domingo, 6 de outubro de 2013
Destaques do Edu
O perdão para os lobos. Carlos
Heitor Cony
FOLHA SP 04.09
Virou moda pedir perdão por erros
e crimes históricos. Sendo a instituição mais antiga da história ocidental, a
Igreja Romana, justamente porque atravessou 20 séculos contraditórios, parece
ter a consciência mais pesada neste departamento. Daí que os últimos papas
pediram desculpas por crimes que não cometeram, dentro do discutível princípio
da culpa coletiva e hereditária.
Quando o lobo, na fábula de Esopo
(da qual La Fontaine fez famosa tradução em francês), quis comer o cordeiro,
deu como argumento o fato de o cordeiro estar sujando a água que ele bebia. O
cordeiro achou impossível, o lobo estava lá em cima, na nascente do rio, ele,
cordeiro, estava bem embaixo. Se alguém sujava a água, era o lobo. Vencido pela
lógica, o lobo apelou para a falta hereditária: "Seu pai, no passado,
sujou a minha água". E devorou o cordeiro.
Cada geração, não de lobos, mas
de homens, sempre se julgou o estágio mais avançado da civilização e do
progresso. Daí que julga o passado de acordo com seus valores, que serão tão
transitórios quanto aqueles que condena.
No caso da Igreja Romana, ela
sentiu na própria carne, na voz ativa e na passiva, essa dramática contingência
do tempo. Foi perseguida, seus fiéis foram atirados aos leões, degolados e
incinerados. Mais tarde, em outro contexto, alguns setores da mesma igreja
agiram de forma parecida, sempre em nome da fé e da moral de um cristianismo
então deturpado pelo poder. O pêndulo da história funcionou durante a Revolução
Francesa. Em Lyon, quando foi promovida a missa negra em homenagem a Chalier,
as igrejas foram saqueadas e profanadas. Uma procissão foi presidida por um
burro com uma mitra episcopal amarrada nas orelhas.
No rabo do animal penduraram um
crucifixo e a Bíblia. Uma prostituta nua esfregava hóstias consagradas no seu
corpo. Quando o cortejo chegou à catedral, obrigaram um sacerdote a consagrar o
vinho e com ele saciaram a sede do animal.
Na Guerra Civil espanhola, com
atrocidades de ambos os lados, era comum os republicanos se esfregarem nas
imagens da Virgem até atingir o orgasmo.
A estupidez, o erro e o crime nem
sempre foram exclusividade de um grupo. Em linhas gerais cada época teve seus
critérios de bom e de mau. O mais forte impôs seus valores ao mais fraco,
muitas vezes, com a intuição de salvá-lo espiritualmente ou ajudá-lo
materialmente por meio do progresso.
No Brasil, o colonizador trouxe o
vírus e a vacina. Até mesmo Anchieta e Nóbrega são eventualmente acusados de
lavagem cerebral praticada contra nossos índios. Por tudo isso, acho que o
recente modismo de pedir perdão abstratamente, além de inútil, ou é oportunista
ou hipócrita.
O cristianismo, que agora começa
a ser acusado de ser o vilão da história, estabelece que o perdão só é válido
quando se promove a reparação do agravo, do crime ou do pecado.
No caso dos índios, massacrados
pela cruz, todos nós que descendemos de portugueses e outros europeus,
deveríamos tomar as caravelas de volta, e deixar os índios em paz, sem nossa
mazelas, nossas doenças, nossos deuses e, sobretudo, nossas cobiças.
O pedido de perdão para numerosos
crimes tem a vantagem de admitir uma culpa coletiva ou individual. No entanto,
a mecânica do perdão exige a reparação. Um dos crimes mais violentos e
hediondos da história foi praticado pelo nazismo durante os anos 30 e 40 do
século passado.
No caso brasileiro, durante o
regime militar instalado após o golpe de 1964, apesar de ninguém até hoje ter
pedido perdão, tem havido algumas reparações, há uma Comissão de Verdade que
procura honesta, mas quase inutilmente, pesquisar e punir os culpados.
Contudo, a demora e falta de
unanimidade da comissão em muitos episódios, vem retardando não apenas a
própria verdade, mas a reparação que o Estado brasileiro deve a milhares de
brasileiros.
Carlos Heitor Cony
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