora, o ministro da Economia, Paulo Guedes, diz que os parlamentares precisam aprovar uma certa mudança na Constituição, antes de o dinheiro ser gasto, por razões técnicas.
Esse episódio resume algo que o economista Marcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2007 a 2012, identifica na atuação do governo na pandemia: “Eles não têm a menor ideia do que é um pobre”. Como também não tem, diz, sobre o funcionamento da economia real, por ser dominado por pessoas ligadas ao sistema financeiro, a começar pelo ministro Paulo Guedes.
Para Pochmann, o governo tem agido de “forma muito vagarosa” propositalmente, a fim de criar um caos desejado por Bolsonaro. A economia, segundo ele, sairá destruída no fim das quarentenas, e o Estado será mais importante do que nunca para cuidar dos mais pobres e da reconstrução nacional.
A seguir, a íntegra de sua entrevista a CartaCapital, na qual ele critica os neoliberais neokeynesianos de ocasião, defende trocar a elite dirigente, comenta a disputa geopolítica e econômica entre Estados Unidos e China e faz alguns prognósticos sobre economia global depois da fase aguda do coronavírus.
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CartaCapital: O que acontece no Brasil e no mundo, agora na pandemia, que para o senhor é “socialismo dos ricos”?
Marcio Pochmann: No caso brasileiro, o montante de recursos federais agora na crise é de 1 trilhão e 500 bilhões de reais. Desse valor, 1 trilhão e 200 bilhões foram disponibilizados pelo Banco Central para o sistema financeiro, por isso não há sinais até agora de problemas nos bancos, nas corretoras.
A Bolsa de Valores caiu mais de 30% e não teve uma empresa quebrada, uma corretora quebrada. E se o quadro se agravar, o Banco Central vai comprar ações de empresas, de bancos. Então, de 1 trilhão e 500 bilhões, 1 trilhão e 200 bilhões já foi imediatamente liberado para os ricos.
É uma situação muito parecida com a que ocorreu, não no caso brasileiro, na crise de 2008, quando os governos, na Europa e nos Estados Unidos, liberaram recursos, compraram títulos podres e emitiram moeda para salvar o andar de cima, os ricos.
No plano de agora no Brasil, sobraram 300 bilhões de reais de fora desse “socialismo dos ricos”, recursos de antecipação do FGTS, de crédito para empresas pagarem salários, de garantia de renda aos mais pobres. E desse total, praticamente dois terços não saíram do papel ainda.
CC: E se na crise de 2008 o problema começou em cima, agora há uma necessidade mais imediata de salvar os mais pobres, atingidos de forma mais rápida e ampla agora do que em 2008, não?
MP: A questão não é o gasto do Estado, na verdade, é a reorganização do Estado. Como é que você vai administrar essa massa de pobres desempregados que nós vamos ter? Você precisa de um Estado estruturado, e nós não temos. A equipe econômica desse governo não está preparada para lidar com isso, não tem a menor ideia de como é que funciona a economia real. O governo federal não tem conexões com as periferias.
CC: Não tem conhecimento para lidar com a pobreza…
MP: Não tem a menor ideia do que é um pobre. E eles dizem que vão liberar recursos, mas como é que o dinheiro chega lá na ponta? Liberar crédito para as empresas não vai funcionar. O governo acredita que as empresas não vão demitir, porque vão poder ir ao banco pegar empréstimo para pagar salário.
E aí eu pergunto: as empresas estão enforcadas, quem vai se endividar mais, quem vai passar no critério de avaliação dos bancos? E ainda vão ter de pagar uma taxa de juros (básica da economia, definida pelo BC, a Selic) de 3,75%, altíssima para um quadro de uma economia em depressão.
Você teria que operar com juro negativo (menor do que a inflação), não com juro real positivo. As empresas não vão se endividar, não vai funcionar. Quem está tomando decisão em Brasília é gente que desconhece a realidade brasileira. A micro e pequena empresa está endividada, não vai contrair empréstimos. Nós vamos ter demissão em massa no Brasil, fechamento de empresas, uma coisa horrível o que nos espera.
CC: Até onde chegará o desemprego e qual será o tamanho do tombo do PIB este ano?
MP: É difícil chutar um número. Eu diria que nós não estaremos em recessão, estaremos em depressão. Recessão foi o que aconteceu em 2015, 2016 (anos em que, no fim do governo Dilma Rousseff, o Brasil encolheu 7%). É quando você mantém a sua capacidade de produção, só que reduz o nível de atividade. Você pode produzir 100 automóveis, mas produz 90, depois passa a 70, mas você pode voltar a ocupar essa capacidade ociosa gerada pela recessão. Então, recessão gera capacidade ociosa.
Depressão leva à redução da capacidade de produção. O que nós vamos ver no Brasil não é só a redução de atividade e aumento da ociosidade, é redução da capacidade. Por quê? Porque vai ter fechamento, quebra de empresas. O empresário parou, não sabe quando vai voltar, então fecha o negócio e guarda dinheiro na mão. De nada adiantará daqui um ou dois meses ter uma fábrica, se eu não vou conseguir reativá-la.
CC: O que achou de manifestações de alguns empresários bolsonaristas de que vai morrer pouca gente de coronavírus, o mais importante seria pensar nos impactos econômicos das quarentenas?
MP: Faz parte do egoísmo do dinheiro, é a salvação individual. A experiência de outros países na pandemia mostra duas medidas tomadas simultaneamente. A primeira, aparentemente sem alternativa, é o isolamento social: você faz uma parada técnica na economia, na produção e no emprego, para manter as pessoas isoladas.
Simultaneamente, você tem as políticas fiscal e monetária, para dar garantia de renda, de crédito e de condições mínimas de operação da economia. No Brasil, os governadores e prefeitos tomaram a iniciativa da paralisação, que gerou a parada técnica na economia.
Só que a segunda medida, que só pode ser tomada pelo governo federal – os prefeitos e governadores não tem capacidade de endividamento, não podem fazer política monetária e fiscal – tem sido feita de forma muito vagarosa. O cara que é um pequeno empresário, autônomo, trabalha por conta própria, pensa: “Tudo bem, vou ficar parado, mas e a minha renda de amanhã, de depois de amanhã?”. É o desespero entre a fome e o risco da contaminação.
CC: Essa demora tem potencial para criar caos social, na sua opinião? O presidente Bolsonaro fala em caos.
MP: Penso que é a estratégia de Bolsonaro. O Bolsonaro foi eleito para não governar, porque governar significaria dar continuidade ao que ele entende como um rumo ao comunismo. Portanto, é um presidente eleito para não governar, e de certa maneira a estratégia dele é criar o caos, pois só através do caos ele tem condições de se legitimar e de operar essa política.
Se a gente analisar o que foi o primeiro ano dele, foi um mandato de estímulo ao caos institucional: ele saiu do partido, criou vários problemas entre os partidos, entre os políticos da própria base dele, criou problemas institucionais com os poderes da República… Em suma, gerou um maior descrédito na política e nas instituições. Esse segundo ano acredito que será de coroamento do caos econômico e social. E o caos não trará democracia, dará em mais autoritarismo.

segunda-feira, 30 de março de 2020

oi a FACA ..

Bela análise do filme "O Poço". Um filme que vale a pena ser visto.
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A direita no fundo do poço
por Dodô Azevedo
Um filme pegou a todos de supresa e viralizou-se em tempos de pandemia. Só se fala no espanhol “O Poço”, de 2019, exclusivo da Netflix, que conta a história de uma prisão vertical, de mais de 200 andares, onde todos os dias é servido um único banquete que terá que ser dividido entre todos os prisioneiros. Só que a mesa é servida, primeiro, aos andares superiores. Depois, aos andares inferiores. Sem pensar nos que estão abaixo, quem está nos andares de cima come tudo, não deixando nada para os debaixo, obrigados, então, a roubar e matar para sobreviver.
Não há mais cristalina explicação sobre o que é o pensamento de direita e que tipo de sociedade emerge de sua hegemonia.
Quando um dos presos sugere que no banquete completo, devorado pelos andares de cima, daria para alimentar bem, em partes iguais, todos na prisão, é imediatamente chamado de comunista. Inclusive por um dos presos, um conservador senhor de idade, deste que pede Estado mínimo e volta dos militares e acha que os imigrantes de terceiro mundo estão lhe tirando o emprego.
Abismado, o preso comunista ouve o preso conservador defender o sistema que os mantém presos, comendo o resto, as sobras das refeições feitas por quem está acima deles. Na vida real, o aposentado defendendo, orgulhoso, o governo Bolsonaro. No filme, um senhor miserável comendo, orgulhoso, restos fedendo a mijo e fezes dos ricos.
No Rio de Janeiro, o grande foco de coronavírus é na Barra da Tijuca, bairro de classe alta preferido por milicianos e pela família do presidente da república. Outro foco, uma festa no alto do Jardim Botânico, com os nomes das famílias mais famosas do país, colaborou para espalhar o vírus pela cidade. Uma empregada doméstica morreu após contrair o vírus de sua patroa moradora do alto Leblon. E assim as favelas, os andares de baixo, vivem hoje a tensão de, sem a presença do Estado, sofrer com a doença transmitida pelos ricos. O novo coronavírus é, no Brasil, as sobras contaminadas do que ricos consumiram (na Itália ou em Aspen, segundo as ocorrências).
De direita, o bolsonarismo corre para fazer o mercado voltar a funcionar. A colocar a mesa para os que estão nos andares de cima, sem se importar com as consequências de quem está embaixo. Vidas que só importam em ano de eleição.
Bolsonaro é o violinista tocando para os passageiros da primeira classe do Titanic, durante o seu naufrágio. Titanic é um filme de esquerda que, como Avatar, este uma metáfora de defesa dos índios contra ataques de direitas conservadoras, tornou-se um dos filmes mais vistos da História.
No filme sensação mais visto deste mês, a prisão chama-se “O Poço”. E não se sabe quantos andares há para baixo. Qual é o fundo do poço. A direita, esse poço sem fundo, nos faz a cada dia descobrir novos andares inferiores. Os poderosos não querem compartilhar nada, a não ser vírus.
No final, vemos nosso protagonista comunista encontrar uma criança faminta no último andar de baixo. E resolve sacrificar-se para enviar a criança para o mais alto andar. Crendo que ela será uma mensagem definitiva para quem manda. “Nenhuma mudança é espontânea”, crava o filme em sua última frase.
No Brasil, as primeiras crianças famintas por conta da pandemia foram socorridas pela sociedade civil e, majoritariamente, por ONGs de esquerda que a direita persegue. A direita, por definição egoísta, “quem quer mais, quer sempre mais”, ajudou, até agora, os seus: o Banco Central vendeu reserva de dólares dólares e fez de tudo para acudir a queda das bolsas. Ontem, com a pressão dos congressistas de esquerda, liberou finalmente alguma ajuda para os trabalhadores informais que foram colocados por eles mesmos na marginalidade.
Talvez esse reboot que o novo coronavírus está impondo à humanidade faça ela entender que os caminhos à direita perpetuam a riqueza dos ricos e a pobreza dos pobres. Talvez entendamos que, por termos sido levados ao fundo do poço, desenvolvemos compaixão por todos.
Todos. Em comum.
Comunistas, talvez?
Nenhuma mudança é espontânea.
Fonte: FSP 27/03/2020